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CAPÍTULO 3 – DISPUTA, RESISTÊNCIAS E CONTRADIÇÕES DE UM PROJETO

3.3. O auge do Projeto Coletivo Catende-Harmonia

3.3.2. Raça: silenciamento da questão

Em minhas entrevistas observei o silêncio sobre a questão, o que é uma marca de muitas Organizações Sociais Produtivas, como será identificado ao longo desta tese. De fato poucas são as iniciativas que vêm se debruçando sobre a presença dos negros no trabalho coletivo/associativo e sua implicação nos mesmos. Mesmo em uma região cuja grande parte da população é afro- descendente e teve sua origem fincada no trabalho escravo, não se fala sobre os e as participantes negros/as do projeto.

A maior parte das pessoas dizia que ali na região “ninguém era branco, branco”, dizia que “todo mundo era escurinho”, então chegavam à conclusão de que na Usina também muitos trabalhadores eram negros. Porém, a maior parte não se reconhecia como negro e isso não era um tema a ser discutido e debatido.

Em outras palavras, pelo fato de a maior parte ser considerada não branca, parecia não haver motivo para debater, ou seja, o tema era tratado como superado pela suposta igualdade natural existente. Não consegui descobrir, por exemplo, quantos trabalhadores negros havia na diretoria da Cooperativa, ou envolvidos no Projeto Catende-Harmonia. A resposta era sempre a mesma: “aqui todo mundo é escuro”. E logo depois da resposta vinha o silêncio que me indicava que essa era uma questão que não precisava ser trabalhada.

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por Florestan Fernandes na década de 50, este conceito continua sendo bastante coerente para explicar o silenciamento sobre as questões raciais ainda na atualidade.

Como explicam Hasenbalg, Valle Silva e Lima (1999), este mito passou a fazer parte de uma conformação ilusória de integração de raças, operando no imaginário popular e justificando a ausência da discussão sobre o tema. Isso ganha mais relevância no caso da região da Zona da Mata, onde a presença de pretos e pardos no campo é consideravelmente alta devido à história de colonização da região.

No entanto, não se discute, por exemplo, os privilégios que os usineiros brancos, descendentes dos portugueses e colonizadores tiveram, em contraposição à exploração dos descendentes de escravos que se tornaram os assalariados dependentes dos trabalhos oferecidos pelos primeiros. A questão de classe em Catende, por exemplo, não é interpretada também como uma questão racial, o que dificulta a própria identidade negra desses trabalhadores.

Na entrevista com Pedro, contudo, ele apontou uma pista de como essa participação entre brancos e negros não era igualitária, pois ele revelou que chegaram a fazer algumas discussões sobre cotas para negros nos projetos de qualificação desenvolvidos pela Usina:

Tinha a preocupação de incluir os negros. Aqui tem poucos indígenas, mas a gente pensava em cotas. É tão ruim tratar disso, tem que falar de cotas como se uma parte não fosse gente, mas se não tivesse isso a inclusão não ia acontecer. Cotas para inserir nos cursos, na formação das diretorias...a gente discutia sobre incluir mulheres e jovens. Não tinha muito isso de branco e preto e tal, a participação já existia.

Observa-se certa contradição nesta fala, pois ao mesmo tempo em que Pedro explicita a necessidade de cotas e de inclusão, diz que a participação dos pretos já existia. Ao falar sobre cotas, ele se referia principalmente aos jovens e às mulheres em relação aos projetos já descritos neste capítulo.

Já Artur descreve que notava a desigualdade existente, mas que esse não era um tema prioritário, mesmo porque, assim como outros temas de Catende, as questões apareciam a partir da realidade prática e não foi observada a necessidade de investir nessa questão, tal como sentiram no caso das mulheres e dos jovens independente de serem brancas ou não-brancas.

Em minha compreensão, a Zona da Mata incorporou o discurso da mestiçagem, como descrito por Guimarães (2002), em que, por serem todos “mestiços”, não haveria um divisor entre brancos e negros. Ao nos remetermos a história da Zona da Mata descrita neste capítulo, de fato se trata de uma região onde há uma grande parcela da população mestiça. Essa concepção, no entanto, foi cunhada como crença pelos abolicionistas brasileiros e pelos colonizadores europeus, na tentativa de esconder a exploração dos negros.

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Após a abolição, Guimarães (2002, p. 139) explica que “o Brasil moderno deu lugar à construção mítica de uma sociedade sem preconceitos e discriminações raciais”. Este Brasil é exatamente o que transformou o escravo em trabalhador assalariado, negando-lhe o seu pertencimento aos seus grupos étnicos. Paralelo a essa negação do que era próprio desses grupos, negou-se também o espaço no campo político e o acesso a determinados espaços de poder, mas com a impressão de que as oportunidades eram as mesmas, afinal, todos são considerados iguais.

Santos (2007) acrescenta ainda que o colonialismo deixou uma marca que se tornou difícil reconhecer “o outro”, ou seja, o negro, como ser-humano. Tornou-se difícil reconhecer a força de trabalho do negro como fundamental, uma vez que o colonialismo a desvalorizou em comparação com a mão de obra branca especializada. Contudo, isso foi maquiado pelo mito da democracia racial e pelo convencimento de que todos são iguais.

É nesse não reconhecimento que o autor indica o papel do silêncio, ou melhor, do silenciamento, visto que a cultura ocidental e a modernidade, por meio do contato colonial de desprezo, apagaram outras culturas (indígena e africana), chegando a destruí-las. No lugar delas, ficou justamente o silenciamento. Para o autor esse é um de nossos grandes desafios: “como fazer o silêncio falar de uma maneira que produza autonomia e não a reprodução do silenciamento” (SANTOS, 2007, p. 12).

Partindo de minhas observações descritas em diário, notei que a maior parte dos trabalhadores do campo que eu entrevistei eram negros, homens e mulheres. Assim como eram negros os presidentes de Associações que tive contato, bem como o agricultor e o mecânico que viraram diretores da cooperativa. Já as lideranças do Projeto entrevistadas, as quais vieram dos movimentos religiosos e sindicatos da região, eram brancas. Contudo, não é possível tirar maiores conclusões em torno da divisão racial do trabalho no projeto, pois não pude observar a Usina em época de funcionamento. Também não existem dados que digam quantos trabalhadores brancos ou negros trabalhavam no campo ou na Usina e quais lugares ocupavam na Usina, e tampouco existe pesquisa que tenha investigado essa questão.

Porém, há que salientar que os estudos da região (ANDRADE, 1998, 2001) revelam que os ex-escravos continuaram trabalhando nas propriedades rurais, sob regime de baixa remuneração, como assalariados no corte da cana, tal como já descrevemos nesta tese. De maneira geral, historicamente na região, os negros foram qualificados para um trabalho específico, o do corte da cana, e poucos foram qualificados para o trabalho nas Usinas. Quando chegavam nas Usinas eram encontrados principalmente no chão de fábrica. Essa história se perpetuou na região e configurou a

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divisão racial do trabalho marcada pelo lugar do negro na área rural e no corte da cana, e pelo lugar do branco na cidade e na Usina. Embora alguns deles tenham adentrado na Usina no chão de fábrica, formou-se um sub-grupo dos trabalhadores negros que não foram para as áreas administrativas das Usinas, o que acabou de refletindo em Catende.

A fala de Cristina nos ajuda a compreender um novo elemento que se trata da consciência em torno deste tema e desta história da região. No caso das mulheres, mesmo com todas as contradições, tratava-se de um tema que aos poucos foi ganhando espaço e entrando em pauta, acompanhando inclusive a evolução do movimento feminista, as políticas públicas de gênero e a contribuição de algumas mulheres conscientes sobre a temática, como no caso de Cristina, de Dona Helena (educadora que se tornou vereadora na região), das filhas de Dona Helena, entre outras. Mas a questão racial não atingiu a mesma relevância.

Encontrava muitos negros no projeto, mas também discutir a negritude aqui é difícil. Que nem, eu sou negra e a maioria era negros, embora não tivessem essa consciência. É bom dizer isso, porque se você perguntar pra eles, a grande maioria vai dizer que não é negro. Aqui essa questão da identidade étnico-racial ainda é muito complicada aqui. Não existiu a discussão aqui. Nunca, em nenhum momento eu me lembro da gente fazer uma discussão sobre isso aqui, em nenhum momento de Catende. Eu, Artur e Hugo tínhamos essa consciência, mas mesmo a gente nunca colocou essa discussão para ser pautada. Eu me lembro inclusive quando nós tivemos o projeto de juventude, que foi muito bom, pra mim também foi um marco, um divisor de águas num projeto de educação em Catende. E a gente colocava a questão da cor pra preencher a fixa e nenhum se colocava como negro. Nenhum. Eles eram negros, mas não diziam. E a gente discutiu essa questão, mas não colocamos como um elemento para ser discutido com os grupos.

Como descreveu Cristina, mesmo percebendo que os jovens não se identificavam como negros, essa discussão acabou sendo silenciada, assim como as questões raciais foram silenciadas historicamente. No caso dos jovens que não se reconhecem como negros, eles seguem o movimento de branquear-se para serem aceitos e intelectualmente reconhecidos. Conforme elucida Ianni (1972, p. 236), a ideologia dominante do branco colocou o negro como intelectualmente inferior. Já a ideologia racial do negro foi fundada na relação de inferioridade com o branco. Assim, o negro se vê a partir “das abstrações falsas engendradas na mente do branco”. Logo tentar branquear-se e ser o que ele não é a partir do referencial do branco é uma tentativa de ser aceito e ocupar espaços.

Observa-se que o mito da democracia racial e da mestiçagem ainda impera e o tema não foi encarado como uma necessidade pelo Projeto. Além disso, as políticas públicas voltadas à população negra são mais recentes e os seus ecos demoraram um pouco mais para se difundir.

Segundo Jaccoud (2008), o debate público em torno das questões raciais tem se intensificado. Desde a década de 1980, um conjunto diverso de ações vem sendo implementado, primeiramente nos governos estaduais e municipais e, progressivamente, passaram a ser

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desenvolvidas também pela esfera federal. Mas a autora afirma que foi somente nos anos 2000 que as iniciativas conquistaram a devida importância, ganhando espaço em algumas instituições públicas, como a Universidade e o Ministério Público do Trabalho. Ações como o estabelecimento de cotas, combate ao racismo institucional, além de formação sobre o tema nas escolas e no mercado de trabalho, bem como programas de valorização da cultura e da história negra, reforçando a própria identidade nacional, também apoiaram a amplitude da discussão, auxiliando para o fim do silenciamento em torno do tema.

Porém, essas questões ainda eram muito novas para Catende, que tinha uma prioridade em manter a Usina e pensar na renda de toda a população, brancos e não-brancos; nos empregos e em como manter minimante alguns direitos trabalhistas, ou seja, no eixo classe social. Os eixos em torno da consciência de gênero e raça não tinham a mesma magnitude.