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Promover o desenvolvimento das cidades foi e é funda- mental para a emergência e consolidação do capitalismo como modo de produção da vida material e espiritual humana. O crescimento das relações comerciais ainda durante o período em que predominavam relações feudais deu um pontapé para o crescimento das regiões urbanas, que aos poucos foram concentrando atividades comerciais, culturais e demais rela- ções sociais.

O lento desenvolvimento das cidades está atrelado a outros processos fundamentais para o capitalismo, para além do desenvolvimento comercial e da posterior industria- lização. Ao longo dos séculos XV, XVI e XVII, especialmente na Inglaterra, os camponeses foram expropriados de suas terras (às quais eram vinculados) e dos meios de produção, e a Igreja Católica teve grande parte de suas terras confiscadas. Esse processo, caracterizado como acumulação primitiva, e

analisado criticamente por Marx (1867/2013), impulsionou a migração de trabalhadores para os centros urbanos, dispondo apenas de sua força de trabalho para vender a fim de garantir os bens necessários à sobrevivência. Essa força de trabalho “livre” seria então fundamental para a indústria crescente. Esse processo culminou numa relação entre cidade e campo em que a primeira submete o segundo às suas necessidades industriais e comerciais, e de onde emerge uma concepção ideológica da cidade como sinônimo de progresso e o campo como referência ao atraso. A cidade torna-se, então, objetivo daqueles que querem prosperar e/ou sobreviver. Contudo, a realidade das cidades se mostrou contraditória. A Paris do século XVII, por exemplo, tinha um quarto da população formada por mendigos, característica que logo se mostrou semelhante nas demais grandes cidades europeias (CERQUEIRA, 2011).

É nesse contexto também que emergem as primeiras formas de manifestação da população em situação de rua, como aqueles que não eram absorvidos pelo mercado de trabalho e vagavam pelas cidades, e passavam a sofrer com a condição de pauperização, generalizada na Europa em processo de indus- trialização no século XVIII.

A condição de trabalhadores, que só dispunham de sua força de trabalho para vender – e nem essa foi absorvida pela produção capitalista, compeliu essa população à situação de absoluta pobreza, vulnerabilidade social e degradação humana (SILVA, 2006, p. 75).

É importante salientar que, com mediações diferentes, a produção desse excedente populacional nas cidades se torna um fator inerente ao próprio modo de produção capitalista. À

população excedente, que não pode ser absorvida no mercado de trabalho, mas que cumpre a função estrutural de regular os salários na reprodução capitalista, Marx (1867/2013) chamou de exército industrial de reserva, ou superpopulação relativa. É importante atentar para tal dinâmica de constituição de uma população não absorvível e demais processos associados (como a expropriação de terras e formas de vida) não a partir de um caráter progressivo e cronológico, mas como lógica interna da reprodução capitalista que se manifesta de diversas maneiras ao longo do tempo. Se as mudanças do próprio capitalismo e as especificidades dos lugares dos quais ele foi se apropriando dão especificidades heterogêneas a essa população (questões raciais, fenômenos migratórios, tragédias ambientais e guerras são alguns aspectos que diferenciam a caracterização da PSR nos diferentes países), as condições histórico-estruturais que a tornam condição necessária à reprodução do capital, perma- necem, tanto quanto a desigualdade social lhe é inerente. Isso implica que há uma combinação de determinações histórico- -concretas que promovem a condição de rua em relação com a necessidade que o capital possui de estabelecer precarização das relações de trabalho e desemprego estrutural.

No caso brasileiro, a abolição da escravatura e a completa desassistência aos ex-escravos imprimiram um novo processo nas cidades do país, lançando milhares às ruas, muitos dos quais não conseguiam emprego (MARICATO, 1996). Já no final do século XIX, o crescimento e adensamento urbanos e as práticas higienistas que atingiram os centros das principais cidades brasileiras fomentaram fenômenos urbanos como a periferi- zação, a formação de favelas e a PSR (LANNOY; JESUS, 2017). As mudanças no padrão econômico do país a partir da década de 1930 marcam significativamente a constituição da população

em situação de rua. A intensa industrialização e urbanização, a substituição da predominância do padrão agrário-exportador para o urbano-industrial, levou uma massa de trabalhadores e trabalhadoras para as cidades, implicando uma população excedente não absorvida na indústria e nos serviços ou absor- vida em empregos precários (SILVA, 2006).

A formação da PSR como um fenômeno urbano está, então, fortemente associada às características do mercado de trabalho nas cidades, ao movimento centrípeto que o capita- lismo desenvolve em direção às cidades, à pauperização e à miséria da vida de uma parcela significativa das pessoas nas cidades. Esses processos também estão ligados à precariedade da oferta de direitos básicos, como moradia, saúde, educação e assistência. Por emergir no eixo que articula diferentes mani- festações históricas das problemáticas sociais da sociedade capitalista, esse fenômeno pode ser considerado manifestação radical da questão social (SILVA, 2006), esta última sendo “manifestação, no cotidiano da vida social, da contradição capital-trabalho” (YAMAMOTO; OLIVEIRA, 2014, p. 23), base fundamental da reprodução do capital.

De acordo com as informações da pesquisa nacional com a PSR, corroboradas pela pesquisa local, entre as principais motivações da ida para a rua estão problemas com álcool e/ ou outras drogas, desemprego e desavenças com familiares. Ao menos uma dessas motivações foi citada por mais de dois terços das pessoas que participaram da pesquisa, mencionadas como correlacionadas ou sendo estabelecida uma relação de causa e efeito (um motivo levando ao outro). Uma informação que merece destaque foi a identificação de um grau de escolha própria para ir para a rua. Ainda que menos frequentemente mencionado pelas pessoas entrevistadas, essa escolha parece

estar relacionada com uma noção vaga de liberdade, em tese, proporcionada pela rua, o que explicaria não só a saída do ambiente doméstico, por vezes visto como perigoso e opressor, mas a própria permanência na rua (SAGI, 2009).

Entretanto, as categorias apontadas anteriormente como mais frequentes motivos relatados para a ida para as ruas não podem ser consideradas isoladamente, sob risco de perder de vista a complexidade da dinâmica social e urbana. Questões como consumo de álcool e outras drogas e relações familiares conturbadas são mediadas por condições econômicas e possibilidade de acesso a algum tipo de assistência. Para uma compreensão aprofundada sobre o que leva as pessoas a irem viver nas ruas, precisamos entender melhor sobre as condições que se apresentam entre a casa e a rua. Em outras palavras, devemos questionar o grau de escolha, se os sujeitos possuíam possibilidade econômica de outra alternativa (sair de casa e arcar com os custos de outra moradia, por exemplo), ou se, para os casos em que o consumo de álcool e outras drogas se tornou crítico para as relações pessoais, que tipo de assistência foi prestado pelos equipamentos de saúde, por exemplo. Em suma, tratamos aqui da cidade como objetivo tendencial dos sujeitos sob a ordem capitalista, mas que, defrontada com as consequências postas por este mesmo modo de produção, se torna objetivo por falta de alternativas. A cidade se torna objeto daqueles que veem suas alternativas irem diminuindo, sob a impossibilidade de acesso a uma série de direitos fundamentais.