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constitutivas da biopolítica, fossem exercidas por meio da construção de projetos pautados no diálogo, sempre frágil

e conflituoso, entre os gestores/executores das políticas

públicas, a população de rua e os movimentos sociais. Essa

estratégia poderia diminuir o fosso entre o que está previsto

nos princípios e nas diretrizes das políticas públicas, tal

como conquistadas e constitucionalmente estabelecidas, e

o modo como são efetivamente implementadas. No entanto,

as formas de exclusão sustentadas nas representações de

periculosidade e de pessoas “vagabundas” naturalmente

propensas à improdutividade, mascaram, num nível

macropolítico, as linhas da estrutura capitalista que se

reproduzem e se sustentam na exclusão e, num nível

micropolítico, as linhas dos desejos de extermínio e o amor

ao poder dos sujeitos que, sob a opressão dessas pessoas,

mantém sua condição social privilegiada.

Figura 1 – Círculo perverso de exclusão e extermínio.

Fonte: Esquema produzido pelos pesquisadores a partir da análise das entrevistas realizadas na pesquisa “Direitos Humanos e população em situação de rua: investigando limites e possibilidades de vida” (PROPESQ/UFRN – 2014-2016).

As resistências que estão em disputa com as práticas que preservam esse círculo hoje evidenciam as tensões entre Estado e sociedade e abrem caminhos de participação, prota- gonismo, autonomia e emancipação social para a necessária efetivação dos direitos humanos. São os espaços de encontro e fortalecimento das pessoas em situação de rua em coletivos organizados, construindo redes de solidariedade e apoio social, com a intercessão de pessoas vinculadas aos movimentos sociais, às universidades e outras instituições parceiras. Essa “linha vermelha” parece produzir uma via potente de contes- tação e ruptura desse círculo. Assim, os eventos realizados, os fóruns de ação política constituídos atualmente, os espaços de criação por meio da arte ofertados em oficinas, mostras e

eventos na cidade e os vínculos entre as pessoas que se apoiam mutuamente e lutam conjuntamente no cotidiano da rua são as vias de afirmação das vidas, isso porque

Não obstante, do mesmo modo que o poder tornou-se mais sutil com suas novas máquinas e formas de exercício, a vida, os devires ativos da vida também encontram ocasiões inéditas, inauditas e poderosas para reagir, criar, fazer passar o inesperado, o ar puro de nossos devires e a potência de novas composições no seio mesmo de suas máquinas cibernéticas de controle (FUGANTI, 2001, p.7).

Conclusões

Quando aceitamos o desafio de nos aproximar dessa população para a realização de uma pesquisa, sequer descon- fiávamos do vasto mundo de problemas e desafios em relação aos quais não pudemos ficar indiferentes. Esse turbilhão segue a nos mover e muitos ainda são as ideias e os argumentos a dar corpo e visibilidade, fazendo girar a roda desse mundo, esperamos nós, para que transformações sociais aconteçam no sentido da afirmação das vidas como as que encontramos e às quais nos vinculamos.

A população em situação de rua apresenta uma história muito recente de luta pela garantia de direitos e da sua efetivação por meio de leis, implantação e implementação de políticas públicas. Não se trata, como vimos, de um processo linear e desconfiamos que não seja suficiente. As condições de vida e o perfil psicossocial das pessoas em situação de rua

em Natal são semelhantes àqueles já apontados em pesquisa nacional e em outras pesquisas realizadas em outros cenários brasileiros. Ainda são uma realidade as constantes violações, a ineficiência das políticas públicas e as práticas de violência que habitam o cotidiano não somente das ruas, mas também dos próprios serviços públicos destinados a essa população.

Foi, então, no sentido de expor essa problemática de precariedade e construir intervenções sobre ela que essa pesquisa se delineou. Entendemos que os objetivos traçados, longe de abarcar todas as linhas de ação possíveis diante do quadro com o qual nos deparamos, tiveram como principal enfoque abrir portas para aproximações da população em situ- ação de rua em Natal, de modo a provocar mudanças concretas nas vidas das pessoas que habitam e/ou fazem uso dos espaços urbanos para sua sobrevivência.

O processo de pesquisa-intervenção aqui tratado parcialmente arriscou outras relações entre pesquisadores/as e participantes, produzindo desenvolvimento na formação em pesquisa social crítica e produzindo espaços de coletividade e solidariedade com quem se encontra em situação de rua. Tudo isso com as errâncias do fazer e do pensar, que vão se desdo- brando com o tempo em relações mais intensas, alianças mais fortes, compreensões do campo em vários níveis de complexi- dade e no manejo dos conflitos inerentes às relações humanas que não se desejam indiferentes. Como intempestivamente disse Carlos Marighela: “É preciso não ter medo, é preciso ter a coragem de dizer”. Parafraseando em complemento com o pensamento freiriano, é preciso não ter medo, é preciso ter a coragem de seguir aprendiz.

Os estudos que abordam a população em situação de rua adulta no Brasil só começaram a ter maior ênfase na última

década, após a instituição da Política Nacional da População em Situação de Rua (PNPR). Assim, ainda há um longo percurso de investigações necessárias para dar visibilidade às questões vividas pelas pessoas em condições de extrema vulnerabilidade social, como as pessoas na rua. Vimos que pesquisas focalizadas em temáticas específicas como gênero, raça e espiritualidade merecem lugar diante do que vimos e ouvimos dessas pessoas. As temáticas relativas à saúde mental e ao uso de álcool e outras drogas seguem sendo um desafio em contextos como esses. Acreditamos que demos um primeiro passo no sentido de trazer subsídios metodológicos e teóricos para que novas questões de pesquisa sejam forjadas e, assim, com o percurso de outros pesquisadores possam dar contorno a outras pesquisas junto à população em situação de rua, nos mais diversos cenários. Sendo assim, pretende-se produzir novas formas de olhar e se relacionar, tanto na micro quanto na macropolítica, com essa questão “da situação de rua” ainda em aberto, que interpela a cada um e a todos nós.

Nesse sentido, entendemos que a academia ainda se mostra distante desse contexto, com recentes perdas nesse cenário pela fragilização das políticas públicas que deveriam justamente fortalecer redes de cuidado e de protagonismo, tendo em vista um posicionamento ético-político em favor de todas as vidas e de seu direito à cidade. Apesar das já citadas práticas cotidianas de violação de direitos, os modos de vida das pessoas em situação de rua e sua pluralidade se colocam como desafios para as práticas profissionais voltadas para a atenção a esse público. Isso para nos fazer (re)pensar as formas com que lidamos com aquilo que nos faz questão e com o que consideramos como imprescindível para o trabalho do/a psicó- logo/a e de outros profissionais no campo socioassistencial e

sanitário local, bem como dos executores de políticas públicas de habitação e de geração de emprego e renda, assim como da segurança pública.

Ressaltamos a extrema necessidade de um prossegui- mento dos trabalhos junto à população em situação de rua, percebendo e intervindo sobre suas diversas faces, aprofundan- do-se nelas, bem como tecendo conexões. As vidas que ocupam nas ruas, enfim, exigem deixar o lugar de invisíveis e descartá- veis, para habitar a cidade em sua condição de cidadania.

Seguimos movidos pelo desejo de que, diante do perverso círculo de exclusão e extermínio com que nos deparamos, seja possível, ainda que com ações pequeninas, afirmar que essas vidas nas ruas podem mais, muito mais! Como nos disse um mestre:

Acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-tempos, mesmo de superfície ou volume reduzidos [...]. É ao nível de cada tentativa que se avalia a capacidade de resistência ou, ao contrário, a submissão a um controle. Necessita-se ao mesmo tempo de criação e povo (DELEUZE, 1992, p. 218).

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