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Outras críticas relevantes: Economia Solidária e Autogestão

CAPÍTULO 1 – O PANO DE FUNDO DA TESE: A ECONOMIA SOLIDÁRIA E SUA

1.3. FASE 3 – A ampliação da Economia Solidária: aproximando-se de uma definição

1.4.1 Outras críticas relevantes: Economia Solidária e Autogestão

Segundo Faria (2009), o cerne do conceito de autogestão está em que ele propõe, de um lado, destruir a noção de economia atrelada ao lucro, à exploração e à dominação e, de outro, contrapor-se à ideia de política reservada a um número restrito de políticos com ênfase para a radicalidade da democracia direta e não representativa.

Para Faria (2009), tal concepção do conceito de autogestão se inscreve na tradição anarquista de Proudhon (1851), que propôs a construção de unidades federalistas sem um governo central, mas baseada em comunas autogeridas. Tratava-se de um socialismo mutualista e federativo. Já em 1920 o termo ganha relevância nas correntes marxistas revolucionárias, como com Rosa Luxemburgo, na oposição operária russa, etc. Porém, o conceito somente ganhou sentido etimológico a partir de 1968, quando o termo autogestão assumiu na França o sentido de uma democracia radical, a qual propunha a “volta às origens do socialismo baseando-se nas perspectivas do comunismo e recusando aos partidos de vanguarda o monopólio sobre a representação dos interesses dos cidadãos” (MOTHÉ, 2009, p. 26).

Num outro momento histórico, Mothé apresenta que, no início do século XX, o termo autogestão volta a ser utilizado pelos anarcossindicalistas, trazendo a reflexão de que “o trabalho manual não é somente uma força, mas um produto da inteligência” (MOTHÉ, 2009, p. 28). Ideia

que foi retomada na década de 1970 pelos gestores das empresas industriais, “quando se constatou que o conhecimento prático dos assalariados de base era indispensável para se melhorar a racionalidade dos processos de produção” (ibid.).

No início do século XXI, contudo, segundo Monthé, o termo passa então a ser utilizado entre os “autogestionários que criticavam a separação entre dirigentes e executantes” exigindo a participação política e democrática dos trabalhadores, não apenas nas empresas, mas na vida social política como um todo, porém, com um sentido menos revolucionário.

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pessoas poderiam ter acesso ao capital cultural e às informações necessárias para participarem diretamente dos processos democráticos, sem precisarem de representantes. Apesar de novos arranjos, o termo não teria perdido “o desejo de mudança” o qual o inspirou historicamente (ibid.).

Porém, alguns autores como Mothé (2009), alertam para a dificuldade de manter a autogestão em sua radicalidade, visto que compreende a democracia direta como possível somente em grupos pequenos. Nas palavras do autor, “as constatações empíricas permitem afirmar que resultados eficazes da democracia direta podem verificar-se entre um número limitado de pessoas, em um espaço público em que cada indivíduo possa expressar-se mediante outros recursos, além de aplausos e gritos” (MOTHÉ, 2009, p. 29). Além disso, o autor afirma que quanto mais distantes geograficamente estão as pessoas, mais se torna necessário recorrer à democracia representativa.

Compreende-se que é nesta discussão que estaria localizado o termo autogestão para a Economia Solidária, sobretudo a partir de Singer, que se apropriou do conceito para representar organizações autônomas de trabalhadores no interior do capitalismo, com uma nova forma de gerir empreendimentos. Mas, para Faria (2009), ainda que com esta nova utilização, o termo autogestão sem restrições não deveria ser utilizado, pois na análise do autor essa apropriação causa ambiguidade, na medida em que o termo ainda pressupõe a ideia de transformação socialista em seu sentido pleno e social. Assim a ES teria mais pretensões do que ela é capaz de abarcar atualmente.

Com isso, Faria (2009) não despreza a validade da Economia Solidária e suas experiências, porém, ele enfatiza o erro conceitual em relação ao que denomina autogestão social, que seria a autogestão plena, mas encontra um campo para a ES na chamada autogestão parcial ou coletivista.

Para o autor, a autogestão parcial ganha espaço nas próprias brechas do capitalismo e propõe mudanças cruciais na organização do trabalho, mas não propõe a revolução socialista presente na autogestão social. Trata-se de uma possibilidade encontrada em experiências que o autor denomina de “Organizações Sociais Produtivas” – OSPs, apresentadas como o enfrentamento com o modo de produção capitalista pela autogestão parcial, mas não a sua superação.

Embora pareça semelhante à ideia dos empreendimentos solidários sugeridos por Gaiger, Faria (2009) salienta que a diferença está em que as OSPs referem-se apenas às organizações de unidade produtiva, tendo como principais objetivos: produção das condições materiais de sobrevivência, solidariedade e gestão coletivista do trabalho ao nível da unidade de produção.

O autor (ibid.) tampouco se refere a todas as cooperativas e associações, mas àquelas que se diferenciam pelas suas características de autogestão parcial ao nível das unidades produtivas. Além disso, Faria (2009) se refere às experiências que sejam capazes de unir os trabalhadores e as

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trabalhadoras em torno de um projeto social comum e não de caráter unicamente econômico. Com essas delimitações nota-se que nem todos os empreendimentos mapeados pelo SIES e denominados como sendo de Economia Solidária poderiam ser considerados uma Organização Social Produtiva de autogestão parcial. Ou seja, Faria (2009) descreve que a autogestão, mesmo que parcial, não pode estar reduzida à criação de empregos ou a um status jurídico.

Em sua compreensão define pelo menos três determinações para o conceito de autogestão parcial: (i) “a superação da distinção entre quem toma as decisões e quem as executa, no que diz

respeito ao destino dos papéis em cada atividade coletiva organizada com base na divisão do trabalho”; (ii) “a autonomia decisória de cada unidade de atividade”; (iii) valorização da participação das pessoas em todas as esferas da organização, o que requer envolvimento amplo, técnico, de gestão e de formação integral (ibid., p.324). Com isso, as OSPs pretendem, pelo menos, interferir diretamente nas relações de poder dos trabalhadores no processo econômico, ainda que se mantenham no interior do capitalismo.

De qualquer maneira, mesmo para estas Organizações Sociais Produtivas a principal questão continua sendo a contradição entre manter as características de autogestão parcial convivendo com o sistema capitalista. Entre as dificuldades que as OSPs podem enfrentar, Faria salienta que a principal delas é construir novos estilos de vida e assumir a prática do consumo solidário em meio a tantos atrativos da sociedade capitalista, priorizando a produção de valores de uso que satisfaçam as necessidades humanas e construindo um projeto coletivo de vida. Porém, embora reconheça as dificuldades existentes, Faria (2009) considera que é preciso compreender que a OSP possui outra lógica e não pretende disputar o terreno com o sistema de capital, pois se configura como sua contradição.

Com isso observa-se que o autor desenvolve uma crítica à imprecisão conceitual presente na Economia Solidária, visto que, para ele, é preciso rever o conceito de autogestão a partir do que as experiências práticas estão efetivamente realizando, sem generalizá-las e sem ter a pretensão do que elas podem vir a ser sem que tenham condições para isso.

Após essa descrição cabe aqui um posicionamento em relação à utilização do conceito em questão. Faz-se necessário compreender as ponderações propostas por Faria, o que me fará utilizar o conceito de autogestão parcial e de Organização Social Produtiva. Neste conceito compreende-se que é fundamental não perder a importante dimensão da ampla participação popular com vistas à

construção de um processo democrático que permita o protagonismo das e dos trabalhadores que se lançam às iniciativas de trabalho coletivo/associativo. Contudo, nesta tese, o termo somente será

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completo se abarcar também a compreensão de que, ao mexer na estrutura hierárquica do trabalho, é fundamental incluir as dimensões da divisão sexual e racial do trabalho. Ou seja, não basta pensar apenas nas relações de trabalho manuais e intelectuais e na participação direta nas unidades de produção, mas também em quem realiza esse trabalho, buscando contribuir para a superação das desigualdades raciais e sexistas no mundo trabalho. Ao longo desta pesquisa a importância desta dimensão para a autogestão parcial ficará cada vez mais evidente, uma vez que ela busca provar que não é possível falar em igualdade de divisão social do trabalho 39 quando as OSPs dividem de forma diferenciada o trabalho de homens e mulheres, brancos ou negros, etc.

Diante disto, o próximo capítulo ampliará os argumentos em torno da divisão sexual e racial do trabalho para elucidar tal posição e comprovar a necessidade de pensar, não apenas o termo autogestão, mas a sociedade como um todo, em termos de classe, raça e gênero. Somente assim será possível ampliar a tentativa de construção da autogestão parcial nas OSPs pesquisadas.

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Segundo Bottomore (2001, p. 112) ao explicar o pensamento marxista, a divisão do trabalho é uma condição necessária para a divisão de mercadorias, pois “sem atos de trabalho mutuamente independentes, executados isoladamente uns dos outros, não haveria mercadorias para trocar no mercado”. Contudo, o autor descreve que a recíproca não é verdadeira, na medida em que a produção de mercadorias explorada no mercado capitalista, não é uma condição para a existência de uma divisão do trabalho. As sociedades primitivas, por exemplo, conheciam a divisão do trabalho, mas os produtos do seu trabalho não eram convertidos em mercadorias. Deste modo, o autor define que existem dois modos de compreender essa divisão. A primeira seria a divisão social do trabalho, existente na relação de exploração do trabalhador ao converter os produtos em mercadorias, na troca entre capitalistas e pautada na acumulação de capital de uma classe em detrimento de outra. E a segunda seria a divisão do trabalho entre trabalhadores, como fruto de um trabalho coletivo para o desenvolvimento da sociedade. Neste contexto, a ideologia dominante busca “analisar a divisão de trabalho em termos da distribuição dos indivíduos por empregos segundo preferências e habilitações (sejam elas inatas ou adquiridas), a proclamar a especialização como fonte de maior desenvolvimento e profundidade, e, em geral, a ignorar a divisão do trabalho como produtos de determinadas relações econômicas e sociais” (ibid., p. 113).

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Capítulo 2 – Gênero, Raça e Classe no mundo do Trabalho: um capítulo teórico-metodológico