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Cartografia dos processos de subjetivação

Rua dos Óculos Escuros relata que está na rua em conse- quência de uma vingança, após matar um dos participantes do assassinato de dois de seus seis filhos. Mas a maioria das pessoas revela ocorrência de conflitos domésticos, que por vezes chegam à agressão. Algumas pessoas entram em conflito com a Lei, a partir de situações originadas no convívio com o segundo companheiro da mãe, e não conformadas, reagiram, não se acomodaram e saíram de casa, passando assim a viver nas ruas.

A maioria das pessoas que acompanhamos, durante o dia, relata que está em situação de rua em consequência da dependência química. Nossa análise dos processos de subje- tivação não se reduz ao discurso da pessoa que fala “estou em situação de rua por causa do uso de drogas”. Existem outros atravessamentos que desconstroem o dito: droga como entrada e rua como saída ou rua como entrada e droga como

20 Usaremos nomes de ruas inventadas como pseudônimos dos participantes conforme cadastro junto ao Comitê de Ética em Pesquisa.

saída. Existem múltiplas entradas e existem múltiplas saídas (DELEUZE; GUATTARI, 2012), todas estão relacionadas ao que é um acontecimento para cada pessoa em situação de rua, por isso um acontecimento que pode levar uma pessoa a usar droga pode levar outra a deixar de usar e a viver na abstinência. Sem dúvida, a substância psicoativa é um dispositivo que faz parte do agenciamento dos processos de subjetivação das pessoas em situação de rua e da produção de subjetividades rualizadas.

Algumas pessoas usuárias de crack reconhecem a força da droga nessa sujeição maquínica; sentem-se culpadas e ignoram que a dependência química foi produzida, em geral, não pela via da experimentação das sensações que ainda pode produzir (DELEUZE, 1991), mas pelo desejo de produzir uma linha de fuga à sujeição social. A culpa também compõe a complexa rede de dispositivos no agenciamento dos processos de subjetivação da pessoa usuária de substância psicoativa que está em situação de rua. As instituições da violência, a polícia, a mídia e também alguns agentes dos estabelecimentos da rede de assistência social, como mostramos anteriormente, e da rede de atenção psicossocial acionam a culpa por meio das normas, produzindo uma dessubjetivação, e a pessoa em situação de rua acaba reproduzindo esse atravessamento moral que não corresponde necessariamente ao desejo como vontade de estar em situação de rua.

Rua do Operário anuncia durante um dos encontros que estava em abstinência há quase um ano e havia conseguido trabalho. Mas em função de um desentendimento com outra pessoa no Albergue Municipal, o psicólogo que coordena esse estabelecimento o expulsou; não tendo onde banhar-se, parou de ir ao trabalho e, depois, voltou a usar crack. A coordenação não desconhece a política de redução de danos

nem as referências para atuação do psicólogo junto à popu- lação em situação de rua (BRASIL, 2004, 2011), mas coloca as normas e regras instituídas no Albergue acima da perspectiva ético-estético-política e dos processos de desindividuação, experimentação e problematização que poderiam contribuir para ampliação da atenção psicossocial.

A maioria dos usuários de substâncias psicoativas e em situação de rua desistiu de ir ao Centro de Atenção Psicossocial (CAPS AD), alegando não ver progresso no tratamento oferecido pelos equipamentos utilizados nesse estabelecimento da rede de atenção psicossocial. Rua Nova Babilônia contraria a maioria. Ele faz tratamento no CAPS AD; mantém-se em abstinência há meses, desejando resgatar o amor, pois atribui o fim do casamento à droga. Os não ditos que marcam seus processos de subjetivação apontam para outros fios da teia de aranha, atravessamentos tais como interesse afetivo e questões de dependência econômico-financeira. Portanto, a droga como dispositivo de agenciamento dos processos de subjetivação tem operado molarmente ora como linha de fuga da sujeição social, ora como expressão da servidão maquínica do desejo: trata-se de sistemas de conexões diretas entre as grandes máquinas produtivas (capitalismo), as grandes máquinas de controle social e as instâncias psíquicas que definem a maneira de perceber o mundo (GUATTARRI; ROLNIK, 2010, p. 27).

Rua São Paulo mostra uma tradução dessa produção maquínica: “quem vive na rua não precisa roubar para ganhar dinheiro, pois as pessoas são boas e gostam de ajudar, só precisa entrar na mente das pessoas”. Ele exemplifica:

Tipo assim, eu vou na rua e paro uma pessoa em frente a uma farmácia e digo: bom dia, tudo bom? Desculpa te incomodar, não quero te pedir dinheiro, mas eu tô aqui com minha mulher e minha filha de seis meses – aí a pessoa me diz – o que você quer? Você quer dinheiro? – eu digo – não, mas minha filha tá precisando de leite e fralda. Ai se a pessoa tá com o cartão (de crédito) vai e passa. Ela não me deu dinheiro, mas eu vou lá e vendo e compro minha droga.

Aqui, evidenciamos, mais uma vez, a afirmação de Deleuze e Guattari (2012): toda política é micropolítica, toda política é macropolítica. Rua São Paulo agencia e denuncia nossa servidão maquínica a valores, normas e práticas de caridade socialmente aceitas. Ao redirecionar o destino das práticas caritativas, ele desterritorializa a produção de subjetividades capitalísticas, imprimindo um movimento instituinte molar em busca de satisfação e gozo, enunciando uma reterritorialização de seus processos de subjetivação que, nessa configuração, operam na mesma lógica capitalística.

Rua Mineiro dos Caiapós veio à Cidade do Natal a passeio, no período da Copa de 2014. Como possuía apenas um dos ingressos, resolveu trabalhar como voluntário nos outros dias, já que isso lhe possibilitaria entrar no estádio, assistir aos jogos e ainda receber certificado do voluntariado. Entretanto, ele foi assaltado duas vezes. No primeiro episódio, ainda no hotel, foram levados todos os seus pertences e, no segundo, ele acabou por sofrer uma lesão que o manteve em reabilitação. Essas condições o impediram de retornar à cidade de origem e ele passou a viver em situação de rua e à condição de albergado. Ele usa o Albergue Municipal destinado às Pessoas em Situação de Rua e participa das reuniões do Fórum e do movimento Pop Rua.

Mas não há, por parte dele, o reconhecimento nem o sentido de pertencimento à população em situação de rua. Em algumas dessas reuniões, debatíamos questões sobre trabalho; quando questionado, ele disse que as oportunidades de emprego são destinadas às pessoas que são da cidade.

Os processos de subjetivação da Rua Mineiro dos Caiapós mostram uma percepção que permeia o imaginário social, suscitando um enquadramento de comportamentos, valores e estereótipos (STOER; MAGALHÃES; RODRIGUES, 2004), acerca de qual seria a identidade da pessoa em situação de rua.

Sem dúvida, os lugares da exclusão que marcam o corpo da pessoa em situação de rua e a tal identidade segmentada vêm de uma produção maquínica hegemônica que se respalda em estereótipos e produz uma lógica molar que trata de agenciar uma multiplicidade de devires presentes (ROLNIK, 1995, 2000; GUATARRI; ROLNIK, 2010) nos modos de existência das pessoas em situação de rua; múltiplos devires que desconstroem a redução epistemológica subjetividades rualizadas.

Falamos desse toxicômano de identidade (ROLNIK, 2000) a partir dos processos de subjetivação de Rua Arco-íris. Ele narra que retomou o contato com o movimento Pop Rua porque viu neste a oportunidade de conseguir sua aposentadoria. Ele fazia parte do Centro Pop de um município da região metropolitana; afastou-se por uma divergência com relação à participação no Programa Minha Casa Minha Vida. Esse programa, a partir de alguns critérios, dava acesso à aquisição de imóveis para pessoas em situação de rua. Contudo, ele foi impedido de receber o apartamento porque seu companheiro é usuário de drogas; diante disso, houve a alegação, por parte de quem coordenava a entrega dos imóveis, de que ele poderia ter inúmeros problemas, desde a convivência com os vizinhos até a venda do próprio

imóvel. No momento da pesquisa, ele estava morando numa casa, mas estava prestes a voltar a viver em situação de rua, por não ter de onde tirar seu sustento devido a problemas de saúde na coluna, o que o motivou a procurar, junto ao movimento Pop Rua, orientações quanto à aposentadoria.

Como vimos, até aqui, a violação de direitos é outro analisador que emerge dos processos de subjetivação das pessoas em situação de rua; experimentamos isso durante as cartografias diurnas e noturnas, e também ao mapear as reinvindicações expressas durante as entrevistas em frente ao Albergue Municipal. As pessoas que fazem uso desse esta- belecimento para dormir defendem mais flexibilidade quanto ao acesso, especialmente, nos dias de chuva, desejando entrar antes das 19h; além da mudança nas formas de tratamento que os profissionais direcionam a elas.

Na Audiência Pública na Câmara de Vereadores21, que

tinha por finalidade debater a criação de uma Política Municipal de População em Situação de Rua do Natal, Rua Maria das Revoltas compartilhou seu relato de indignação, ao rememorar a história de seu filho.

Ela e o filho viviam em situação de rua e ele se envolveu com o uso de substâncias psicoativas. Depois de sofridas tentativas de retirar o filho dessa condição, conseguiu vê-lo em abstinência, longe da dependência. Contudo, ele tornou-se vítima da violência policial e da criminalização da pobreza. Rua Maria das Revoltas fala que a execução de seu filho foi

21 Audiência Pública para criação da Política Municipal de População em Situação de Rua realizada no dia 16/04/2014, na Câmara Municipal da Cidade do Natal, com o objetivo de pactuar responsabilidades entre os entes do poder público e a sociedade para a implementação e melhoria dos serviços voltados para a população em situação de rua.

consequência da associação que a polícia fez da imagem dele ao consumo de drogas. E revelou: “um representante da polícia de alta patente falou que muitos iriam morrer, pois não tinha outro jeito para acabar com tanto assalto”.

Essa história mostra a criminalização da pobreza que marca o corpo das pessoas em situação de rua, inclusive com bala e morte. Segundo Maria das Revoltas, “este caso é lançado na vala da violência urbana, mas na verdade é fruto de um movimento de limpeza para com aqueles que representam a pobreza e a droga”. A vida nua (AGAMBEN, 1998) da pessoa em situação de rua não é passível de luto (BUTLER, 2015), é tratada como resto, haja vista que o imaginário valorativo acerca dela não se altera frente à mudança de hábito, à transferência de localidade e à adesão a outro modo de vida.

Rua dos Anônimos narra que se dirigiu à recepção de um hospital do qual necessitava de atendimento, porém foi vítima de violência institucional devido ao modo como estava vestido, sendo estigmatizado por sua condição. Ao ouvir a história, Rua São Paulo faz uma tradução desses jogos de saber e poder: “a sociedade é visão; visa à aparência. Se tiver bem vestido, todos falam, se não estiver, ninguém fala”.

A violência simbólica e a violência física são cons- tantemente articuladas no agenciamento dos processos de subjetivação das pessoas em situação de rua, cujo objetivo é a produção de subjetividades rualizadas. Elas sofrem precon- ceito de alguns profissionais da saúde e da assistência social e denunciam agressões de policias e guardas municipais que as privam do direito de ir e vir restringindo seu percurso errante ao uso de certos locais da cidade.

À diferença das pessoas que cumprem pena em regime fechado e estão privadas da liberdade de ir e vir, entre as

pessoas que vivem em situação de rua há aquelas que levam uma vida nômade e experimentam a liberdade de surfar, como diz Rua do Mar.

Não obstante, quando um agente da polícia ou da guarda municipal carrega as grades da sujeição social e servidão maquínica que o aprisionam à produção de subjetividade capi- talística, ele atua atravessado pelas instituições da violência (BASAGLIA, 2010) e pelos códigos e normas do sistema prisional, exprimindo seu desejo de cercear a liberdade de ir e vir da pessoa em situação de rua e de reificar a lógica molar fora dos muros da prisão, criando muros da cidade e grades de prisão na rua. Esses agenciamentos creditam às pessoas em situação de rua práticas consideradas ilícitas: consumo abusivo de subs- tâncias psicoativas, tráfico de drogas, mendicância e roubos.

A criminalização das pessoas em situação de rua pressupõe um pré-julgamento que permeia a produção de subje- tividades rualizadas e que se sustenta na reprodução global de informações midiáticas (BAPTISTA, 1999; ROLNIK, 2000) e de discurso meritocrático, estigma social, ditos e não ditos que culpabilizam a pessoa em situação de rua. São práticas hegemô- nicas que mostram um esvaziamento do compromisso político tanto individual (sociedade civil) quanto coletivo (Estado) em relação ao outro, com o não útil ao mercado consumidor e produtor de produtos de consumo (SAWAYA, 2008; STOER; MAGALHÃES; RODRIGUES, 2004).

Nas várias atividades desenvolvidas, predomina a infor- malidade, a sujeição social e a servidão maquínica, como nós mostramos neste estudo. O lugar do trabalho nos processos de subjetivação das pessoas em situação de rua reflete a falta de condições materiais, anuncia a vida precária e denuncia a

exclusão que a produção de subjetividades capitalísticas destina à população em situação de rua.

Quando emerge o analisador trabalho nos processos de subjetivação das pessoas em situação de rua, algumas se declaram pedintes, outras roubam, há as que trabalham em

campanhas políticas22, as que consertam eletroeletrônicos,

as que fazem depósitos, os flanelinhas, as que descarregam caminhão, as/os vendedores, as pessoas que atuam como aviãozinho (termo geralmente usado para identificar pessoas que intermedeiam a venda de drogas) e ainda há quem diga: não faço nada.

A sujeição social e a servidão maquínica que atravessam os processos de subjetivação das pessoas em situação de rua, no trabalho informal, mostram uma reprodução molar do processo produtivo formal, naturalização e reprodução de valores tradicionais. Ao colocar o mundo do trabalho em uma centralidade exponencial, o capitalismo global trata de capturar as singularidades, ampliando a vulnerabilidade social das pessoas que se encontram à margem da distribuição da riqueza. Nos contextos da população em situação de rua, esse agenciamento redimensiona as visões e os valores dessa popu- lação com relação aos seus direitos e deveres, o que empobrece a concepção de cidadania, secundariza a responsabilidade social e a atuação do Estado (SANTOS, 2006) e produz modos de vida precária.

Esse esvaziamento dos processos de subjetivação singulares desestimula o cenário de produção e efetivação das políticas públicas; consequentemente, essa desmobilização

22 No período de realização da pesquisa, estavam acontecendo campanhas eleitorais.

promove um minguamento do controle social em torno dessas políticas, bem como uma distorção da participação social (SAWAIA, 2008; STOER; MAGALHÃES; RODRIGUES, 2004; GUATTARI, 1981).

Em nosso deambular pelas ruas, cartografamos processos de resistência e práticas de desnaturalização nos questiona- mentos das pessoas em situação de rua e na problematização das políticas públicas, na crítica aos administradores gover- namentais, nas denúncias acerca do funcionamento dos estabelecimentos e do uso de equipamentos, tais como bafô- metros para medir o teor de álcool no sangue de quem ia dormir no Albergue Municipal, no início de seu funcionamento.

Durante os encontros, nos quais havia a participação das pessoas em situação de rua e a produção do movimento Pop Rua, acompanhamos ações inventivas: produção de cartazes, participação nas reuniões do Fórum, audiências públicas, semi- nários e manifestações em defesa dos direitos das pessoas em situação de rua. Mapeamos uma nova dinâmica de apropriação do espaço e a mobilização de recursos éticos, estéticos e políticos até então desconhecidos, tais como autogestão e organização, cooperação, orientação política, experimentação e criatividade nas vivências do teatro do oprimido e na elaboração de outras ações políticas que foram emergindo e sendo compartilhadas, ampliando os debates e até a forma de participação no Conselho Nacional de Saúde.

Cada participante, a seu modo, vai se contagiando e contagiando as demais pessoas, produzindo bons encontros e aumentando a potência de ação do corpo (ESPINOSA apud SAWAIA, 2008) por meio de trocas de informações e fluxos do desejo. São atuações que as singularizam numa história de devir grupalidade por meio da qual as pessoas em situação de rua

vêm dizer quem elas são, afirmando seu modo de existência. Tal agenciamento coletivo do desejo no que se refere ao nível molecular rompe com a configuração de ser-do-grupo (modo indivíduo/identidade segmentada), dando vazão à biopotência que provém dos processos heterogenéticos (BARROS, 2013; PELBART, 2010).

Em uma das reuniões do MNPR, participamos da reali- zação de um círculo de cultura, juntamente com integrantes da equipe do CRDH, Consultório na Rua, outros pesquisadores e estudantes, além de várias pessoas em situação de rua. O tema gerador foi habitação, do qual emergiram dois subtemas: saúde e corpo. Iniciamos com as apresentações e o questionamento de qual o primeiro lugar que habitamos, sendo relatados: a barriga da mãe, o hospital e depois a casa. A sistematização girou em torno da problematização da identidade: pessoa em situação de rua. Durante esse processo cartográfico, bem como durante a pesquisa diurna, não emergiu o desejo de permanência na rua nem a fixação numa identidade; ainda que, durante a carto- grafia noturna, tenhamos acompanhado algumas pessoas cujo desejo está agenciado pela produção de subjetividades ruali- zadas. Quando o analisador é casa, os processos de subjetivação das pessoas em situação de rua se direcionam para uma lógica de moradia sob um viés do que é socialmente estabelecido como tal; lógica da qual nós também fazemos parte e pela qual também somos agenciados.