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Os caminhos metodológicos da pesquisa

Para alcançar os objetivos da pesquisa, como já dito, tomamos como fundamento a perspectiva da pesquisa- -intervenção, que se situa entre as chamadas pesquisas participantes. Rocha e Aguiar (2003) as colocam dentro de um paradigma de contraposição ao modelo científico clássico, o qual pressupõe uma separação entre sujeitos pesquisadores e objetos pesquisados, sendo estes últimos analisados de forma afastada e imparcial, na busca de uma verdade generalizável (universalizante), a qual se organiza por meio das racionali- dades que reproduzem o status quo. Em sua crítica, as pesquisas participantes ou participativas englobam, além da pesquisa-in- tervenção, a pesquisa-ação. Buscam também, ao contrário de uma neutralidade científica, aproximar a atividade da pesquisa do trabalho social, na medida em que têm como norteadora a

aproximação entre os clássicos polos científicos: sujeito/objeto, teoria/prática, ciência/política. Em se tratando da pesquisa- -ação, essa aproximação se refere ao objetivo de transformação concreta da realidade, pressupondo que os participantes da pesquisa compartilham com os pesquisadores uma condição de sujeitos histórico-sociais e, assim, devem ter papel ativo na construção do processo de pesquisar e transformar a realidade. O saber acadêmico interage, desse modo, com os saberes popu- lares dos sujeitos individuais e coletivos no sentido de funcionar como ferramenta de ampliação das vidas. É interessante lembrar também o que é trazido por Rizzini (1999), quando afirma que, na pesquisa social, o pesquisador não deve ocupar um lugar de “iluminado” ou “salvador” daquela comunidade, daqueles participantes, e sim deve estar sempre atento à sua posição no campo, num movimento de criticidade em relação a si e à problematização em relação ao fazer pesquisa. Nesse sentido, há também a necessidade de que ele tenha clareza de que seu lugar, sua história e sua identidade diferem daqueles participantes, de modo que a sua aproximação não faça com que ele se funde ao grupo.

Já a pesquisa-intervenção propriamente dita, apesar de se incluir nas características anteriormente citadas refe- rentes à pesquisa-ação, possui especificidades que, partindo da influência do movimento socioanalítico francês, também caracterizam a pesquisa como ato político. Desse modo, ela propõe intervenções desde a intensividade molecular até a extensividade molar e/ou vice-versa, abrangendo os compo- nentes das ordens micropolíticas conectadas com os blocos de (des)ordem macropolítica, compreendendo a relação de interfe- rência mútua entre sujeito e objeto não como uma barreira para

a pesquisa, mas, sim, como uma condição para que a própria pesquisa aconteça (ROCHA; AGUIAR, 2003).

Rocha e Aguiar (2003) situam essa perspectiva na gene- alogia foucaultiana, em que a pesquisa-intervenção crítica e amplia a base teórica da pesquisa-ação ou pesquisa participante. A pesquisa-intervenção possibilita, por meio da implicação, a análise dos lugares ocupados pelos sujeitos participantes da pesquisa, além de procurar analisar os processos sociais que ocorrem em um determinado contexto.

Tendo em vista que pretendíamos discutir as experiên- cias de violação de direitos sofridas por pessoas em situação de rua nos diferentes contextos institucionais públicos a que recorrem, buscamos colocar em análise a implicação dos atores envolvidos, convocando todos a refletirem sobre o seu papel na produção do cotidiano. Como pesquisadoras e pesquisadores, também colocamos constantemente em análise, durante o processo da pesquisa, a nossa própria implicação com o campo, com as pessoas e com as instituições que nos atravessavam (a universidade, a Política e as políticas públicas, o Estado etc.) e em que medida elas nos dirigiam ou capturavam no sentido da produção de práticas discursivas e não discursivas, movidas por forças instituintes (produzindo o novo) ou instituídas (que tendem à permanência e à reprodução).

Nessa perspectiva, a noção de implicação é destacada em oposição à perspectiva de neutralidade positivista. A implicação do pesquisador com seu campo de pesquisa e dos participantes, percebendo que lugar ocupa nesse processo e no mundo, é parte vital dessa perspectiva (LOURAU, 1993).

Desse modo, as estratégias metodológicas que elegemos procuraram trabalhar com a possibilidade de o pesquisador “contribuir efetivamente com os problemas de um coletivo

pesquisado, ou seja, sua capacidade de dispor de instrumentos teórico-metodológicos em prol dos objetivos existentes no grupo sob o qual sua ação vai-se debruçar” (PAULON, 2005, p. 20).

Com base nessa perspectiva teórico-metodológica, desenvolvemos o trabalho da pesquisa-intervenção a partir dos procedimentos metodológicos descritos a seguir.

1) Precedendo a entrada no campo e durante todo o processo da pesquisa, realizamos uma revisão bibliográfica a partir de material bibliográfico secundário impresso na forma de livros, capítulos de livros, artigos científicos, teses e dissertações ou em forma digital na internet sobre o tema; e de material bibliográfico primário, que incluiu documentos, material de divulgação, relatórios etc., colhidos com os diversos atores individuais, grupais e institucionais que encontramos no município de Natal. Esse levantamento contribuiu para o conhecimento e a contextualização dos modos de vida na rua e para a caracterização da população local em situação de rua, do ponto de vista psicossocial, bem como a identificação dos recursos, das políticas e das ações governamentais existentes voltados para essa população.

2) Quanto ao trabalho de campo, utilizamos uma série de procedimentos e técnicas de investigação e produção de dados. A primeira delas foi a busca ativa e visitas aos pontos de concentração de pessoas em situação de rua a partir da contribuição dos informantes-chave (profissionais dos serviços identificados). Depois aplicamos um questionário sistematizado, que seguiu o modelo da pesquisa nacional sobre população em situação de rua (BRASIL, 2008), com algumas dimensões e questões acrescentadas, com o objetivo de traçar um perfil psicossocial da população em situação de rua de Natal.

As entrevistas foram realizadas, num primeiro momento, seguindo o questionário, mas se ampliaram para além dele, produzindo histórias de vida. Boa parte das idas ao campo foi registrada em diários de campo, que eram lidos e discutidos semanalmente pela equipe, em reuniões de orientação dos projetos de pesquisa, extensão e supervisão de estágios. Os diários construídos a partir da experiência etnográfica no campo traziam tanto o registro dos fatos, as narrativas das pessoas, as descrições dos ambientes e do vivido, como também as impressões e inquietações das/os pesquisadoras/es, servindo assim como analisadores importantes no processo de análise das implicações da equipe da pesquisa.

Nosso campo foi constituído por locais onde havia maior concentração de pessoas em situação de rua. Na Zona Leste de Natal, onde há um grande número de pessoas em situação de rua, as entrevistas ocorreram em dois pontos: no bairro da Ribeira, que faz fronteira com o centro da cidade, e na Praça Vermelha, no centro da cidade, onde se distribuía um café da manhã que concentrava cerca de cinquenta pessoas e era promovido semanalmente por grupos religiosos. Esse se constituiu como nosso principal campo. Realizamos também o trabalho de campo em um canteiro na frente da Rodoviária Nova no bairro da Cidade da Esperança, na Zona Oeste da cidade, e em outro café da manhã semanal, promovido por uma igreja evangélica, na Zona Sul. As entrevistas eram realizadas, muitas vezes, enquanto as pessoas viviam seu cotidiano: no momento em que comiam, trabalhavam, descansavam ou estavam em busca de comida ou trabalho, iam conversando conosco. Assim, as entrevistas se tornavam mais complexas e ricas, de modo que as inconstâncias da rua se faziam presentes na prática da pesquisa.

Além do quantitativo de 159 entrevistas realizadas a partir dos dados do questionário, a pesquisa abarcou também o trabalho etnográfico de acompanhamento das rodas de conversa e oficinas temáticas realizadas pelo Movimento da População de Rua em Natal e de eventos promovidos pelo CRDH, cujas pautas giravam em torno das experiências, vulnerabi- lidades, dificuldades de se viver na rua, da precariedade dos recursos públicos e das dificuldades na relação com os equipa- mentos das políticas públicas que atendem a população de rua. Esses eventos fomentavam a produção do coletivo e também tinham um caráter de organização política, no sentido de traçar estratégias para o encaminhamento de demandas imediatas ou a médio e longo prazo, a serem dirigidas ao Estado. Assim, a partir da experiência no campo com a aplicação dos questio- nários e registros de histórias de vida, passamos a trabalhar também com as narrativas que eram produzidas nos encontros que fazíamos: rodas de conversa, cursos, oficinas e eventos.

Tem lugar de destaque nesse processo as reuniões sema- nais do Movimento da População de Rua, da qual participaram e participam, ainda hoje, alunos e alunas bolsistas de pesquisa e extensão, estagiárias e estagiários de diversos cursos de graduação e pós-graduação da UFRN e de outras instituições de ensino superior e profissionais de diversas áreas. Nesses encontros semanais que cumprem o papel importante de asses- soria à organização política do MNPR/RN, também se trocam experiências sobre a vida cotidiana, partilham-se dificuldades e necessidades, conquistas, vitórias e desafios, contam-se causos e histórias, festejam-se alegrias e compartilham-se dores, saberes e afetos. São momentos de fortalecimento do coletivo e das pessoas, de produção de vínculos e de fomento à grupalidade.

As rodas de conversa – principal metodologia utilizada nos eventos realizados pelo e com o MNPR/RN – como já dito, abordam os relatos sobre as vivências e percepções acerca das condições de vida, violações de direitos de que são vítimas e formas de enfrentamento. A escolha por esse formato de rodas de conversas justifica-se por permitir que os processos de diálogo – discussão e investigação – possam estar vinculados às próprias demandas e realidades das pessoas com quem é desenvolvido o trabalho. A ideia é a de que a discussão sobre direitos humanos e promoção de cidadania possa ocorrer de forma espontânea e livre de fatores que se interponham à comunicação, de modo a potencializar reflexões acerca de uma cultura de promoção e defesa de direitos humanos (ABADE; AFONSO, 2008).

Por fim, numa parceria entre o CRDH/UFRN e o MNPR/ RN, ao longo desses seis anos foram realizados: um Curso de Formação Política em que foram abordadas temáticas presentes no cotidiano de quem vive (n)a rua e outros conteúdos perti- nentes à organização da categoria; um curso de inclusão digital (o TEC Rua); o I Seminário LGBT da População de Rua; e quatro seminários estaduais (I, II, III e IV Seminário Potiguar da População em Situação de Rua) para a tematização e discussão das violações de direitos dessa população, suas demandas e reivindicações referentes à implementação da política pública local para esse segmento populacional, com profissionais e representantes do Estado responsáveis pela construção e efetivação dessas políticas. Desses eventos participaram também docentes e discentes da UFRN e de outras instituições públicas, privadas e do terceiro setor. As discussões realizadas nesses eventos, encontros, cursos e rodas de conversa foram registradas em atas de reuniões e diários de campo que, ao lado

de um vasto acervo de registros fotográficos dessas ocasiões, formam um relevante banco de dados sobre a população em situação de rua na cidade de Natal.

Para a apresentação e análise dos dados14, foi feita uma

primeira leitura do material, a partir da qual foram criadas categorias que orientaram eixos de análise e, assim, produ- ziram conexões e distinções entre eles, que apresentaremos a seguir, chamando atenção para o fato de que não caberia no escopo deste capítulo apresentar e discutir todas as categorias. Assim, focalizamos nos dados relativos a dois eixos analíticos.

Eixo 1 –Condições de vida e perfil psicossocial da população em situação de rua de Natal, no qual tratamos, além de indica- dores sociais dessa população – como acesso a direitos de saúde, à escolaridade, à assistência –, de elementos que dizem respeito ao contexto da rua, suas especificidades, as dificuldades que ela interpõe, e as possibilidades que proporciona.

Eixo 2 – Itinerários institucionais, no qual, a partir da leitura dos diários da nossa inserção no campo, traçamos em linhas gerais os caminhos percorridos por pessoas em situação de rua em busca da garantia dos seus direitos ou, muitas vezes, de sobrevivência, por entre as redes de assistência formal – fornecida pelas políticas públicas.

14 Para este capítulo, focalizamos nos dados quantitativos que pudemos compilar, de modo que o leitor tenha uma noção mais panorâmica do público-alvo do trabalho. Os dados que dizem das narrativas, das histórias de vida e das análises de nossas implicações no campo de pesquisa serão melhor explorados nos Capítulos 12, 13 e 14 deste livro, por meio do relato de outras pesquisas e experimentações que dialogam com a pesquisa aqui discutida e estão, direta ou indiretamente, a ela vinculadas.

Os achados da pesquisa e o que