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Tomás Henrique de Azevedo Melo

Prólogo

Depois de alguns anos de pesquisa com pessoas em situação de rua, a morte se tornou algo recorrente em meu cotidiano. No decorrer dos últimos oito anos, foram frequentes as notícias de conhecidos, amigos e interlocutores de pesquisa que chegaram a óbito, além de casos que chegaram a meu conhecimento por intermédio de jornais, grupos de direitos humanos, movi- mentos sociais e outras entidades que atuam com o segmento. O fato é que a existência de ataques seguidos de morte e demais violações contra pessoas que dormem e sobrevivem nas ruas e em acolhimentos institucionais é algo recorrente nas capitais e grandes cidades brasileiras.

Por vezes, casos noticiados nos meios de comunicação relatam a descoberta de corpos não identificados, anunciados como prováveis moradores de rua, nos quais as informações são

pouco reveladoras sobre os detalhes e as circunstâncias dos crimes. Os casos com menor expressão midiática aparecem rapidamente citados, mas pouco se sabe sobre esses aconteci- mentos. Diferentemente, casos que ganham destaque culminam na produção de um reconhecimento público como particular- mente cruéis ou bárbaros.

Entre alguns crimes notadamente marcantes no Brasil, a operação “mata-mendigos” na década de 1960, por ocasião da visita da Rainha Elisabeth, e a Chacina da Candelária em 1993, ambas na cidade do Rio de Janeiro, além do Massacre da Praça da Sé em 2004, na cidade de São Paulo, são alguns exemplos de ocasiões em que tais acontecimentos ganharam atenção nacional e, poder-se-ia dizer, comoveram a opinião pública. Entre casos com maior ou menor destaque e repercussão, chama atenção a forma como os discursos e as compreensões acerca de determinadas vidas e mortes podem atribuir estatutos comple- tamente diferentes, concedendo dignidade ou banalidade a casos distintos, mas que nem sempre diferem na forma como são praticados.

Em meu percurso de pesquisa, pude acompanhar alguns desses casos desde perspectivas diversas e, assim, creio ter conseguido perceber algumas recorrências importantes para compreensão do contexto dessa violência direcionada e algumas das particularidades que permeiam a constituição de discursos de ódio, sua naturalização e, em alguns casos, a produção de um discurso legitimador das mortes violentas nas ruas, assim como os limites da referida legitimação.

O objetivo deste texto, portanto, será apresentar elementos que evidenciam sentidos acerca da morte de pessoas em situação de rua. Trata-se de refletir sobre a produção de representações que constituem o segmento como grupo

populacional indesejável, por vezes exterminável, e os limites em que tais representações se esgotam em termos de legiti- mação pública. Para isso, recorrerei à apresentação de alguns casos e os debates provocados por eles, o contexto de recepção e avaliação de grupos de defesa dos direitos humanos, trechos de discursos midiáticos e policiais que influenciam a produção de uma “opinião pública”.

Para realizar a demonstração dos argumentos, apresen- tarei três tópicos: o primeiro deles trata sobre a forma como alguns elementos recorrentes aparecem na mídia e produzem formas específicas de desumanização das pessoas em situação de rua na representação de suas mortes. O segundo tópico tratará sobre a produção de uma representação fantasmagó- rica da população em situação de rua enquanto classe perigosa que, nos últimos anos, vem sendo pautada, principalmente, em virtude das representações sobre o crack e os usuários dessa substância. As mortes, quando atreladas às insistentes repre- sentações sobre o crack e o tráfico de drogas, culminam no que venho me referindo (MELO, 2012; SILVA; MELO, 2014) como

presunção de violência endógena: forma compulsiva de explicar ou

entender determinados atos, presumindo que os perpetradores são sempre pessoas do mesmo grupo da vítima, balizados pelos estigmas do grupo social a que pertencem e a que se supõem propensos à violência, à degeneração, ao crime, entre outros atributos negativos. Frequentemente, o processo culmina na legitimação dos atos enquanto autoevidentes e previsíveis, provocando também indiferença e culpabilização das vítimas.

No terceiro e último tópico, tratarei sobre o revés desse movimento, quando o discurso da violência endógena não funciona e essas vidas tornam-se dignas de luto, investigação e mesmo da revolta pública sobre os crimes. Em outras palavras,

quando os atos compreendidos como cotidianos passam a ser percebidos por sua crueldade.

Os dados que apresentarei foram produzidos em sua maior parte nos anos em que fiz trabalho de campo em Curitiba/Paraná (2009-2012), quando acompanhei a organização e atuação do MNPR – Movimento Nacional da População de Rua23. Ainda nesse período (particularmente nos anos de 2011

e 2012), trabalhei no Centro Nacional de Defesa dos Direitos Humanos da População em Situação de Rua e Catadores de

Materiais Recicláveis (CNDDH-PSR/CMR)24. Por último, mas

não menos importante, entre os anos de 2013 e 2014 também tive a oportunidade de participar de um projeto intitulado “Observatório sobre a violência contra a população em situação de rua no Distrito Federal”, que resultou em relatório (SILVA; MELO, 2014) e em um grande banco de dados composto de

23 Segundo consta nos relatos de seus participantes e nos próprios docu- mentos do MNPR, o movimento é constituído por pessoas em situação de rua ou que passaram por tal experiência em algum momento de suas trajetórias. Tem início a partir de mobilizações em São Paulo e Belo Horizonte, e é lançado publicamente no ano de 2005, no Festival Lixo e Cidadania, evento realizado anualmente pelos catadores de materiais recicláveis, na cidade de Belo Horizonte/Minas Gerais.

24 A sede do CNDDH foi inaugurada no mês de abril de 2011, na cidade de Belo Horizonte/Minas Gerais, e a partir de então se inicia também o projeto para descentralização de suas ações. O Paraná foi um dos estados em que se previa a aplicação desse projeto. No ano de 2011, fui convidado pelo MNPR (coordenação estadual do Paraná) para assumir o cargo de Agente Técnico, responsável por articular, juntamente a uma equipe composta por um repre- sentante do MNPR e um representante do MNCR (Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis), um núcleo descentralizado do CNDDH – PSR/CMR. Permaneci no cargo até a metade do ano de 2012, quando foi possível instalar o Centro Estadual. O Centro Estadual iniciou formalmente suas atividades em 2012 e, pouco depois, me mudei para o Rio de Janeiro para iniciar o curso de doutorado.

notícias jornalísticas, inquéritos policiais e laudos cadavéricos dos casos de mortes violentas de pessoas em situação de rua25.

A mobilização do MNPR e o trabalho no CNDDH possi- bilitaram o acompanhamento de diversos casos de violação, as providências tomadas em cada um deles, assim como a produção e mesmo o acesso de dados nunca antes trabalhados em virtude da escassez de informações26. Por outro, esses novos

investimentos políticos marcam também uma paulatina trans- formação por parte dos militantes e porta-vozes do segmento, no sentido de como articulam suas denúncias e compreendem as violações sofridas pela população de rua.

O momento em que comecei a acompanhar tais atividades foi particularmente importante, em virtude da crescente politização em torno do tema. Após a assinatura do Decreto 7.053/2009 (BRASIL, 2009), que instituiu a Política Nacional para a População em Situação de Rua27, houve investimento na

produção de informações sobre o segmento28, bem como em

mecanismos para a garantia dos direitos de cidadania, acesso à justiça e produção de dados, como aqueles divulgados pelo

25 Devo agradecer especialmente a Rosemeire Barboza da Silva, que me fez o convite para participar desse trabalho, assim como a toda equipe envol- vida no projeto, que foi definitivo para muitas das reflexões feitas nessa oportunidade.

26 Além dos dados produzidos pelo CNDDH, nesse período, produzi um dossiê sobre as violações contra a população de rua no Paraná (2010-2011). Esses dados inspiraram um paper com alguns apontamentos sobre a lógica dessas violações (MELO, 2012).

27 Documento que define as características do segmento populacional a ser atendido e sugere sua inserção nos programas sociais do governo, assim como novos programas e mecanismos institucionais a serem criados.

28 A exemplo da Pesquisa Nacional sobre População em Situação de Rua, realizada em 70 municípios da federação com mais de 300 mil habitantes.