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CAPÍTULO 2 GÊNERO, RAÇA E CLASSE NO MUNDO DO TRABALHO: UM

2.1. A dimensão de gênero e a divisão sexual do trabalho

2.1.1. As relações de Gênero

Uma das primeiras mulheres a escrever sobre o conceito de gênero foi Gayle Rubin, no ano de 1975, quando afirmou que “um sistema de sexo/gênero consiste numa gramática, segundo a qual a sexualidade biológica é transformada pela atividade humana” (RUBIN apud SAFFIOTI, 2004, p. 108). Porém, o conceito de gênero ganhou relevância com os estudos feministas em finais de 1980 e mais precisamente em 1990.

Segundo Guacira Louro (2002), o termo “gênero” faz parte da tentativa das feministas contemporâneas de reivindicar um certo “terreno de definição”, para sublinhar a inconsistência em diferentes teorias para explicar as desigualdades entre as mulheres e os homens. Nesse processo, tais estudiosas começaram a encontrar não somente uma “voz teórica própria”, como também aliados/as acadêmicos/as e políticos.

No entanto, o esforço em elaborar esse conceito não garantiu, de forma imediata, que as questões de gênero fossem reconhecidas como igualmente políticas, prioritárias e urgentes. Além de posturas ideológicas, Louro (2002, p. 228) salienta que, inicialmente, e mesmo na atualidade, o conceito não possuía uma compreensão única, tampouco se apresentava com uma “tradição teórico- epistemológica sólida”, tal como o conceito de classe, por exemplo.

As distintas compreensões em torno do gênero foram muito bem elucidadas por Joan Scott (1995) em seu texto “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”. Texto este, por sinal, que tem se apresentado como uma referência para os estudos de gênero, principalmente pelo fato de essa autora ter introduzido no conceito a presença do poder nas relações entre homens e mulheres.

Segundo Scott (1995), as feministas começaram a utilizar a palavra “gênero” “como uma maneira de referir-se à organização social da relação entre os sexos” (SCOTT, 1995, p. 1). Na década de 1990, ganhou destaque com as feministas americanas que “queriam insistir na qualidade fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo”. No sentido literal, para as americanas, a palavra indicava uma “rejeição ao determinismo biológico implícito no uso de termos como “sexo” ou “diferença sexual””. Portanto, Scott elucida que o “gênero” sublinhava “o aspecto relacional das definições normativas de feminilidade” (ibid.).

Conforme descrevem Louro (2002) e Saffioti (2004), ainda que limitado, existe um consenso em torno das relações de gênero, já cunhado por Simone de Beauvoir ao afirmar que “ninguém

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nasce mulher: torna-se mulher”: as relações de gênero não são um produto biológico, mas uma construção social do masculino e do feminino, que tem prejudicado especialmente as mulheres. Portanto, gênero contesta a naturalização das desigualdades entre homens e mulheres em diferentes práticas sociais e espaços de luta e de vida. Nas palavras de Scott (1995, p. 76), “o uso do “gênero” coloca a ênfase sobre todo o sistema de relações que pode incluir o sexo, mas que não é diretamente determinado pelo sexo nem determina diretamente a sexualidade”.

É importante notar que falar de gênero não é o mesmo que falar de mulher ou de sexo, tendo em vista que as relações de gênero são construídas por mulheres e homens, independente de sua opção sexual e afeta toda a sociedade. O conceito propõe muito mais do que incorporar as mulheres nas análises teóricas; propõe mostrar como são relações que também estruturam a sociedade e que merecem amplo destaque social.

Scott (1995, p. 83) salienta a importância de conceber a “realidade social em termos de gênero”. Nessa direção, gênero pode ser compreendido como uma categoria analítica que nos ajuda a explicar com profundidade as mudanças na sociedade, questionando os significados em torno do ser homem e do ser mulher em diferentes instituições e organização da vida social. A autora indica que devemos pensar a mulher e refletir sobre sua vida social não como um “produto das coisas que faz, mas do significado que as suas atividades adquirem através da interação social concreta” (ibid, p. 86).

Aprofundando esta discussão a partir de uma noção das relações de poder presente em Michel Foucault, bem como revendo o conceito de gênero em distintas teorias, Scott (1995) apresenta a sua definição de gênero, abordando dois aspectos em especial: “1) o gênero é um elemento constitutivo das relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e 2) o gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder” (SCOTT, 1995, p. 86).

Nesta elaboração conceitual Scott (1995) salienta ainda quatro elementos que se relacionam. O primeiro corresponde às representações simbólicas evocadas em torno das relações entre homens e mulheres, exigindo reflexões sobre como são criados estes símbolos e em que contextos. Num primeiro plano, as diferenças entre homens e mulheres são evidentes, “já que ocorrem concretamente em nível do corpo, no funcionamento glandular e nas funções reprodutivas” (WHITAKER, 1988, p. 10). A questão que se apresenta é que a sociedade busca reinterpretar essas diferenças de modo simbólico e artificial, transformando-as em desigualdades sociais que atingem diferencialmente homens e mulheres do mundo inteiro.

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significados simbólicos” (ibid, p. 86). Esses conceitos normativos estão contidos na religião, família, ciência, política, nas leis e tomam a forma categórica do que significa ser homem e ser mulher, ou seja, o masculino e o feminino de forma binária, sendo que estas normas acabam por ser impostas como se fossem “frutos de consensos sociais”.

Em relação ao terceiro aspecto, Scott trata da necessidade de uma visão mais ampla do conceito de gênero, que deve incluir uma concepção política e fazer referência a como estas relações se manifestam na economia, no trabalho, nas diferentes instituições e na organização social como um todo. Já o quarto aspecto refere-se à identidade subjetiva, desde que seja analisada a partir de uma visão histórica, visto que os homens e as mulheres não cumprem sempre as mesmas prescrições sociais. Para a autora, as identidades também são construídas, a partir de organizações e “representações sociais historicamente específicas” (SCOTT, 1995, p. 88).

Esses elementos não são imutáveis, mas se apresentam de distintas formas e com diferentes contornos em cada cultura, a cada momento histórico, dependendo de interações e construções sociais. Mesmo mantendo os seus princípios organizadores, estas relações se manifestam de distintas formas no tempo e no espaço. Tal possibilidade mutável nos permite compreender, em consonância com distintas autoras (SAFFIOTI, 2004; WHITAKER, 1988; KERGOAT, 2009), que a discussão em torno das relações de gênero nos faz questionar o “destino natural da espécie” (KERGOAT, 2009, p. 68), revendo o que efetivamente devem ser papéis de homens e mulheres, e, mais do que isso, compreender como estas desigualdades configura o social. Para essas autoras, a perspectiva de gênero é uma opção e um compromisso pela mudança de um sistema de dominação e discriminação.

Cabe lembrar, conforme já citado, que, embora haja certa concordância em torno do conceito de gênero no que tange às diferenças entre homens e mulheres como não biológicas, mas como fruto de uma construção social que implica em desigualdades, com sérias conseqüências para as mulheres, não existe ainda um consenso em torno do termo.

Contudo, não serão aprofundadas aqui todas as vertentes que tratam deste tema como também os seus pontos de convergência e divergência. O objetivo é compreender o cerne das relações de gênero para pensá-las no mundo do trabalho na atualidade. Exatamente por isso esta elaboração será ampliada a partir do debate desenvolvido pelas feministas francesas em torno do tema, as quais pautam a sua teoria a partir do conceito de “relações sociais de sexo” (KERGOAT, 2009; MARUANI e HIRATA, 2003), vertente sobre a qual este texto se dedica a seguir.

Nesta perspectiva, são centrais as discussões em torno da divisão sexual do trabalho, já que, segundo suas autoras, foi observando as relações de opressão e as bases materiais em torno do

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trabalho das mulheres que as feministas tomaram consciência do processo de exploração em que viviam: “tornou-se coletivamente evidente que uma enorme massa de trabalho era realizada gratuitamente pelas mulheres; que esse trabalho era invisível; que era feito não para si, mas para os outros e sempre em nome da natureza, do amor e do dever maternal” (KERGOAT, 2009, p. 68).