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Sujeição social e servidão maquínica (LAZARATTO, 2010) marcam a produção das subjetividades capitalísticas na sociedade contemporânea (ROLNIK, 2000; GUATTARI; ROLNIK, 2010), provocando situações de luto, de luta e de resistência nos contextos de produção de modos de vida precária (BUTLER, 2015). Nesses contextos, a vida das pessoas em situação de rua vem sendo tratada como resto, sendo esse excedente efeito do Estado de Exceção que, na atual conjuntura política, a cada dia mais, substitui o Estado Nação e o Estado de Direto (AGAMBEN, 2008). A articulação de diferentes dispositivos que compõem essa engrenagem faz parte do agenciamento desse modo de existência e produz uma redução epistemológica, segmen- tando as pessoas em situação de rua à condição de rualizadas e drogadictas18.

O poema Teia de Aranha, de Patativa do Assaré (ASSARÉ; SILVA, 1991), contribui com a problematização dessa questão: o agenciamento se assemelha à teia cujos fios são dispositivos e a aranha se assemelha ao território de produção de subjeti- vidades capitalísticas que trata de cooptar e captar esse modo de existência como se as pessoas em situação de rua fossem os insetos retratados nos versos.

À diferença do inseto – que segue livre seu caminho, mas “finda ficando à toa, emaranhado [...], preso e subordinado à

18 Em uma pesquisa realizada, em 2008, pela Fundação Perseu Abramo em parceria com o Instituto Rosa Luxemburgo, 15% das pessoas entrevistadas responderam, espontaneamente, portadores de vícios à pergunta: Pessoas que não gosta de encontrar? E 35% responderam, de forma estimulada e múltipla, usuários de droga. E 10% mendigos ou moradores de rua (VENTURI; BOKANY, 2011).

teia da ignorância” –, a pessoa em situação de rua pode “devir animal, cosmos, carta, cor, música” (GUATTARI, 1981, p. 35): devir aranha maquínica (inconsciente maquínico) contra a aranha mecânica e tecer sua própria teia (território de afec- ções/agenciamento coletivo do desejo) e suas linhas (maleáveis e moleculares), reconhecendo “a força de saber que existe e no centro da própria engrenagem inventa a contra mola que resiste” (PRIMAVERA..., 1973).

Aquilo que parecia inteiramente submetido ao capital, ou reduzido à mera capacidade, a vida, aparece agora como o capital, como a fonte maior de valor, reserva- tório inesgotável de sentido, de formas de existência, de direções, que extrapolam as estruturas de comando e os cálculos dos poderes constituídos que pensavam pilotá-la, mesmo quando estes se exercem às suas modalidades mais acentradas, rizomáticas e imanentes (PELBART, 2010, p. 25).

Neste estudo, relacionamos nosso campo de intervenção à esquizoanálise por meio de uma cartografia dos processos de subjetivação de pessoas em situação de rua. Perguntamo-nos quais são os processos de sujeição e resistência frente à produção de subjetividades rualizadas. A cartografia se delineia como pesquisa-intervenção a partir da experimentação das afetações emergentes no campo (BARROS; KASTRUP, 2010). Sendo ela “útil para descrever processos mais que estados de coisas, nos indica um procedimento de análise [esquizoanálise] a partir do qual a realidade a ser estudada aparece em sua composição de linhas” (DELEUZE et al. apud PASSOS; EIRADO, 2010, p. 109). Por meio desse procedimento, analisamos os processos de subjetivação, segmentados e inventivos (GUATTARI; ROLNIK, 2010), fazendo a

problematização dos atravessamentos macropolíticos e o reco- nhecimento das transversalidades que operam a micropolítica do desejo na produção desse modo de existência. Consideramos, nessa análise, a coexistência de linhas molares, maleáveis e moleculares (DELEUZE; GUATTARI, 2012; ROLNIK, 2006); assim, podemos ver o paradoxo da reprodução do poder sobre a vida (biopolítica) e da produção das forças da vida (biopotência) que resistem (PELBART, 2010) às condições de pessoas rualizadas.

De acordo com os estudos de Bursztyn et al. (2003), as primeiras políticas públicas que vão de encontro ao modo de existência das pessoas em situação de rua datam do início do século XVII e foram efetivadas pelos ingleses que tratavam de reter o êxodo e de manter os pobres em seus lugares de origem. Na França, com o fim do sistema servil, as condições de miséria da população que havia apoiado a Revolução de 1789 se agra- varam, com isso a rua passou a ser um lugar de possibilidades para trabalhar e viver, considerando que não havia espaço para todas as pessoas no emergente mercado capitalista. Já no século XX, a expansão do capitalismo fez crescer as políticas de proteção e inclusão no mundo da exploração da mão de obra, dando a impressão de combate à exclusão social; entretanto, esse processo desencadeou o agravamento das desigualdades sociais que foram motivadas por múltiplos fatores e intensi- ficadas nos últimos quatro séculos. Esse modo de produção econômica aponta quem está incluso ao participar da geração de riqueza (por meio do trabalho) e do consumo e quem está marginalizado e consequentemente necessitando de ações filantrópicas (BURSZTYN et al., 2003), nos contextos nos quais há déficit de políticas de assistência social e de atenção à saúde.

No Brasil, as pessoas em situação de rua resistem como podem às políticas de interdição do corpo. Historicamente, essas

políticas produziram a inclusão/exclusão por meio da coloni- zação, da escravidão, da criação das capitanias hereditárias e das políticas de industrialização e de desenvolvimento socioe- conômico. Nos anos 1940, as relações de trabalho no campo, as condições de vulnerabilidade e pobreza, tal como a vemos na série Retirantes do artista Portinari (1944), provocaram o êxodo da população rural para as cidades e muitos imigrantes não foram absorvidos pela indústria, tornando-se marginalizados, quase sem condição de existência (SILVA, 2009). Com o inchaço populacional, a nova configuração espacial de crescimento urbano se refletiu nas ofertas de emprego, trabalho e renda (SILVA, 2001) e no déficit das políticas de assistência social e de acesso à saúde e à educação.

Nas cidades da região Nordeste, por exemplo, o déficit das políticas públicas foi reduzido à ideologia do déficit cultural (NEVES, 2005) e à redução epistemológica (VEIGA-NETO, 2005) que produziram, no imaginário social, a noção de um lugar de atraso, do rural e da seca, que tem suas marcas em um passado que resiste às mudanças e que mantém esses vestígios até os dias de hoje (LARROSA; SKLIAR, 2001). Essa ideologia do déficit cultural (NEVES, 2005), denunciada nos versos de Patativa do Assaré por meio da Triste Partida (ASSARÉ, 2003), e a ideologia da diferença cultural (NEVES, 2005) denunciada também pelo poeta nos versos de Nordestino Sim, Nordestinado, Não (SILVA, 1988) corroboram até hoje a reprodução do estigma social às pessoas em situação de rua.

Para além das ideologias e das imagens da seca e da miséria retratadas nas artes plásticas e na poesia, atualmente, a produção de subjetividades que migram é efeito também de sistemas maquínicos e de regime de signos, envolvendo aspectos ecológicos, icônicos, políticos, sociais, culturais, ambientais e

econômicos, de percepção, afeto, desejo e memória afetiva etc. (GUATTARI; ROLNIK, 2010). De maneira que coexistem situações de pessoas rualizadas e pessoas em situação de rua, podendo cada pessoa vivenciar alternadamente essas condições. Por rualizada compreende-se a pessoa em condições de pobreza e vulnerabilidade social, que vive na rua e já não mantém vínculos com pessoas que disponham de uma moradia para onde ela possa ir regularmente (GADOTTI, 2005). Situação de rua refere-se à condição na qual a pessoa vive na rua por ter ou não vínculos familiares e de amizade fragilizados ou inter- rompidos, de maneira que ela pode contar com alguém e com algum lugar para viver ou morar (BRASIL, 2012a).

Na atual conjuntura, as pessoas em situação de rua resistem à desinstitucionalização das políticas de assistência e de atenção psicossocial. As políticas de evacuação de espaços da cidade e de internação compulsória das pessoas usuárias de substâncias psicoativas que estão em situação de rua expressam redução epistemológica (VEIGA-NETO, 2005) de um problema ético-político e traduzem o que Foucault (2010a) denominou “medicalização geral da existência”. “Psicologizam-se logo as coisas; psicologizá-las quer dizer medicalizá-las” (FOUCAULT, 2010a, p. 160) para que elas entrem “na sociedade da norma, da saúde, da medicina, da normalização” (FOUCAULT, 2010a, p. 160). Psiquiatriza-se uma das questões da população em situação de rua, um problema de saúde coletiva por falta de vontade política de enfrentá-lo a partir de uma política de redução de danos e de promoção da saúde como resultante das condições de segurança alimentar, amorosidade, trabalho, emprego, renda, educação e habitação, sustentabilidade ambiental e acesso à moradia, à escolarização, à arte, à liberdade de expressão, ao lazer e ao uso de transporte, acesso e posse da terra e acesso

à rede de assistência social e aos serviços da rede de atenção à saúde (BRASIL, 2010; BRASIL, 2012b).

A produção de subjetividades rualizadas e em situação de rua não está relacionada somente à estrutura socioeconômica e aos fatores relacionados à disputa dos espaços (público e privado). Na contemporaneidade, essa produção está relacio- nada também ao avanço tecnológico, à expansão da construção civil, à especulação imobiliária, à violência e à insegurança pública, ao rompimento ou enfraquecimento de vínculos fami- liares e de amizade, ao envolvimento com o uso de substâncias psicoativas, ao sofrimento psicológico, ao desejo de consumo e à influência da mídia etc. (SANTOS, 2006; SILVA, 2001; BURSZTYN

et al., 2003; SILVA, 2009; MORAIS; NEIVA-SILVA; KOLLER, 2010;

STOER; MAGALHÃES; RODRIGUES, 2004; PAGOT, 2012).

Nesse campo de intervenção, entendemos que a produção das subjetividades capitalísticas interfere na produção dos modos de existência que emergem das mediações inter- subjetivas e semióticas (SAWAIA, 2008), abrindo também possibilidades de fluxos e múltiplos devires (LANCETTI, 2009). A rua se mantém como espaço de sobrevivência e de desvio, configurando-se como espaço de vida precária (BUTLER, 2015), vida nua (AGAMBEN, 1998), mas também como espaço de vida passível de luto e de luta, espaço de esquecimento ativo e cria- tivo (DELEUZE, 2006), espaço de resistência política.