• Nenhum resultado encontrado

Tadeu Mattos Farias Raquel Farias Diniz

É comum encontrarmos referências à população em situação de rua (PSR) como alvo de uma invisibilidade forjada pelas próprias condições em que é determinada a viver. A ideia da invisibilidade está conectada à relação que a cidade estabelece com esse segmento da população. Pode-se dizer que as cidades os tratam como refugo, sobra, indesejáveis, sendo, porém, inevitáveis, diversos mecanismos prático-ideológicos atuam de forma a esconder efetiva ou simbolicamente sua existência.

Todavia, a crescente percepção de “crise” urbana também coloca às vistas a PSR. Podemos chamar de visibilização perversa esse processo, uma vez que são os mecanismos de estigmatização, repressão ou as tragédias urbanas que muitas vezes têm elevado a PSR à condição de visibilidade. É nesse sentido que são cada vez mais frequentes as notícias sobre ações de cariz higienista para retirada de pessoas em situação de rua de lugares de “interesse público”, como as violentas intervenções na chamada “cracolândia”, na cidade de São Paulo,

o uso de arquitetura hostil para evitar que espaços públicos sejam ocupados por essas pessoas, além das recorrentes mortes por desabrigo e exposição ao frio intenso em algumas cidades brasileiras. O que é notável nos processos sociourbanos de invisibilização ou visibilização perversa é que há uma relação fundamental entre as cidades e as pessoas em situação de rua.

A PSR é um fenômeno urbano (SILVA, 2006) que se mani- festa nos grandes centros e mantém com estes uma relação contraditória. Por um lado, expressa a trágica condição da dinâmica urbana no modo de produção capitalista, ou seja, a certeza de que as cidades e seus recursos não são para todos; por outro, faz das ruas e dos demais espaços urbanos, lugares de sobrevivência, refúgio e moradia. Assim, temos que as grandes cidades, ao passo em que possuem na PSR um resultado necessário de sua reprodução, os negam como cidadãos, ou seja, aqueles que possuem direito de usufruir legitimamente de seus equipamentos e de suas potencialidades.

Essa realidade de conexão contraditória não se dá à toa. O fenômeno da PSR é posto pelas mesmas determinações que reproduzem as cidades como a forma capitalista por excelência de produção do espaço. Em outras palavras, na medida em que o funcionamento das cidades é tomado pelas necessidades da reprodução do modo de produção capitalista, nelas também emerge a PSR como fenômeno inerente à sua existência.

A reflexão sobre essa condição nos serve para a proble- matização de outro tema bastante repercutido na atualidade, o do direito à cidade. Quando exposta por Lefebvre em 1968, essa temática se nutria das diversas lutas sociais que tomaram as ruas de Paris e de outras cidades do mundo no período. Lutas estudantis, trabalhistas, dos negros e das mulheres agitavam os grandes centros urbanos, o que levou o autor a definir o direito

à cidade em torno de duas dimensões: por um lado, o direito de que todos os que vivem nas cidades possam acessar seus equipamentos, como escolas, serviços de saúde etc., possuir moradia, circular livremente e com qualidade; por outro, o direito à cidade também se trata de um poder de transformar as cidades, da possibilidade de que aqueles que nelas vivem sejam sujeitos de sua produção e possibilitem o devir de uma outra cidade (HARVEY, 2012; LEFEBVRE, 2001). No primeiro aspecto, o direito à cidade está conectado às demais pautas de lutas por direitos humanos, no sentido da garantia de vida digna a todas as pessoas. No segundo aspecto, se articula à necessidade/ possibilidade de transformação radical da realidade presente, suas relações sociais de produção, modos de viver e de produzir a cidade.

Não seria necessário um olhar muito apurado para notar que essas possibilidades são negadas às pessoas em situação de rua. Contudo, propomos aqui ir além dessa constatação. Se as pessoas em situação de rua são um fenômeno inerente à produção capitalista das cidades, é necessário analisar como se dá essa relação em que a PSR é tão parte da cidade quanto esta mesma cidade lhe é negada. A fim de aprofundar esse debate, duas questões norteiam a presente análise: (a) de que formas as contradições da produção capitalista do espaço urbano se manifestam no uso da cidade pela população em situação de rua? (b) quais as relações entre o direito à cidade (e sua negação) e a população em situação de rua?

Para responder a essas questões, lançamos um olhar sobre a realidade da PSR, com base nas informações resultantes da pesquisa nacional sobre a população em situação de rua e de um estudo exploratório realizado posteriormente na cidade do Natal (RN). Inicialmente, motivada pela demanda posta por

movimentos sociais, associações, órgãos governamentais e não governamentais que atuam com essa população, a Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua foi realizada entre os anos de 2007 e 2008 em 71 cidades brasileiras e iden- tificou 31.922 pessoas maiores de 18 anos vivendo em situação de rua. Desse total, 223 pessoas foram abordadas na cidade do Natal (RN) (SAGI/MDS, 2009).

Posteriormente, o Centro de Referência em Direitos Humanos (CRDH), vinculado à Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), conduziu uma pesquisa com a popu- lação em situação de rua da cidade do Natal (ARRAES-AMORIM, 2015). A pesquisa caracterizou-se como um levantamento de caráter exploratório e de corte transversal, na qual foram utilizados questionários e histórias de vida, adotando uma metodologia participativa junto à população, pelo tempo de mais de dois anos.

Embora se considere que os dados da pesquisa local não são quantitativamente representativos desse segmento no município, se observa que parte significativa dos resultados corrobora alguns achados da pesquisa nacional. Nesse sentido, fornecem elementos importantes para a presente discussão, motivo pelo qual são apresentados tendo como foco o perfil das pessoas entrevistadas e as dimensões relacionadas com as vivências dessas pessoas no espaço urbano.

A referida pesquisa identificou um perfil de pessoas em situação de rua composto por homens, pessoas naturais do estado do Rio Grande do Norte, que se autodeclararam como de cor parda ou negra, com média de idade entre 26 e 45 anos, e a maioria era solteira. As/os participantes tinham diferentes níveis de escolarização, sendo a maioria alfabetizada. A maior parte não recebe benefícios governamentais, porém

acessam serviços vinculados ao Sistema Único de Assistência Social (ex.: CRAS, CREAS, Albergue Municipal). Ressalta-se que as características sociodemográficas e econômicas seguem as tendências apontadas pela pesquisa nacional, nas quais se destacam a prevalência de pessoas do gênero masculino, em idade economicamente ativa, de raça/cor negra, com o primeiro grau de ensino inconcluso (SAGI, 2009).

Analisamos a relação entre a dinâmica do espaço urbano e esse segmento e, a partir disso, discutimos as questões que essa relação coloca para pensarmos o direito à cidade.