• Nenhum resultado encontrado

Movimento social como expressão de poder político

“Aos esfarrapados do mundo e aos que neles se descobrem e, assim, descobrindo-se, com eles sofrem, mas, sobretudo, com eles lutam”.

(FREIRE, 1987, p. 12)

A condição/situação de rua requer daqueles que pouco ou nada têm o exercício imperativo da solidariedade e do cuidado mútuo, uma vez que ambos são uma forma de resis- tência, de sobrevivência. Bauman (2009, p. 17) acentua que para “as pessoas desprovidas de todos os recursos [...] (exceto da capacidade de realizar trabalhos manuais) ‘a proteção só pode ser coletiva’”. E tanto melhor se for organizada e politizada criticamente, pois a condição é uma condição desumanizante em que a questão social se traduz plenamente, em todas as suas

expressões. Concordo com Harend (1995, p. 48 apud CERQUEIRA, 2009, p. 198) quando cita que

a questão social consiste numa força desumanizadora; a pobreza é abjeta, porque submete os homens ao império absoluto de seus corpos, isto é, ao império absoluto da necessidade, como todos os homens a conhecem a partir de sua experiência mais íntima independente de todas as especulações.

Conviver durante um ano com essas pessoas remete a poucas especulações, pois a realidade concreta grita para uma negociação absoluta e diária com seus corpos: suas dores, sono, estômago, intestino, bexiga, menstruação, odores, vícios, e também para a negociação de seus vínculos, sonhos, pesadelos, desejos, aprendizagens e marcantemente suas lutas por direitos, em especial na implementação da Política Nacional de Inclusão Social da População em Situação de Rua.

Ante as desigualdades sociais e com as incertezas do caminho, é necessária uma acuidade incessante sobre o vigor das lutas revolucionárias, com atenção àquelas empreendidas pelos Movimentos Sociais; estas são formas de um diálogo e aprendizado crítico, atualizado e vivo sobre nossa própria práxis. Entre os recentes Movimentos Sociais organizados em nosso país, o Movimento Nacional de População de Rua (MNPR) – “autorreferido como Movimento Pop Rua” – é uma força intensa em direção às lutas de revisão das assimetrias sociais.

A população em situação de rua abrange um conjunto variado de pessoas que têm na rua a sua sobrevivência, abar- cando inclusive aquelas pessoas que têm uma residência para viver. Aquelas que têm na rua mais do que uma situação de suas vidas, nela moram/vivem e se reconhecem como população de

rua. Este é o registro que os traduz e consta na sua bandeira: Movimento Nacional da População de Rua (MNPR).

O Centro de Referência em Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (CRDH/UFRN), por meio de projeto extensão universitária, construiu a desejada organicidade com essa população, contribuindo com a gênese de sua organização em 2012. Desde então, com esse Movimento, fortalece processos para a gestão coletiva e mais autônoma de seus direitos sociais (ALMEIDA, 2015).

Essa experiência passa pela lógica dos direitos de base coletiva, como defende Harvey (2012, p. 19) na sua discussão sobre “del derecho de la ciudad a la revolucion urbana”, afirmando que “vivimos en una epoca en la que los derechos humanos se han situado en primer plano como modelo politico y ético” e que “ la idea del derecho a la ciudad [...] surge de las calles, de los barrios, como un grito de socorro de gente oprimida en tiempos desesperados” (HARVEY, 2012, p. 8). E não poucos são os gritos da população de rua em seu Movimento Social ou mesmo fora dele. As pessoas da rua, como no dizer de Freire (1987), “os esfarrapados do mundo”, esses desde sempre aí, a sós, reunidos em pequeno ou grande número, não cons- tituíam aos olhos do Estado em qualquer tempo um público, uma população, o outro complementar sobre quem o Governo estabelece seu papel de intervenção política, de gestão e de governo.

Em relação ao debate sobre sujeitos em situação de rua são usadas expressões nem sempre muito precisas, mas a desigual- dade concreta vivenciada por eles é a questão central. A melhor precisão de conceitos pode auxiliar estudos e pesquisas que, ao darem visibilidade a essa realidade, contribuam com estratégias para a redução dessas desigualdades e o fortalecimento das

resistências empreendidas por esses sujeitos (PRATES; PRATES; MACHADO, 2011).

Entre as suas resistências, está sua organização em expansão pelo país, hoje presente em 14 estados da Federação. Assim se fizeram visíveis aos olhos da Ciência, do Estado e da História e lutam para que seus direitos sejam para além dos mínimos sociais universais, mas para que políticas específicas ao seu perfil e demandas sejam implementadas. As respostas do Estado Brasileiro à histórica demanda da “Pop Rua” são tão novas que ainda não há uma metodologia para seu recensea- mento, visto que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) dispõe de contagem demográfica somente a partir de amostras domiciliares. Desse modo, foi somente no Governo Lula, por meio do então Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), que o Estado empreendeu a primeira caracterização dessa população, abrangendo 71 municípios – capitais e cidades com 300 mil habitantes. Tratava-se da Pesquisa Nacional Censitária e por Amostragem da População em Situação de Rua, construída com uma metodologia especí- fica para essa população “sem domicílio”.

A partir de diversos indicadores, a pesquisa sistematizou uma caracterização acerca desse segmento, o que embasou a Política Nacional da População em Situação de Rua, emitida como Decreto Presidencial nº 7053/09 (BRASIL, 2009). O decreto escapa às classificações preconceituosas que, não raro, inferem que a “Pop Rua” é composta por sujeitos perigosos, fracassados, vagabundos, mendigos, viciados, perdidos, em conflito com a Lei.

Análises sobre os processos das lutas do MNPR no Brasil – desde a organização do Movimento à implementação da Política Nacional – dão conta que a força de luta desse segmento tem se

mostrado intensa e em expansão, desde sua organização inicial em 2005 motivada pela chacina da Praça da Sé na cidade de São Paulo, em agosto de 2004. Desde então, o dia 19 de agosto se transformou no Dia Nacional de Luta da População em Situação de Rua em nosso país. Organizados como Movimento Social, há imensos desafios para consolidação da Política Nacional que lhes iniciou e acenou direitos; talvez o principal desafio seja a ausência de garantias para o seu financiamento regular e compartilhado para a sua implementação, já que a adesão por parte de estados e municípios é voluntária.

Desde o âmbito nacional, essa nova Política os colocava, pela primeira vez, na direção de processos públicos inclusivos. Porém, o Governo Temer, em poucos meses interveio com cortes severos nos investimentos sociais, já descaracterizando a força Ministerial do Desenvolvimento Social e dos Direitos Humanos. Tais retrações sobre direitos e a crise democrática na política brasileira têm sido denunciadas por entidades nacionais e internacionais, acentuadas pela aprovação da PEC 55 no dia 13 de dezembro de 2016, da Reforma da Previdência, entre outras.

No cenário global se implanta a maior concentração de renda da história produzindo uma desigualdade social sem precedentes. Os estudos de Michael Roberts (2016), economista marxista britânico, afirmam que na atualidade há mais de 2 mil multimilionários, que são realmente os donos do mundo e que, em 1% da população, se concentra mais da metade da riqueza mundial. O autor destaca ainda que enquanto o 1% de cima da pirâmide econômica tem 51% da riqueza, os 50% da sua base só têm 1%. Os outros 10% mais ricos, 140 mil pessoas em todo o mundo, possuem patrimônio superior a 50 milhões de dólares; somando os dois grupos de super ricos, eles são donos de 89% da riqueza do planeta. Essa desigualdade é o retrato mais cru da

questão social. Para haver tamanho acúmulo para tão poucos, o resultado só pode ser o roncar da fome, que subjuga pessoas à dor de seus estômagos.

Os documentos e estudos produzidos e sobretudo os modos de empoderamento do MNPR/RN desde sua organização procedem de uma relação orgânica com apoiadores que lutam por direitos humanos, destacando atividades contínuas de formação para a participação política, de geração de trabalho e renda com base na Economia Solidária. Assim, tanto os documentos quanto o movimento reconhecem o potencial e a maior autonomia nas alternativas e metodologias da Educação Popular, Agroecologia Urbana, Saúde Alternativa, entre outras potências do patrimônio popular. Nessas construções orgânicas e transdisciplinares, a dignidade da vida resiste e se reinventa, pois “talvez o desafio atual seja intensificar [...] os modos de cooperação que surgem aqui e ali, a inteligência coletiva que fervilha, as contra-subjetivações que pedem passagem e rede- senham nossa paisagem coletiva” (PELBART, 2008, p. 21).

O MNPR/RN, o CRDH/UFRN, a Economia Solidária e outros apoiadores formam um corpus social de poder político que permite ao Movimento representações em Conselhos Municipais e/ou Estaduais de Assistência Social, Saúde, Direitos Humanos e Habitação. Ainda no Conselho Nacional de Saúde – CNS, o Sr. Vanilson Torres, liderança do MNPR/RN ocupa a vaga de Conselheiro Titular como representação dos usuários do Sistema Único de Saúde – SUS. Outras lideranças de diferentes estados têm ocupado espaços significativos na gestão pública a exemplo do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) e do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) na pessoa do Sr. Leonildo José Monteiro Filho do MNPR/PR, que recebeu da Secretaria Especial de Direitos Humanos do Ministério da

Justiça e Cidadania o Prêmio Direitos Humanos 2016 por sua luta pela garantia dos direitos da População em Situação de Rua.

Estranhar e questionar por que os diferentes movimentos sociais nem sempre se articulam a partir da matriz de classe e, sobretudo, no enfrentamento da sequela mais perversa desse modo de produção que é a concentração de renda é manter vigilância sobre aquilo que o capitalismo ensina como sendo natural; a fome não é natural, ainda que assombre a história da humanidade desde sempre. A fome, no modo de produção que tem no excedente sua marca, não é sequer compreensível, mas parece tão natural que o ofuscamento sobre as materialidades históricas que expressa é reificada.

Nesse estranhamento necessário e crítico, é tempo de edificarmos com mais vigor, entre os diferentes modos de explicar e estar no mundo, os pontos que nos unem. Do mesmo modo é necessário esclarecer quais lutas, quais os elementos que nos são inegociáveis, mesmo com o alargamento das formas de compreender, explicar, caracterizar, viver e estar no mundo social contemporâneo, ou seja, praticarmos o exercício de reco- nhecimento mútuo que nos permita avançar com mais rapidez, sem perdermos a tenacidade ante as exigências anticapitalistas atuais.

Bauman (1998, p. 102) afirma que “ainda queremos que o trabalho seja feito. Apenas deixamos cair as ferramentas que se revelaram inúteis e procuramos obter outras que, quem sabe, ainda possam realizar a tarefa, pois as reconfigurações sociais são móveis, para o bem e para o mal” e assim sendo “ [...] estamos todos – de uma forma ou de outra, no corpo ou no espírito, aqui e agora ou no futuro antecipado, de bom ou de mau grado – em movimento; nenhum de nós pode estar certo/a de

que adquiriu o direito a algum lugar uma vez por todas” (BAUMAN,

1998, p. 118, grifo nosso).

Somando o argumento de Demo (2005, p. 39) de que a política social, pensada de forma mais avançada, queira supor “que agora, finalmente, vamos resolver o que nunca até hoje havíamos conseguido resolver. [...] muito menos significa que vamos dar conta do capitalismo” mesmo com as prerrogativas instituídas pela Constituição de 1988, em agravo profundo no Governo Temer. Ainda como afirma Demo (2005, p. 39), “parece peremptório: no capitalismo, em especial no periférico, não é possível que o social estruture o econômico”. Nada disso afasta o MNPR do RN e de outros estados de suas lutas por políticas públicas, não há recuo, não há desistência e bem menos inge- nuidade. Seu poder político tem vigor.

No cenário vindouro, teremos duas décadas de achata- mento nos investimentos de direitos sociais no Brasil, o que exigirá forças vivas que se contraponham a esta e a outras formas de aprofundamento da desigualdade social. Movimentos Sociais nos ensinam sobre experiências concretas de uma gestão comunitária que busca dilatar a materialidade das polí- ticas públicas em suas vidas e demandas. Há muitos exemplos históricos dessas conquistas, em especial no MST. Movimentos mais recentes como o MNPR terão a árdua tarefa de romper o recuo de Estado em relação a sua política, que sequer conta com orçamento vinculado ou a implementação elementar de serviços básicos, como o Consultório na Rua ou os Centros Pop.

Ainda cabe lembrar que o Encontro Mundial de Movimentos Populares, ocorrido em Santa Cruz de La Sierra, Bolívia, em julho de 2015, tem importância política plane- tária, porque referenciou a agenda das lutas anticapitalistas. Lá foram declaradas pautas políticas sobre reforma agrária,

meio ambiente e problemas sociais, que traduzem a urgência da revisão do modelo econômico. Desse evento surge a Carta de Santa Cruz, representação concreta das lutas coletivas dos movimentos sociais do planeta.

Do mesmo modo que aos movimentos populares, há pautas comuns de lutas entre as diferentes profissões, regiões, instituições e políticas públicas. São muitas as frentes em que lutamos juntos, são muitas as convergências, mesmo com nuances teóricas e/ou áreas de saberes diferentes. E é porque temos contribuições diferentes que urge problematizar nossos modos de gestão para a efetivação tanto das políticas sociais que defendemos quanto para as transformações societárias que buscam superar a força da desigualdade econômica.