• Nenhum resultado encontrado

Da abolição ao trabalhador e trabalhadora “livres”

CAPÍTULO 2 GÊNERO, RAÇA E CLASSE NO MUNDO DO TRABALHO: UM

2.2. A dimensão de raça e a divisão racial do trabalho

2.2.2. Da abolição ao trabalhador e trabalhadora “livres”

Segundo Ianni (1972), com a evolução do mercado capitalista no Brasil, a produção organizada com base na escravatura, a qual girava em torno de produzir para o mercado internacional tendo como fundamento o trabalhador escravizado, tornou-se insuportável, até ser superada. A cafeicultura passou a dominar o país, paralelamente à prosperidade da cana-de-açúcar,

47 Seguindo os estudos de Santos e Jesus (2010, p. 8-10), os primeiros negros chegaram ao Brasil em meados do século

XVI. Nesse período o pau-brasil era o principal produto da época, mas cedeu espaço para o plantio de cana-de-açúcar. O trabalho na cana, contudo, exigia mão-de-obra braçal, permanente e intensiva, a qual era desempenhada pelos índios brasileiros. Porém, segundo os autores em questão, “o índio reagiu de forma marcante, tornando-se ameaça para capitanias como Espírito Santo e Maranhão, reagindo com fugas, alcoolismo, suicídio, pois estava acostumado a trabalhar somente o necessário para sua sobrevivência, através da caça, coleta e pesca”. Com isso, foram considerados pelos europeus como preguiçosos e passaram a ser explorados de maneira distinta dos negros no processo de colonização. Além disso, havia uma contradição de interesses na dominação dos índios entre os colonizadores e os missionários cristãos, os quais objetivavam, sobretudo, catequizar os índios.

48 Cabe observar brevemente que algumas mulheres conseguiam fugir desta situação e iniciaram, junto a outros escravos

fugitivos, a formação dos quilombos, local de refúgio dos escravos e escravas. Contudo, a grande maioria não conseguiu participar dessa construção e foram escravizadas, além de exploradas sexualmente (THEODORO, 2012).

71

algodão, borracha, etc. Houve ainda a expansão dos setores manufatureiros e de serviços. Essa nova condição econômica, por sua vez, se estruturou a partir da dependência de centros comerciais, financeiros e culturais externos e ocasionou a progressiva diferenciação das ocupações e das relações sociais. Assim, a nova condição econômica e as exigências de transformações no modo de produção brasileiro passaram a ser incompatíveis com a condição de escravatura, exigindo um trabalhador “livre” e multiplicando as ocupações para o novo funcionamento econômico.

Como em qualquer sistema capitalista de produção, a participação da mão-de-obra trabalhadora precisa sustentar o lucro dos seus financiadores. Logo, como descreveu Ianni (ibid), a transformação do trabalhador livre foi uma necessidade, na medida em que ele deixou de ser meio de produção.

Paralelamente a este momento de nova configuração da economia brasileira, o mercado de fornecimento de escravos entrou em colapso, causando a denominada “escassez de braços”, o que confirmou que o regime de escravidão não mais se sustentava. Era preciso então abolir a escravidão e iniciar um novo processo econômico e social com o trabalhador livre e assalariado (IANNI, 1972). Como forma de convencimento da população para o fim da escravidão, começou a ser difundida a ideia de que a escravidão era contra a humanidade e contra os valores morais do ser-humano.

Observa-se então que as transformações da estrutura econômica impuseram a libertação do escravo. No novo sistema de assalariamento, a remuneração do trabalhador deixou de ser feita com a divisão do produto, passando a ser feita com salário. Contudo, qual trabalhador passou a ser identificado como trabalhador assalariado? Aqui está uma questão bastante importante da tese de Ianni (1972) e que marca de forma peculiar a divisão racial do trabalho no país.

Conforme descrito pelo autor, o antigo escravo, ou seja, o trabalhador negro, não foi aquele que passou a ser o trabalhador assalariado responsável por “elevar o patamar da economia brasileira”, tal como proclamava o discurso nacional. Pelo contrário, o governo passou a fazer propaganda para receber estrangeiros para ocupar este trabalho, pagando inclusive o transporte até o Brasil. Chegando aqui, esses estrangeiros eram distribuídos nas diferentes fazendas de acordo com as demandas de trabalho.

Segundo Fernandes (1978), essa imigração européia estimulou a vinda para o Brasil de milhões de portugueses, espanhóis, italianos, japoneses, alemães, sírios e libaneses no final do século XIX e início do século XX, os quais passaram a contribuir com a tentativa de branqueamento da população brasileira, tal como almejada pelo governo. Nesse processo, o trabalho assalariado, pago e privilegiado foi associado ao trabalho dos brancos.

72

Como descrito pelo autor (ibid.), o Estado não realizou nenhuma ação que corrigisse as desigualdades criadas pela escravização dos negros. Na contramão do que deveria ter acontecido, foram os senhores de engenho que se beneficiaram de medidas compensatórias, na medida em que foram indenizados pelo Estado brasileiro por perderem parte do seu patrimônio, a saber, os negros comprados com os quais teriam perdido o investimento de anos.

Observa-se que é desta forma que a sociedade de classes vai se configurando no país, formando uma elite dominante branca com privilégios, além de uma classe média branca que vai viver do salário como pagamento de seu trabalho livre. Enquanto, do outro lado, os negros foram relegados a classe excluída, explorada nos trabalhos braçais, numa perspectiva ideológica do modelo de trabalho/exploração da escravidão, que continuou marcando a vida desses trabalhadores.

No caso especifico da mulher negra, após a escravidão ela continuou trabalhando nas casas das famílias brancas, no trabalho de reprodução, entre eles no cuidado e educação dos filhos e filhas dos senhores. Elas continuaram tendo que realizar o serviço doméstico e atender ao patrão no trabalho produtivo, além de ter que servir a patroa. Algumas ainda eram exploradas sexualmente. Nota-se que, quando as mulheres brancas começaram a reivindicar o direito ao estudo e trabalho, as mulheres negras ficaram em casa cuidando dos filhos e maridos, permitindo a emancipação das mulheres brancas (CARNEIRO, 1985).

Com base em Cunha Jr (2008), a escravidão permaneceu após o 13 de maio de 1888, durante décadas, por meio de práticas escravistas de exploração do trabalho e no pensamento das pessoas que compreendiam o negro como uma sub-raça. A ideologia de inferioridade dos negros se perpetuou nas relações sociais entre os negros ex-escravos e os brancos, fossem com os novos imigrantes, fossem com os antigos colonizadores e seus descendentes.

Dessa forma, novamente a ideia da naturalização de uma raça inferior ou superior volta a ganhar espaço, agora sob nova configuração, visto que o trabalho digno, com pagamento de salário era trabalho de branco, enquanto os negros estavam destinados “naturalmente” a trabalhar para os seus amos (CUNHA JÚNIOR, 2008).

Para Quijano (2005) essa mesma lógica de pensamento pode ser observada até os dias atuais. Segundo o autor, não é difícil encontrarmos ainda brancos que compreendem que os negros devem servi-los e que pensem que os negros fazem parte de uma raça inferior – é o denominado racismo49.

49 Segundo Algarve (2005, p.25), o racismo é um comportamento, uma ação resultante da aversão em relação a pessoas

que possuem um pertencimento racial pautado em fatores observáveis, como a cor da pele, o tipo de cabelo, o formato do olho, etc; ou seja, está ligado às características físicas. No racismo compreende-se que existem raças melhores ou piores, cuja valoração é pautada em traços fenotípicos. Já o preconceito é um julgamento negativo e prévio que os

73

Nesse período houve uma valorização do trabalho assalariado, destinado aos brancos, em que se passou a valorizar não só o trabalho, mas também quem o realiza: o trabalhador branco, livre e do sexo masculino. Já o negro, como pessoa e como trabalhador, passou a ser desvalorizado, pois não conseguiu vender a sua força de trabalho no mercado. O negro foi então relacionado à preguiça de trabalhar e ao ócio, ampliando os preconceitos contra os mesmos.

Faz-se necessário salientar aqui, que muitas pesquisas foram influenciadas por esses preconceitos difundidos e pela ideologia pautada na biologização do termo raça. Segundo Munanga (2004), a palavra raça esteve originalmente ligada às ciências naturais, sobretudo à zoologia e à botânica. Tratava-se de um conceito utilizado na classificação de espécies animais e vegetais. Já no latim medieval, raça passou a designar a descendência, a linhagem, isto é, um grupo de pessoas que têm o mesmo ancestral e algumas características físicas em comum (ibid.).

A classificação da humanidade em raças hierarquizadas, no entanto, originou, segundo Munanga (2004), uma teoria pseudocientífica, a raciologia, que ganhou espaço no início do século XX, ultrapassando os círculos intelectuais e acadêmicos e se disseminando no conjunto da sociedade. Tal teoria procurava legitimar os parâmetros impostos pela dominação e divisão racial do trabalho, tentando explicar biologicamente a raça negra como inferior e a branca como superior.

Alguns autores como Nina Rodrigues, por exemplo, chegaram a escrever a partir de uma concepção biológica de raça. Segundo Munanga (2004), Nina Rodrigues teria criticado as autoridades do país por ter incentivado a mistura de raças. Isso porque tal mistura entre raças de homens dessemelhantes produziria “um tipo sem valor, que não serve nem para o modo de viver da raça superior, nem para o da raça inferior” (NINA RODRIGUES apud MUNANGA, 2004, p. 8). Em outra direção, mas ainda sob enfoque biológico, autores como Silvio Romero, Oliveira Vianna e João Batista de Lacerda descreveram que o branqueamento da população brasileira poderia elevar o país ao patamar de uma grande potência (MUNANGA, 2004).

Porém, a própria biologia afirmou que raça não qualifica naturalmente as pessoas e que não poderia ser utilizado para a espécie humana. Munanga (2004) explica que houve a descoberta de que apenas 1% dos genes que constituem o patrimônio genético de um indivíduo está implicado na transmissão da cor da pele, bem como dos olhos e dos cabelos.

Assim, foi demonstrado que, do ponto de vista da biologia, a utilização do conceito de raça membros de uma raça, de uma etnia, de um grupo, de uma religião ou mesmo de indivíduos, constroem em relação ao outro. Por fim, a discriminação compreende qualquer distinção, exclusão ou preferência com base em motivos de raça/etnia, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social, que tenha por efeito anular ou alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento no emprego e na ocupação.

74

não possui nenhuma utilidade científica, não podendo, portanto, ser aplicado para explicar a superioridade de alguns grupos étnicos sobre os outros. Isso levou alguns biólogos a sugerirem que a palavra raça fosse até mesmo retirada dos textos científicos e dos dicionários, devendo ser substituído pelo vocábulo população (MUNANGA, 2004; GUIMARÃES, 2001).

Contudo, falar ou não de raça é um pouco mais complexo. Segundo Munanga (2004), assumir que existe raça em termos sociológicos significa assumir que existe racismo, visto que embora o termo não exista para os estudos científicos biológicos destinados aos humanos, ele ainda está presente nas representações coletivas construídas em diversas sociedades contemporâneas. Dessa forma, o autor considera prematuro o abandono do termo, mas salienta que o mesmo deve ser entendido como uma realidade sócio-cultural e política, ou seja, como um instrumento de dominação e exclusão nos termos descritos ao longo desse capítulo. Trata-se, portanto, de um conceito sociológico e não biológico que expressa uma construção social e que se aplica numa relação social de dominação, em que a cor da pele escura e os traços fenotípicos (como nariz largo e cabelo crespo/enrolado) implicam segregação racial (GUIMARÃES, 2001).

Seguindo nesta contextualização histórica, na sequência do período pós-abolição e do surgimento do trabalhador livre, branco e imigrante, houve o processo de industrialização, inaugurando a produção fabril no país. As fábricas e indústrias passam a se dedicar a atividades como mineração de ferro, cal, mármore, preparo de gás e óleos minerais, artefatos cerâmicos e de ferro, madeira para construção, entre outros. Destaca-se ainda a produção do algodão e com isso o advento das fábricas de tecido (IANNI, 1972).

Nesse período, para enaltecer o processo industrial do país, tem-se uma preocupação com o denominado progresso nacional, e novamente o governo se utiliza da estratégia de incentivar a vinda de imigrantes para suprir a necessidade de mão-de-obra nas fábricas (ibid.).