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Trabalho e população em situação de rua

O trabalho, porém, não só permanece como a objeti- vação fundante e necessária do ser social – permanece, ainda, como o que se poderia chamar de modelo das objetivações do ser social, uma vez que todas elas supõem as características constitutivas do trabalho (a atividade teleologicamente orientada, a tendência à universalização e a linguagem articulada) (PAULO NETTO; BRAZ, 2006, p. 43).

Conforme a teoria marxiana aponta, o trabalho ocupa lugar central na vida humana, possibilitando o processo dialético de transformação da natureza pelos sujeitos, ao mesmo tempo em que estes mesmos sujeitos se transformam. Entretanto, com o advento da indústria e o desenvolvimento do Modo de Produção Capitalista (MPC), a sociedade passou a ser dividida em duas classes principais: a burguesia, que dispõe dos meios de produção, e os trabalhadores, que vendem sua

direitos humanos. No Rio Grande do Norte, o CRDH teve atividades entre 2011 e 2016 e foi executado como programa de extensão pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e pela Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA). Teve suas atividades suspensas entre 2016-2017, por contingenciamento de recursos do Governo Federal, retomando-as em 2018.

força de trabalho para sobreviver. Conforme apontam Paulo Netto e Braz (2006), a lei geral da acumulação capitalista se fundamenta em uma polarização – há crescimento da riqueza social ao mesmo tempo em que cresce a pobreza da classe traba- lhadora. Além disso, o trabalho no MPC torna-se alienado, uma vez que o trabalhador, em muitas situações, não se reconhece nos produtos de seu trabalho e não possui acesso aos mesmos. Outra categoria central apreendida por Marx relacionada ao trabalho no capitalismo é a do exército industrial de reserva, um contingente de mão-de-obra disponível não absorvida. A existência desse contingente funciona como mecanismo de controle da classe trabalhadora e dos salários: os traba- lhadores se submetem a condições precárias porque sabem que se recusarem e exigirem condições distintas, existe um exército de pessoas desempregadas que poderão assumir seus lugares. Nesse sentido, Silva (2009) explica que o nascimento da população em situação de rua como fenômeno remonta ao contexto de acumulação primitiva, uma vez que os camponeses migraram para as cidades em busca de trabalho e as indústrias não absorveram todos, deixando uma massa de pessoas à mercê da mendicância, bicos e atividades ilícitas para sobrevivência.

A população em situação de rua constitui um fenô- meno crônico tão antigo quanto o nascimento das cidades (BURSZTYN, 2000). Tal fenômeno se torna mais agudo em perí- odos de crise, que ocorrem ciclicamente no modo de produção capitalista. Nas décadas de 1980 e 1990, avançou no Brasil e na América Latina o neoliberalismo e, neste contexto, as grandes cidades desta região tiveram relevante expansão no número de pessoas vivendo nas ruas, sobretudo de trabalhadores que perderam seus empregos nas indústrias e pessoas que migravam do interior para as capitais em busca de trabalhos

e não encontravam. Assim, é possível observar a centralidade do trabalho e a gravidade da falta/precarização deste para a existência e manutenção da população em situação de rua. Como coloca Silva (2009), o trabalho ocupa lugar central entre os fatores que determinam o fenômeno das pessoas que vivem em situação de rua.

Acerca das relações entre trabalho e população em situação de rua, Matos, Heloani e Ferreira (2008) apontam a precarização das relações de trabalho na origem e manu- tenção dos processos de rualização. Os autores observam a culpabilização da PSR por seu desemprego, pela suposta falta de qualificação deste segmento populacional, a partir de uma lógica meritocrática, que escamoteia e ignora as condições estruturais e processos sociais implicados no fenômeno do desemprego.

Cabe ressaltar que a PSR é um segmento populacional heterogêneo, composto por pessoas com diferentes perfis e histórias de vida. Nesse sentido, existem tanto pessoas em situação de rua que não estão aptas ao trabalho por razões diversas – como problemas de saúde e falta de qualificação profissional – quanto pessoas que tiveram acesso à educação formal e trabalhos formalizados, mas que perderam seus empregos e não conseguem reinserção no mercado de trabalho.

As concepções acerca das condições estruturais de desemprego que assolam a PSR foram explicitadas por Matos, Heloani e Ferreira (2008, p. 113) a partir da análise da PSR na cidade de São Paulo, que triplicou entre os anos de 1992 e 2003, em um contexto de desemprego e subempregos, avanço da terceirização e do trabalho precário, desindustrialização e desassalariamento: “se uma parte da classe trabalhadora se adapta a essas metamorfoses no mundo do trabalho, outra parte

não consegue se sustentar domiciliada e assiste a porta da rua abrir à medida que as portas das empresas fecham”.

Outro estudo que abordou a população em situação de rua foi o de Andrade, Costa e Marqueti (2014), desenvolvido na cidade de Santos-SP. Os autores definem a PSR como sobrante, desviante da rede de produção e consumo instituída no modo de produção capitalista, e observam que a maior parte de pessoas que vivem nessa condição sobrevive da catação de materiais recicláveis, de fazer bicos, acharcar6 e, ainda, que a maior parte

tem grande desejo de ser trabalhador/a formal. Nesse sentido, os autores afirmam que “o morador de rua é, então, o fantasma que assombra o resto da sociedade, denunciando a presença da miséria e, ao mesmo tempo, anunciando a possibilidade do futuro a qualquer um” (ANDRADE; COSTA; MARQUETI, 2014, p. 1258).

Na pesquisa realizada junto ao CRDH/UFRN intitulada “Direitos Humanos da População em Situação de Rua na cidade de Natal: investigando limites e possibilidades de vida” (ARRAES AMORIM, 2015), foram aplicados questionários e realizadas entrevistas com 159 pessoas em situação de rua em Natal, entre os anos de 2013 e 2015. Nessa pesquisa foi observado que 76,1% dos participantes não tinham trabalho formal, sendo que 55,3% já tiveram a Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) assinada em algum momento de suas vidas, e 76,7% apresen- tavam algum problema de saúde no momento em que foram entrevistados.

A maior parte da população em situação de rua entre- vistada em Natal/RN sobrevivia de trabalhos informais e

6 Ato da população em situação de rua de pedir dinheiro, alimentos ou itens de necessidade a partir de diálogos e explicações sobre as condições de vida de quem pede. Em Natal/RN, tal ato é chamado pela PSR de “manguear”.

bicos, principalmente como flanelinhas/lavando/guardando carros (35,2%), na construção civil (25,2%), como catadores de materiais recicláveis (20,8%), vendedores ambulantes (19,5%), fazendo faxinas ou trabalhos de limpeza (17%), jardinagem (16,4%), descarregando caminhões (13,8%), fazendo programas/ prostituição (9,4%), distribuindo panfletos (8,8%). Além disso, 35,8% realizavam outras atividades, o que marca a diversidade de trabalhos realizados pela população em situação de rua.

Um dado da pesquisa do CRDH/UFRN (ARRAES AMORIM, 2015) que chama atenção é que 46,5% dos entrevistados utiliza- vam-se da mendicância como estratégia de sobrevivência. Tal percentual é consideravelmente maior do que o dado encon- trado em levantamento nacional realizado pelo Ministério do

Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) em 20087,

que indicou que 16,2% das pessoas em situação de rua pediam dinheiro como principal meio de sobrevivência. Tal divergência pode ter a ver com o fato de que os participantes de Natal referiram apenas fazer uso da mendicância como estratégia, mas não foram questionados se tal atividade se configura como principal meio de sobrevivência ou se é mais uma estratégia associada aos bicos, benefícios, entre outras formas de acessar renda para atender as suas necessidades.

Ainda sobre a relação entre população em situação de rua e trabalho, Henrique, Santos e Vianna (2013) desenvol- veram estudo acerca dos sentidos e significados do trabalho

7 O Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) realizou o primeiro levantamento nacional acerca da população em situação de rua no Brasil. O levantamento foi realizado em 71 municípios brasileiros, no período de 2007 a 2008, e mostrou que o Brasil tinha 31.922 pessoas em situação de rua e que esse segmento sofre todos os tipos de violações dos seus direitos humanos, utilizando-se das mais variadas estratégias de sobrevivência nas ruas.

para pessoas que vivem em situação de rua na região Norte do Brasil, onde a PSR aparece como fenômeno crescente e sazonal, especialmente nos últimos anos, por causa de ciclos migratórios do capitalismo relacionados à construção de usinas hidrelé- tricas e ao desenvolvimento das cidades na região amazônica. Os autores enfatizam que o trabalho é um relevante ponto de partida para compreensão da subjetividade humana, da sociabi- lidade e identidade, e destacam que os principais motivos para desemprego apontados pelos participantes do estudo foram a escassez de mercado para certas atividades, idade avançada, problema de saúde física ou mental, baixa qualificação, entre outros. Destacam também que, apesar da falta de trabalho constituir dilema central na vida da PSR, eles/as fazem bicos, reciclagem, entre outras atividades informais, sem nenhuma cobertura trabalhista para obter renda e sobreviver.

Outro ponto relevante destacado no estudo de Henrique, Santos e Viana (2013, p. 117) foi a ênfase que alguns participantes deram ao trabalho como “meio de auto-realização, entreteni- mento, meio de se obter dignidade e até mesmo saúde física e mental”. Assim, é possível apreender o sentido do trabalho arraigado no discurso da PSR, mesmo ela sendo estigmatizada como vagabunda por não ter trabalho e introjetando uma série de representações sociais negativas a seu próprio respeito. Os autores concluem, assim, que o trabalho se constitui como fator propulsor da inclusão social e da promoção de saúde para a população em situação de rua.

Para enfrentar o crescimento e a cronificação do fenômeno população em situação de rua, o poder público tem apostado na oferta de cursos profissionalizantes para o segmento. Tal estratégia, apesar de sua inegável importância, não garante a inserção da PSR no mercado de trabalho. No

estudo acerca do trabalhador em situação de rua, Matos, Heloani e Ferreira (2008) destacaram as cooperativas de trabalho e a economia solidária pela geração de renda estável para o coletivo de cooperados que gestionam seu próprio empreendimento. Os autores perceberam mudanças subjetivas a partir da participação das pessoas em situação de rua em cooperativas, uma vez que os sujeitos participantes do estudo relataram maiores sentimentos de pertencimento, confiança, postura mais participativa, crítica e política nas diversas áreas do convívio social. Dessa forma, o estudo apontou a economia solidária não como salvação, mas como possibilidade a ser fortalecida junto à população em situação de rua.

Concordamos com Silva (2009) quando a autora situa as questões relacionadas ao trabalho como centrais para o processo de ida e manutenção de grupos humanos em situação de rua. A partir de nossas vivências profissionais junto à PSR, observamos que o sofrimento gerado pelo desemprego acaba desembocando em uma espiral de problemáticas que se entrelaçam, tais como diminuição da autoestima, conflitos familiares, uso abusivo de substâncias psicoativas, envolvimento em atividades ilícitas, entre outros problemas.

Em nossas práticas profissionais no CRDH/UFRN, ouvimos depoimentos de homens que foram para as ruas por não supor- tarem mais conviver com suas famílias estando desempregados por longos períodos, visto que se sentiam fracassados no papel de provedores do lar, função atribuída ao gênero masculino na cultura do patriarcado, sistema social em que os homens adultos mantêm o poder sobre mulheres e crianças, ocupando os principais cargos e papéis de lideranças políticas, econômicas e sociais. Nesse sentido, acompanhamos também mulheres que saíram de casa e se encontravam em situação de rua devido à

violência doméstica sofrida por parte de ex-companheiros, pais, irmãos... Algumas dessas mulheres, inclusive, vivenciavam o desespero e a angústia relacionados à separação de seus filhos.

Conforme apontado anteriormente, a PSR é composta por trabalhadores que geralmente desenvolvem atividades informais e “bicos” para sobreviver. Entretanto, tais atividades muitas vezes não geram renda suficiente para custear despesas com moradia, alimentação, transporte, vestuário, entre outras. Por tal razão, com objetivo de acessar alimentação e abrigo para descanso, além de reinserção no mercado formal de trabalho, muitas pessoas em situação de rua acabam se tornando usuárias dos serviços que compõem a política de assistência social.

Atendimento socioassistencial à