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A industrialização e os novos contornos do racismo

CAPÍTULO 2 GÊNERO, RAÇA E CLASSE NO MUNDO DO TRABALHO: UM

2.2. A dimensão de raça e a divisão racial do trabalho

2.2.3. A industrialização e os novos contornos do racismo

Seguindo a descrição de Ianni (1972), o período da industrialização correspondeu àquele no qual a cidade começou a suplantar o campo como ambiente sócio-cultural e político distinto. Os negros, por sua vez, apesar de terem ido para as cidades, não progrediram com ela, na medida em

que ficaram mais uma vez à margem dos postos de trabalho assalariado, bem como dos jogos políticos e administrativos das cidades. Novamente eles foram submetidos aos trabalhos subalternos e informais, dessa vez, alojados nas periferias das cidades.

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com uma questão de problemática social, descrita por Guimarães (2001, p. 101) da seguinte forma: “não temos mais escravos e agora não podemos mais fazer de conta que o negro livre é caboclo, que o negro livre é índio. Vai ser preciso incorporar agora esse povo, essa raça, nessa nação nova, criar símbolos nacionais”. Assim, iniciou-se um movimento de criação de símbolos que pudessem transmitir uma ideologia da democracia racial que mascarasse o processo de exclusão da população negra. A ideia transmitida era a de que “a cor é apenas um acidente. Somos todos brasileiros e por um acidente temos diferentes cores; cor não é uma coisa importante; “raça”, então, nem se fala, esta não existe, quem fala em raça é racista” (GUIMARÃES, 2011, p. 101).

Entre os símbolos criados encontra-se principalmente o carnaval, o samba, algumas comidas e a mulher negra como uma crença de que ela é “mais erótica ou mais ardente sexualmente do que as demais” (CARNEIRO, 2003, p. 6).

O autor Gilberto Freire acabou contribuindo nessa direção, a partir de sua obra Casa Grande e Senzala nos anos 1930. O autor descreveu um Brasil com cara de paraíso racial, onde brancos, negros e índios conviviam harmoniosamente. Ele também incentivava a ideia de mestiçagem, contribuindo para a tentativa de branqueamento do país. Segundo Carneiro (2003), obras como a de Gilberto Freire converteram a violência sexual contra as mulheres negras em romance e impediram- nas de mostrar o papel delas para a formação da cultura nacional.

Contudo, o discurso da democracia racial não se desenvolvia na prática. Tratava-se de uma forma de acalmar a população negra 50 sem inseri-la de fato na sociedade de classes que se formava nas cidades, embora tivesse efeitos discursivos importantes, visto que grande parte da população se convenceu com esse discurso.

Outro aspecto relevante no período é que, durante o processo de industrialização e formação das cidades, houve uma segregação geográfica da população negra, pois o desenvolvimento da indústria se deu de maneira mais intensa nas regiões Sul e especialmente no Sudeste, basicamente com o trabalho do imigrante (MELLO, 2005). Já nas regiões Norte e Nordeste, notadamente agrárias e menos desenvolvidas no campo industrial, predominou-se a mão-de-obra negra.

Tal como descrevem Hasenbalg, Valle Silva e Lima (1999), em São Paulo houve uma disputa entre os negros e os imigrantes pelos postos de trabalho que se abriam nas indústrias e a maior parte dos negros estava inserida fora deste mercado dinâmico. Mas no Rio de Janeiro, por exemplo, os

50 Cabe destacar que até o período colonial falávamos em brancos e negros remetendo-nos aos colonizadores e escravos.

Após o período de miscigenação e tentativa de branqueamento da população, novos conceitos em relação à cor da população foram sendo criados. Nesta tese, optou-se pela denominação do IBGE, em que a definição da cor é separada entre brancos, pretos e pardos, sendo que os pretos e pardos juntos representam os negros. Também utilizaremos a expressão não-brancos para nos referir aos negros (pretos + pardos).

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negros formaram 30% da mão-de-obra do setor industrial, o que se ampliou ainda mais com o fim das imigrações, a partir da década de 30. Já no Nordeste e em Minas Gerais, a imigração quase não existiu, logo foram os negros que ocuparam os postos de trabalho nas indústrias. Porém, o processo de industrialização nessas regiões foi menos intenso que em São Paulo.

Cabe destacar que foi somente na década de 1960 que o trabalho na agricultura se tornou assalariado no Nordeste. Já no Sul e no Sudeste, foi na década de 1950, mais precisamente, que os negros começaram a ampliar sua participação como proletários nas indústrias. Contudo, como explicam Hasenbalg, Valle Silva e Lima (1999), entre 1950 a 1980 não houve produção de estatísticas oficiais sobre cor ou raça da população negra no Brasil. O senso de 1960 apresentou uma série de problemas técnicos; o de 1970 excluiu a pergunta cor, que só foi reincorporada em 1980. Portanto, há uma carência de dados em torno da participação da população negra no período.

De qualquer forma, os autores apontam que entre 1950 e 80 havia grande diferença salarial por ocupação e também forte desnivelamento educacional entre brancos e negros. O rendimento médio dos profissionais liberais, maior parte homens brancos, era vinte vezes maior do que o do trabalhador negro (ibid.). Aos não brancos, analfabetos ou semi-analfabetos, com cerca de dois anos de estudo, era destinado principalmente o trabalho na agricultura, mas também havia os trabalhadores manuais que trabalhavam por conta própria no setor informal urbano, como os ambulantes, além das empregadas domésticas.

No outro extremo, havia ainda os empresários, empregadores e os trabalhadores não- manuais, na maior parte homens brancos. Já os trabalhos de escritório foram destinados às mulheres brancas que estudaram. De maneira geral, as mulheres brancas e negras tiveram uma participação bastante reduzida entre a classe operária industrial, sobretudo nas indústrias tradicionais. Os proprietários de terra, por sua vez, eram 0,7% da população e exclusivamente homens brancos (HASENBALG; VALLE SILVA; LIMA, 1999).

Com esta configuração do trabalho, na formação econômica-brasileira, os negros se mantiveram, sobretudo, na classe proletária devido o aumento da demanda de trabalho nas indústrias a partir de 1950. Alguns chegaram à classe média e muito poucos nas classes altas, especialmente os profissionais liberais com prestígio social. De qualquer forma, a principal questão a ser destacada é que os negros, na sua imensa maioria, ficaram segregados aos lugares específicos a eles reservados numa sociedade que se configurou na estrutura de classes (IANNI, 1972).

A partir dos teóricos descritos até o momento, buscou-se mostrar como o mercado de trabalho e a própria sociedade brasileira se estruturou baseada em um referencial de desqualificação

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da raça negra, que tem consequências até hoje, não só na inclusão do negro no mercado de trabalho, como também na ideologia racista dominante e no preconceito de cor51, bem como na desvalorização do universo simbólico da cultura afro-brasileira.

Pautadas nos estudos de Quijano, Ianni, Munanga, Hasembalg e Silva, entre outros autores, tentou-se mostrar como os negros foram integrados numa sociedade de classes pela divisão racial do trabalho, o que tornou a sua condição de vida bastante difícil. Tais discussões também foram de fundamental importância para compreender como a formação da sociedade de classes no Brasil acentuou e redefiniu o racismo.

Contudo, cabe aqui fazer um parêntese para discutir sobre o fato de que o preconceito racial não pode ser confundido com o de classe, visto que mesmo entre as mesmas classes sociais continua-se encontrando preconceito de raça.

Ao estudar desigualdades no mercado de trabalho, por exemplo, Mello (2005), observa que a desigualdade racial entre brancos e negros é uma dimensão fundamental da explicação da desigualdade entre ricos e pobres, mas isso não é o mesmo que dizer que as questões raciais se limitam a uma questão de classe. Ou seja, a sociedade de classes se estruturou através da opressão

de raça e, com o passar do tempo, essa estruturação em classes sociais passou então a acentuar e criar novos mecanismos para a ampliação do racismo e desproteção social da população negra.

Nessa mesma direção, Hasenbalg (1999), descreve que a maioria dos brancos se aproveitou e continua se aproveitando do racismo e da opressão racial para obter vantagem no preenchimento das posições na estrutura de classes. O autor aponta, a partir de suas pesquisas em análise de dados quantitativos, que quanto mais uma pessoa for identificada como negra pelos seus traços fenotípicos e pela sua cor, menores serão as suas chances de inserção em determinados postos de trabalho reconhecidos social e financeiramente, o que poderia permitir uma possível mobilidade social.

Segundo Hasembalg e Silva (1992), a história do país gerou um “ciclo cumulativo de desvantagens dos negros”. Para os autores, não apenas o ponto de partida dos negros no mercado de trabalho é historicamente desvantajoso, mas as novas descriminações aumentam a sua desvantagem em diversas esferas da dinâmica social, como a educação e as condições reais de vida e de acesso a direitos humanos. Portanto, não se pode explicar as desvantagens dos negros na sociedade atual, olhando somente para o passado colonial, ou se limitando a uma explicação de classe social que

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Não aprofundarei aqui o debate em torno da cor, mas cabe apenas um parêntese para destacar, tal como sugere Guimarães (2001), que a classificação por cor está intimamente ligada ao conceito de raça. Nas palavras do autor, “cor não é uma categoria objetiva, cor é uma categoria racial, pois quando se classificam as pessoas como negros, mulatos ou pardos, é a ideia de raça que orienta essa forma de classificação” (GUIMARÃES, 2001, p. 104). Dessa forma, cor seria o discurso que as pessoas utilizam para falar de raça.

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tenta convencer de que os negros são desvalorizados simplesmente porque são pobres.

É preciso compreender quais são as dinâmicas históricas e da sociedade atual que contribuem para manter a desigualdade social na distribuição das oportunidades e da riqueza entre negros e brancos. É preciso compreender como o preconceito racial se atualiza na dinâmica da divisão racial do trabalho com os novos contornos da sociedade, o que segue-se aprofundando na sequência deste capítulo.