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Pluralidades epistemológicas anticapitalistas

Com o aprofundamento da assimetria econômica que atravessa o planeta, as sequelas que violam a dignidade dos seres posicionados na base da pirâmide econômica crescem e se reconfiguram. Quanto maiores as violações de direitos traduzidas pela Questão Social, tanto mais o adensamento do poder político dos diferentes grupos que compõem a classe trabalhadora é questão de sobrevivência para ela. Seus entes, em especial aqueles ligados aos Movimentos Sociais, compõem uma base de empoderamento para gestão/negociação e até mesmo a correlação de forças junto ao Estado e demais instân- cias de reprodução da ordem. Sem tal correlação, não há poder

político senão opressão e ditadura política. A reflexão teórica deste estudo é perpassada pelo entendimento que

O marxismo é uma teoria crítica da sociedade capita- lista. Promove em todo o mundo uma prática política de emancipação, rebeldia,[resistência, libertação e revolução. Pressupõe uma concepção de mundo e de vida, da história e do sujeito, que expressa o ponto de vista das classes oprimidas e dos explorados. Como teoria crítica, constitui um saber aberto. É científica, filosófica, ideológica, ética e política ao mesmo tempo (KOHAN, [2016], p. 9).

A teoria social marxista talvez seja, na história, a única forjada, gestada, escrita e reescrita no compromisso de denun- ciar os processos de exploração econômicos e mais que tudo, de transformá-los. É, portanto uma teoria práxica que brota no lugar e no interesse dos trabalhadores e neles se solidifica, portanto dos explorados, quer assim se vejam, quer não, que definiu estes a um lugar político denominado classe social. Em Marx, nós, trabalhadores, somos narrados como sujeitos de potência, mesmo atravessados por processos de empobreci- mento extremo e por diferentes modos que resultam da barbárie do modo de produção capitalista. É a teoria comprometida com a crítica a essa organização econômica que, infelizmente, engole o planeta; assim, as razões que exigem constância na reflexão crítica vêm do reconhecimento do próprio Marx em relação às forças que mantêm essa economia. Eagleton (1988, p. 49) destaca que

Marx nunca se cansou de argumentar que o capi- talismo representa o sistema social mais dinâmico,

revolucionário e transgressivo que a história já conheceu, aquele que dissipa barreiras, desconstrói oposições, amontoa de forma promíscua várias formas de vida e desencadeia uma infinidade de desejos. [...] Como o maior acúmulo de forças produtivas que a história já testemunhou. [...] Como o primeiro modo de produção verdadeiramente global, ele erradica todos os obstáculos provincianos para a comunicação humana e estabelece as condições para a comunidade internacional.

Ora, com os avanços galgados pelo capitalismo tão clara- mente prenunciados por Marx, essa supersafra na concentração de renda é uma violência extrema ante o projeto de economia por ele defendido. Aquela dinamicidade apontada por Marx, na contemporaneidade, produz modos de subjetivação e captura do sujeito individual, coletivo e até dos grupos sociais para a lógica da vida, para o consumo como lugar comum da identi- dade humana no presente, como refere Bauman (2008). Ir além da identidade do consumo é fundamental para a compreensão do lugar de classe, mas é preciso considerar que a posição de classe não encerra todas as questões históricas dos diferentes sujeitos, grupos e movimentos sociais, entre essas as questões étnicas, de sexualidade, gênero têm relevância política e crítica. Para tanto, é vital valorizar os sujeitos e com eles somar forças como modos de resistência anticapitalista.

Wood (1996) desacredita ser possível ao marxismo deixar de atentar para os desdobramentos do próprio desenvolvi- mento do capitalismo, dentre eles aqueles afetos ao abuso do imperialismo ideológico que sufocou identidades e culturas consideradas improdutivas, desnecessárias, não interessantes à sua própria manutenção, em especial a partir dos efeitos massivos da comunicação nos modos como esta se afirma.

Quem subscreveria o tipo de imperialismo ideológico e cultural que suprime a multiplicidade de valores e culturas humanas? E como podemos negar a política da linguagem e da cultura num mundo tão dominado por símbolos, imagens e “comunicação de massas”, para não falar da “superestrada da informação”? Quem negaria essas coisas num mundo de capitalismo global tão dependente da manipulação de símbolos e imagens numa cultura de propaganda, onde os “meios de comu- nicação” medeiam nossas próprias experiências mais pessoais, às vezes ao ponto em que aquilo que vimos na televisão parece mais real que nossas próprias vidas e em que os termos do debate político são colocados – e estreitamente constrangidos – pelos ditames do capital em sua forma mais direta, na medida em que o conheci- mento e a comunicação estão crescentemente nas mãos das corporações gigantes? (WOOD, 1996, p. 124).

Mais do que dizer da pluralidade teórica, urge entendê-la como imanente às condições do avanço das ciências, das tecno- logias, das lutas de grupos sociais e também da globalização, em tempos que são da engenhosidade da informação e comu- nicação. Para tanto, precisamos da agudeza de percepção na interação com a concretude dos movimentos da história, ora perpassada por inúmeros elementos que constituem os modos de alienação, de ser e viver a contemporaneidade. Ou seja, apurarmos a crítica não somente sobre a atualidade – enquanto tempo – mas fundamentalmente sobre os rebatimentos dessa contemporaneidade como tempo social e cultural, indagan- do-nos sobre as complexidades e os mistérios que constituem os sujeitos sociais, as pessoas em seus diferentes segmentos sociais, os trabalhadores e capitalistas que vivem e são produ- zidos pela engenhosa superestrutura que se recria e nos recria a cada segundo.

Considerando a eficácia dessas reinventadas formas de exploração do capitalismo contemporâneo, é basilar proble- matizar criticamente a importância de que a pluralidade das diferentes lutas por direitos reconheça a luta anticapitalista como seu ponto de convergência, inclusive de classe. Dito ainda de outra forma: tendo como matriz o pensamento social crítico, as diferentes reflexões e ações políticas contemporâneas, seja por temáticas ou segmentos como raça ou gênero, seja por movi- mentos sociais como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), ou ainda o Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), seja por direitos específicos ou intersetoriais por meio da organização civil, precisam fortalecer sua posição de classe, uma agenda comum de luta que se reconstitua como um poder político, uma resistência comum de luta anticapitalista. Isso porque é o projeto societário de classe, e no dizer de Semionatto (1997, p. 10), no conjunto plural de forças progressistas, que possibilita fazer retornar o “pêndulo da história” para o campo da justiça, da igualdade e da democracia como vontade coletiva, uma consciência “ético-política” necessária à criação de um novo “bloco histórico”.

Se as lutas por segmentos são vitais às conquistas, espe- cialmente no desenho das políticas públicas após a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, também o são as pautas comuns, aquelas que buscam enfrentar não somente determinadas feições da Questão Social, mas a enfrenta como um todo, através da clareza de sua gênese. Mas para além do fortalecimento do poder político dos subalternizados, há que se lutar pela potência do bloco histórico como defendido pelo pensamento gramsciniano. De acordo com Semionatto,

A cultura pública e democrática, gestada com o intenso processo de socialização da política, precisa ser reafir- mada, de forma que os organismos de base não sejam esfumados por esse processo de fragmentação, desmo- bilização e passividade, esvaziador da democracia e da cidadania. O dilema está no esforço para que essas lutas cotidianas não se restrinjam a reformas pontuais, desencarnadas de um projeto totalizador, acabando por perder-se no vazio. As lutas das minorias, do acesso à terra, moradia, saúde, educação, emprego, hipertro- fiam-se em um turbilhão de demandas fragmentadas, facilmente despolitizadas e burocratizadas pelo próprio Estado, situando-se naquilo que Gramsci denomina de “pequena política”, que engloba questões parciais e cotidianas e que precisa, necessariamente, vincu- lar-se à “grande política” para criar novas relações (SEMIONATTO, 1997, p. 9).

Os Movimentos Sociais se reconhecem, em maioria, como instâncias de luta por direitos e que esta se dá na imersão da estrutura econômica capitalista hegemônica, referendada por um Estado que cumpre a função da reprodução desse emen- tário, solicitando a participação e a organização civil como parte das estratégias dessa reprodução. Por isso Semionatto (1997) sinaliza que o fortalecimento dessas novas instâncias de participação não significa, contudo, apenas uma transfe- rência de responsabilidade aos setores mobilizados, reforçando novos particularismos, mas um operar efetivo na formulação e implementação de propostas democráticas para além dos marcos do capitalismo; ao oposto disso critica a fragmentação de suas plataformas de luta e de seus referenciais políticos de classe. Porém, essa forma de gestão pública carrega em si seu contraditório, e outras potências de resistência e empodera- mento político podem prosperar.

Participar organizadamente do poder político e da gestão pública instituídos formalmente demanda criticidade sobre como as formas de captura dos sujeitos para a lógica da reprodução se refinam, são cambiantes maneiras do capitalismo reagir a tudo que lhe ameaça (luta de classes, baixo consumo, ou seja o que for). Pensadores da contemporaneidade ajudam a compreensão das tramoias discretas, reificantes, neoposi- tivistas, que dispensam comumente a coerção explícita, mas nem por isso são menos coercitivas e eficazes. Reconhecer traços da lógica contemporânea nomeada como pós-moderna não significa defender tais traços, senão entender a seriedade teórica dos que chamam a atenção sobre os modos de gestão da vida, desde o local ao mundo pós-globalização. Semionatto (1997, p. 9) entende que

As expressões fragmentadas, mas muitas vezes consis- tentes dos multiformes movimentos da sociedade civil, embora tragam como marca a luta contra a violência do “pós-moderno”, também encerram em si a impotência de congregar os diferentes interesses particulares em interesses universais. O esmaecimento dos processos de luta de dimensão global é alvo privilegiado das elites, cuja intencionalidade primeira é reduzi-los a questões meramente particulares, desligadas da tota- lidade social. A relação dialética entre social e político, político e econômico, Estado e sociedade, público e privado, depende, em grande medida, da reafirmação desses organismos, de sua capacidade de fazer política, enraizando práticas sociais que possibilitem estabelecer novas contratualidades na dinâmica societária.

A importância sobre essas “transdiscussões” estavam no pensamento de Wood e Foster (1999) na obra Em defesa da história:

o marxismo e a agenda pós-moderna, afirmando que manter

os princípios do pensamento marxista não significa negar que determinados aspectos decorrentes dos assinalamentos pós-modernos estão postos e seria ingenuidade negá-los:

Quem negaria a importância de “identidades” diversas da classe, das lutas contra a opressão sexual e racial ou das complexidades da experiência humana num mundo tão móvel e mutável, com solidariedades tão frágeis e mutantes? Ao mesmo tempo, quem pode ignorar o ressurgimento de “identidades” como o nacionalismo, forças históricas tão poderosas e com freqüência destrutivas? Não temos que acertar contas com a reestruturação do capitalismo, hoje mais global e segmentado que nunca? Nesse sentido, quem não percebe as mudanças estruturais que transformaram a natureza da própria classe operária? E que socialista sério alguma vez desprezou as divisões raciais e sexuais no seio da classe operária? (WOOD; FOSTER, 1999, p. 125).

Tais questões, formuladas por Wood, permitem perceber avanços significativos no entendimento de que os “sujeitos da diferença” têm uma cortina de fumaça sobre suas identidades e as inúmeras subjugações que a sociedade e a cultura hegemô- nica impetraram às suas histórias, seja pelo viés da sexualidade, do gênero, da etnia, da raça, seja pelos tantos outros existentes. Eagleton (1998, p. 23) diz que

não se tratava [...] de um desvio da política para outra coisa, visto que a linguagem e a sexualidade são polí- ticas até a raiz dos cabelos; mas se revelou, por conta de tudo isso, uma maneira valiosa de deixar para trás algumas questões políticas clássicas, tais como por que a maioria das pessoas não dispõe do suficiente para

comer, que acabaram de certa forma escorraçadas da ordem do dia.

Entre esses que não dispõem do suficiente para comer está a população em situação de rua. Esta se organizou em um movimento social e declarou sua luta por “nenhum direito a menos”.

Movimento social como expressão