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CAPÍTULO 1 – O PANO DE FUNDO DA TESE: A ECONOMIA SOLIDÁRIA E SUA

1.2. FASE 2 – Do velho ao Novo Cooperativismo

A partir de 1995 inicia-se uma segunda fase da Economia Solidária, a qual é sustentada principalmente pela ampliação de suas iniciativas, pelos eventos organizados para divulgação e debate desta proposta de organização, pela difusão das Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares (ITCP) Universitárias e públicas, além da ampliação dos estudos em torno do tema.

A primeira ITCP foi criada no ano de 1995, na Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, onde professores e técnicos do Centro de Pós-Graduação de Engenharia (Coppe) começaram a atender diferentes demandas à formação de cooperativas de trabalho. Segundo Guimarães (2000,

22 A FASE - Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional - fundada em 1961, atua em seis estados

brasileiros e tem sua sede nacional no Rio de Janeiro (http://www.fase.org.br/v2/pagina.php?id=10).

23 A Cáritas é uma instituição fundada em 1956, mas que apóia iniciativas de geração de renda desde o ano de 1984,

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p.111), a ITCP da Coppe surgiu com o objetivo de: “utilizar os recursos humanos e conhecimento da universidade na formação, qualificação e assessoria de trabalhadores para a construção de atividades autogestionárias, visando sua inclusão no mercado de trabalho”. As ITCPs passaram a ser responsáveis por contribuírem com a ampliação da Economia Solidária pelo país.

Neste mesmo ano destaca-se, no Estado de São Paulo, a experiência da Conforja, que após falência, passou a se organizar em sistema de cooperativa. Os ex-funcionários da Conforja adquiriram uma parte da massa falida criando assim a UNIFORJA, consolidada efetivamente no ano de 1999, sob forte apoio do Sindicato. Também é destaque do período, no Estado de Pernambuco, a cooperativa Catende-Harmonia, fruto da falência da Usina de açúcar Catende, quando os trabalhadores se organizaram e entraram com o processo de falência para receberem os seus direitos. Conforme já explicitado, nesse momento, ambas as experiências ainda não falavam em autogestão e ES, mas suas iniciativas foram utilizadas e contribuíram para a composição do cenário que vinha se compondo.

Já o ano de 1996 foi marcado por uma série de eventos, principalmente nos Estados do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo. Em 1997, a Fundação Unitrabalho – Rede Interuniversitária de Estudos e Pesquisas sobre o trabalho - criou o grupo de estudos da Economia Solidária, sobre coordenação dos professores Cândido Vieitez, da Unesp, Newton Brian, da Unicamp e Paul Singer da USP.

No ano de 1998, já com a segunda ITCP em funcionamento, a ITCP do Ceará, surgiu a proposta de realizar um seminário no Rio de Janeiro para estender a experiência das incubadoras para outras universidades. O Seminário contou com a participação de estudantes, sindicalistas e dos próprios cooperados/as. De acordo com Singer (2000-a, p.123), o resultado deste seminário foi a construção de novas ITCPs a partir do entendimento de que “as universidades poderiam assumir um papel ativo no combate à pobreza e à exclusão social, mediante a incubação de cooperativas”.

Neste seminário observou-se que a ES contava com o apoio não apenas das Universidades, como também mobilizava sindicatos, igrejas, ONGs e muitos outros setores da sociedade civil, o que, segundo Lechat (2004, p. 32), ampliava ainda mais as ações apresentadas e iniciava o caráter de “movimento social que a Economia Solidária vai adquirir ao longo de sua organização”.

Neste ambiente, a FINEP – Financiadoras de estudos e projetos, lançou o Programa Nacional de Incubadoras de Cooperativas (PRONINC), no âmbito do Comitê de Entidades Públicas do combate à fome e pela vida (Coep), em parceria com a Fundação Banco do Brasil (FBB). A partir daí, as incubadoras conseguiram maiores financiamentos para suas ações e começaram a se

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organizar em rede para fortalecimento e intercambio de experiências.

No ano de 1999, foi realizado, na Universidade Católica de Salvador, o evento “Economia dos Setores Populares”, que rendeu uma publicação em torno do que seria essa organização de grupos excluídos socialmente. Neste mesmo ano realizou-se o Fórum de Cooperativismo Popular no Rio de Janeiro. Também foi criada a UNISOL - União e Solidariedade das Cooperativas do Estado de São Paulo - (UNISOL São Paulo e, posteriormente, UNISOL Brasil), com função similar à ANTEAG, apoiando a incubação de cooperativas e de empresas de autogestão, e atuando nos setores alimentício, de artesanato, metalúrgico, químico, de reciclagem, serviços, têxtil e agricultura. Também foi criada a ADS/CUT - Agência de Desenvolvimento Solidário da Central Única dos Trabalhadores - com apoio do DIEESE - Departamento Intersindical de Estudos e Estatísticas Sociais e Econômicas - e de outros sindicatos.

Já no ano de 2000 houve o Primeiro Encontro Brasileiro de cultura e sócioeconomia solidária, com a formação da Rede de Sócioeconomia solidária na qual foi difundida a experiência cearense do Banco de Palmas24.

Nota-se que nesta fase a Economia Solidária foi ganhando certa consistência prática e teórica, porém, isso não se deu de forma consensual. Cada diferente grupo associado a essas práticas as denomina de forma diferenciada: economia dos setores populares, economia popular, sócioeconomia solidária e economia solidária. Contudo, os financiamentos que foram sendo criados passaram a organizar essas propostas na denominação “Economia Solidária”.

Em relação à constituição do campo de pesquisa da ES, de acordo com Lima (2011), nesta segunda fase foi elaborada uma grande quantidade de pesquisas empíricas, principalmente devido à multiplicação de suas experiências. O debate passou a centrar-se nas alternativas ao desemprego, representadas pelo trabalho associado e pelo cooperativismo. Alguns autores também passaram a debater o tema refletindo sobre a precarização do trabalho, num contexto de crescimento do terceiro setor da economia entre o público e o privado.

Para Lima (2011, p.7), embora não se limite às cooperativas, o debate sobre Economia

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O Banco de Palmas foi criado em Fortaleza, no Ceará, no ano de 1998, com o objetivo de disponibilizar crédito para a população do Bairro Conjunto Palmeiras, bem como de fomentar o desenvolvimento local. Na ocasião, foi criada uma moeda social, chamada de “palmas”, que só circulava entre os moradores e comerciantes locais, de forma a forçá-los a consumir o que era vendido localmente e fazer a economia girar no próprio bairro. Com um primeiro apoio de R$ 2 mil, de uma organização não governamental do Ceará, o Banco Palmas começou a viabilizar os seus primeiros empréstimos, os quais foram cedidos a cinco pessoas: um peixeiro, uma fabricante de sandálias, uma artesã, um comerciante de um mercadinho e uma costureira. Com o passar do tempo a experiência se expandiu e até 2009, cerca de R$5 milhões já haviam sido emprestados pelos 51 bancos comunitários brasileiros que foram criados a partir do Banco de Palmas. (http://economia.ig.com.br/mercados/pioneiro+banco+palmas+e+exemplo+em+economia+solidaria/n1237674265643.ht ml).

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Solidária nesta fase “legitimou, ideologicamente, a separação entre o que seria o novo e o velho cooperativismo”, sendo, o primeiro, percebido como alternativa solidária de grupos populares, ao capitalismo, enquanto, o segundo, afirmado como incorporação ao mercado capitalista. Nas palavras de Lima (2011, p.8):

Contrapõe-se, agora, o novo cooperativismo, representando o retorno aos ideários autogestionários de democratização do trabalho e propriedade coletiva, ao velho cooperativismo de mercado, empresarial, integrado pelas grandes cooperativas agropecuárias representadas pela Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB).

Alguns autores brasileiros e latino-americanos contribuíram para esse processo de construção do campo teórico em torno do chamado “novo cooperativismo” proposto pela ES. O primeiro deles é o argentino José Luís Coraggio (2000, 2003), que se refere à Economia Solidária como “Economia do Trabalho”. Esta, por sua vez, seria uma forma de economia social que busca os bens coletivos em detrimento dos individuais, organizando um novo sistema-mundo, mas não necessariamente um novo modo de produção.

O autor compara a organização da economia capitalista com a economia do trabalho. Na primeira formam-se “grandes conglomerados, redes e grupos com interesses comuns”; e na segunda formam-se “associações, cooperativas, redes e outras iniciativas que venham a contribuir com a melhoria de condições de reprodução da vida de seus membros” (CORAGGIO, 2003, p.89).

Este termo, reprodução ampliada da vida, representa para Coraggio o interesse do conjunto de trabalhadores que vivenciam a economia do trabalho. Esse interesse está pautado nas condições necessárias para que as pessoas tenham uma vida com qualidade, seguindo o desenvolvimento das capacidades e oportunidades sociais das pessoas em diferentes contextos.

De acordo com Coraggio (2000), a Economia do Trabalho contempla uma série de atividades, entre as quais fazem parte as cooperativas, as associações, mas também o trabalho por conta própria e as atividades de produção de bens e serviços que não passam diretamente pelo mercado, como o trabalho de cuidado, de limpeza, do conserto, trabalho feito na própria casa, etc.

Para Corragio (ibid.), as relações que se formam nestas unidades e, principalmente nas que se transformam em empreendimentos solidários, precisam ser analisadas compreendendo as novas racionalidades que se criam, a saber, a racionalidade da produção da vida e não a racionalidade do negócio, dos lucros. Porém, o autor indica a dificuldade das unidades de trabalho em manter as suas racionalidades de solidariedade em meio ao contexto perverso do desemprego nas atuais configurações do trabalho. Apesar das dificuldades, o autor defende que a partir deste mundo das economias populares é possível que surjam estruturas mais eficientes para a reprodução ampliada da

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vida, “orientadas por um paradigma de desenvolvimento humano” (CORAGGIO, 2000, p. 111).

Dessa forma, observa-se que Coraggio não fala em autogestão ou em um sistema novo e totalizador que supere o capitalista, mas de um sistema misto, no interior do capitalismo, que seja capaz de permitir a reprodução ampliada da vida da sociedade e o desenvolvimento humano mais digno. Para tal, o autor aponta a necessidade de vontade política e apoio do Estado.

Numa linha teórica semelhante encontra-se Gaiger (2000, 2004), o qual iniciou o desenvolvimento da teoria da Economia Solidária a partir da identificação de projetos sociais voltados para a autonomia dos trabalhadores e não apenas para o assistencialismo.

O autor concorda com Coraggio ao apontar que a viabilidade da ES deve ser olhada do ponto de vista das necessidades das pessoas que estão nos empreendimentos e não apenas da acumulação de capital: “a viabilidade é pensar se os empreendimentos vêm trazendo respostas às pessoas que nele estão inseridas” (GAIGER, 2000, p. 181). Sejam elas respostas financeiras, ou de participação e inclusão social e educativa.

Seguindo esta perspectiva, Gaiger (2007) compreende que a ES reflete interesses subjetivos dos trabalhadores, ao mesmo tempo em que responde a condições objetivas, já que eles necessitam da geração de renda para a sobrevivência no sistema capitalista. Trata-se de uma relação de necessidade e de contradição, que certamente dificulta a racionalidade solidária, mas, para o autor, é a composição possível em meio à acumulação flexível da atual forma de manifestação do capital.

Gaiger (ibid.) salienta que a ES não se trata de um novo modo de produção. Remetendo-se a Marx, o autor descreve que o conceito de modo de produção tem a ver com o estado de desenvolvimento material e humano possibilitado por uma configuração histórica. Essa configuração encontra-se no modo como os indivíduos organizam-se, em distintas sociedades, no que tange “à produção, à distribuição e ao consumo dos bens materiais necessários à sua subsistência; mais precisamente, na forma que assumem as relações sociais de produção, em correspondência com um estado histórico de desenvolvimento das forças produtivas” (GAIGER, 2004, p.6).

Em contrapartida, o autor fala em “forma social de produção”, a qual guarda semelhanças com as relações desenvolvidas pela economia camponesa, principalmente por se tratarem de relações distintas da forma assalariada. Para o autor existem possibilidades de muitas formas de produção social conviver no mesmo sistema (solidária, capitalista, familiar, etc). A questão são os desafios que estão colocados para aquelas formas que não são hegemônicas, principalmente dos pontos de vista tecnológico, educacional e de apoio político.

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Cabe observar que Gaiger e Coraggio são teóricos que marcam a passagem da primeira para a segunda fase da Economia Solidária, isso porque, segundo Lima (2011), os debates da primeira fase ainda se restringiam às reflexões em torno de um possível socialismo, tendo na autogestão a principal referência da crítica ao capitalismo. Já para Coraggio e Gaiger a ES se trata de uma forma social de produção não assalariada e que precisa ser analisada do ponto de vista social.

Porém, além desses intelectuais que começaram a vislumbrar a ES de forma crítica, mas como possibilidade emancipadora, em contraponto também se apresentava àqueles que a interpretava como uma consequência da forma de organização do trabalho no capital neoliberal.

Castel (2005), por exemplo, analisa que a Economia Solidária acaba por servir às artimanhas do capitalismo possibilitando maior exploração da mão de obra barata do trabalhador. O autor considera que as experiências de ES correspondem a tentativas compensatórias diante da degradação das condições de trabalho assalariadas, tratando-se, portanto, de experiências voluntaristas e assistencialistas que não resolveriam a questão do trabalho e do desemprego.

Nessa mesma direção, ao analisar as primeiras iniciativas no âmbito da ES, Quijano (1998) afirma que a maior parte das chamadas empresas autogestionárias foram iniciadas a partir de interesses do próprio capital ou do Estado. Ou ainda podem ser experiências iniciadas por ONGs, Universidades e outras agências de fomento, portanto, não se tratariam de iniciativas advindas da ideologia dos trabalhadores ou de movimentos sociais organizados.

Exatamente por isso, Quijano analisa que essas organizações solidárias não resistirão às dificuldades financeiras do capital. Nas palavras do autor, “sua independência do apoio externo, dos créditos e financiamentos, que foram suas marcas de nascimento podem ser também um elemento central de sua desintegração” (QUIJANO, 1998, p. 128).

Castel reconhece que algumas iniciativas podem articular a esfera pública e privada, mobilizar recursos e apresentar algum resultado positivo. Porém, analisa que são, na verdade, iniciativas pouco visíveis e incapazes de passar do estágio de experimentação. O autor afirma que representam “declarações de intenção” e não políticas com potenciais de transformação. Nas palavras do autor, trata-se de uma “preocupação de promover uma “economia solidária”, isto é, de ligar a questão do emprego à coesão social” (CASTEL, 2005, p.575).

Outro ponto destacado pelos autores em questão refere-se às dificuldades de sobrevivência de valores solidários no interior de relações hegemônicas antagônicas, tal como já observado por Coraggio e Gaiger. Castel (2005) questiona se o discurso de democracia e de autogestão se efetiva na prática dos empreendimentos solidários que se desenvolvem no âmbito da sociedade capitalista,

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visto que, na contradição posta, os valores de competição e dominação acabam invadindo essas experiências.

Contudo, Quijano (1998) entende a Economia Solidária como uma iniciativa necessária diante das tendências atuais das relações capital-trabalho e da concentração de recursos em todo o mundo, considerando-a como um “produto das atuais condições em que opera o capital”, principalmente na América Latina (QUIJANO, 1998, p.136). Para Quijano (ibid., 184), essas experiências são decisivas para a América Latina na atualidade, visto que: a) o trabalho assalariado nunca foi universal e; b) a sociedade latino-americana nunca foi “descolonizada, democratizada ou nacionalizada plenamente” e, em alguns casos, nem conta com um “Estado-nação” pleno. Sob esta perspectiva, o autor até compreende a validade destas experiências, mas ressalta que não se trata de uma ampla proposta de transformação.

É destacando essa contradição que marca a ES desde o seu início e que se segue até os dias atuais, que passo para a terceira fase da mesma, momento em que ela se expande no país e começa a se organizar politicamente. Nota-se aqui que nesta fase de constituição do campo teórico da ES e de formação das ITCPs, não foram encontradas pesquisas relevantes sobre a grande participação das mulheres e da população negra nas iniciativas de ES. A preocupação até o momento girava em torno das propostas transformadoras elaboradas por Singer em contraposição as experiências práticas que vinham se compondo e qual eram os seus avanços e dificuldades. As pesquisas sob a perspectiva de gênero e a relevância da participação das mulheres começam a surgir efetivamente a partir da terceira fase da ES, sobretudo com as teóricas da Economia Feminista, conforme discutido abaixo.