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CAPÍTULO 3 – DISPUTA, RESISTÊNCIAS E CONTRADIÇÕES DE UM PROJETO

3.2. A falência e a construção do projeto coletivo Catende-Harmonia

3.2.1. Donos? Nós? Donos do que?

Os trabalhadores do campo, que sempre tiveram que lutar pelo direito ao assalariamento, não queriam ser donos da Usina ou donos de terra e não pensavam ter potencial para isso. É comum

ouvir uma frase que os trabalhadores repetem ao contar a história de Catende: “eu não sou godo (minhoca) pra querer terra”. Eles não viam sentido na reforma agrária e se perguntavam: o que fazer com terra? Tal questionamento parecia óbvio diante da história da região que passou da colonização para o assalariamento exploratório dos usineiros. Eles não dominavam a agricultura e pensavam que os usineiros roubariam tudo o que plantassem, tal como ilustra um dos entrevistados:

Os trabalhadores, por toda vida deles, conheceram seus bisavôs, avôs, pais, e eles eram assalariados, trabalhavam sete dias na semana, sexta-feira recebiam seu dinheiro. Então seu planejamento era só pra sete dias! Eu tenho que comprar isso para sete dias, tenho que ter farinha para sete dias, tenho que ter charque para sete dias, porque a cada sete dias esse ciclo volta a se fazer. Então, a tarefa geral era a de fazer de um assalariado, com mentalidade de assalariado, à mentalidade de um produtor; de uma pessoa que tem que ter outra missão para a produção, de uma pessoa que tem que se preocupar com o que está plantando, que uma variável é mais produtiva do que a outra, que tecnologia eu vou empregar […] Então, no princípio, os trabalhadores eles não queriam terra para produzir. Não, que não sou bom para mexer com terra e não sei quê, mas depois começaram a plantar, mas com medo porque ali por toda a vida a usina proibiu plantar, toda a vida...plantavam e vinham e arrancavam. E cana? nem se fala, era o mais proibido de todos! (Júlio/trabalhador da Usina e do Campo). Conforme descreveu Kleiman (2008), além de tamanha opressão e exploração que marcam a trajetória de trabalho dessas pessoas, a forma prática pela falência causou uma confusão na cabeça dos trabalhadores. Como havia um síndico que vinha dos sindicatos, mas que era representante do Banco do Brasil, ele ainda simbolizava um patrão. Logo, não sentiam que eram donos da empresa ou não queriam trabalhar numa “empresa sem patrão”. Alguns trabalhadores que ao longo do tempo aderiram ao projeto descreveram que não acreditavam inicialmente: “Eu mesmo achava que não

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dava certo, no começo. Depois a gente viu que dá. Agora existe uma pressão muito grande dos próprios Usineiros de ver uma coisa tocada por trabalhador” (Inácio/trabalhador, técnico da Usina que chegou a ser diretor da cooperativa).

Outras pesquisas desenvolvidas em Empresas Recuperadas abordam essa questão. Segundo Holzmann (2001, p. 16), por exemplo, em sua pesquisa realizada em três grandes experiências no Sul do país, muitos trabalhadores diziam sentir falta da “organização” da fábrica anterior, visto que foi a partir das antigas experiências de trabalho que eles reelaboraram seu cotidiano nas fábricas. A autora identifica uma série de problemas vivenciados pelas fábricas recuperadas em virtude do choque cultural que vive os trabalhadores com a brusca transformação das relações de trabalho.

A ideia de uma empresa sem patrão era negativa em Catende, trazia uma noção de desorganizada e os trabalhadores não queriam trabalhar nesse lugar, principalmente no formato de uma cooperativa. Devido à história da região em que cooperativas foram criadas pelos patrões para burlar direitos trabalhistas, muitos trabalhadores pensavam que o discurso de um projeto coletivo ou de uma cooperativa era para lhes enrolar mais uma vez:

[...] o cooperativismo nessa região tem um aspecto muito negativo, muito ruim e a história só vê reforçar isso. As cooperativas aqui surgiram na década de sessenta, surgiram atreladas as usinas e serviam como cooperativas de compra e venda; elas surgiam para os trabalhadores adquirirem alimentos com o seu trabalho. A usina passava um vale, e o trabalhador ia à cooperativa trocar o vale por mercadorias super faturadas […] isso ficou na memória popular: cooperativa com usina não dá certo! (Hugo/liderança no projeto Catende- Harmonia).

Contudo, por outro lado, o projeto começava a ganhar simpatia de alguns trabalhadores tanto da Usina como do campo, porque a maior parte não estava satisfeito com a exploração dos usineiros. Para eles, o emprego era primordial, mas depois que começaram a participar das greves e de algumas mobilizações sindicais começaram a perceber que não aceitariam tamanha exploração como experimentaram a vida inteira. Esteves (2010) indica que muitos trabalhadores nas empresas recuperadas de fato adquirem certa identidade nas manifestações, greves e organizações iniciais. Mas, nem sempre essa identidade permanece ao longo do tempo, principalmente porque ela é construída com o motivador de lutar para manter o emprego.

Nesta pesquisa, foi observada certa mudança na mentalidade dos trabalhadores para a construção de novas relações de trabalho. No entanto, a forma de os trabalhadores expressarem o que queriam era dizendo “queremos um usineiro bom”, como explicou Artur ao contar sobre uma pesquisa feita com os trabalhadores logo após o pedido de falência:

O outro dado que preocupou à época era porque 98% queria de volta o emprego com um usineiro bom, era um dado impossível de ter isso, você poderia até ter a possibilidade de emprego, mas com um usineiro bom não tinha e 100% queria receber a indenização dos

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direitos, ai perfeitamente compreensível […] Trabalho os doze meses, de inverno à verão e o salário em dia e a moradia, isso é um usineiro bom. Dar férias, o décimo terceiro, os direitos. E isso hoje é impossível nessa região, você pode ter uma ou outra que cumpre, mas não entra nessa questão de ser bom (Artur/liderança no projeto Catende/Harmonia).

Observa-se que os trabalhadores queriam manter a relação patrão/empregado assalariado, o que caracteriza uma relação de dependência e não de autonomia, mas, por outro lado, queriam ampliar os seus direitos e acessos. No entanto, a noção de direitos era distorcida, visto que o cumprimento dos mesmos não fazia parte de um direito do trabalho ou de um direito humano, mas da bondade de uma pessoa64.

A partir destes dados, as lideranças da Usina com alguns trabalhadores mais engajados iniciaram uma série de ciclo de debates a fim de discutir a situação da Usina e ampliar a construção de um projeto coletivo com uma noção mais ampla em torno dos direitos dos trabalhadores. Também estimularam a formação de Associações nos Engenhos para conseguir representações na Usina e aumentar a participação. Foi formado um Conselho Gestor composto por representantes das Associações, pelos representantes dos sindicatos e do Projeto Catende-Harmonia. Esse Conselho era convocado para as reuniões e atuava ao lado da administração da Usina65.

Além das Associações, uma das estratégias criadas foi a questão da qualificação dos trabalhadores, que passava primeiramente pela alfabetização. Esta era atrelada a discussões sobre

64A luta pelos direitos iniciou-se e tomou corpo na segunda metade do século XIX. Segundo Marshall (1967), é somente

a partir da formação do Estado moderno que podemos falar em direitos sociais. Embora tenham surgido com limites em meio à tensão entre os direitos e a lógica de mercado, os direitos sociais tiveram um papel importante na luta pela igualdade, evidenciando algumas desigualdades até então ignoradas. Contudo, Marshall (1967) considera que a luta por sua efetivação é permanente e sempre dependeu de mediação política, sindicatos e partidos fortes, associações e organização civil. Nessa direção, Bobbio (2004), elucida que os direitos humanos estão em constante evolução, seguindo as mudanças sociais. Os direitos humanos foram construídos historicamente para o “aprimoramento político da convivência coletiva” (BOBBIO, 2004, p. 42). Tal consenso foi expresso primeiramente na Carta das Nações Unidas de 1945 e depois retomado e definido na Declaração dos Direitos Humanos em 1948. Foi ainda reforçado e adensado pela Conferência de Viena da ONU, de 1993. Esta evolução histórica foi assim resumida por Bobbio (2004, p. 50): “os direitos do homem nascem como direitos naturais universais, desenvolvem-se como direitos positivos particulares, para finalmente encontrarem sua plena realização como direitos positivos universais”. Porém, na atualidade sabemos que os direitos são conquistas a serem perseguidas e não uma simples existência. Embora os direitos tenham nascidos com este propósito “natural”, a história mostrou que precisam ser protegidos, uma vez que os direitos nasceram com o propósito universal, mas se desenvolveram particularistas. Bobbio (2004) apresenta uma problemática: os direitos sociais dependem não somente da proteção do Estado, mas também de reconhecimento e vontade dos sujeitos. Ou seja, embora a Declaração e os direitos universais seja um avanço histórico, não se apresenta ausente de problemas, tensões e conflitos. Os direitos humanos são fins perseguidos/buscados, contudo, sua desejabilidade exige algum consenso para que possamos reconhecê-los como direito. A Declaração, embora com alguns limites, já fundamentou os direitos, agora o movimento histórico apresenta a necessidade de protegê-los e fazê-los valer. A questão não é somente filosófica, mas é jurídica e também política.

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Neste conselho faziam parte homens e mulheres de todos os agrupamentos classificados no capítulo anterior, com exceção das mulheres do terceiro grupo, mas a participação não se dava da mesma forma. Os homens do primeiro e

segundo grupo, por exemplo, tinham maior poder de fala e participavam mais que os do terceiro grupo. Já entre as mulheres, havia apenas uma delas do primeiro grupo e as do segundo grupo eram representantes das Associações. Ao

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projeto coletivo, direitos humanos, sobre a realidade de Catende, bem como sobre a possibilidade de o trabalhador ter sua própria cana e plantar outras culturas, conquistando cada vez mais autonomia.