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O eixo Educação/Trabalho nas atividades de qualificação

CAPÍTULO 3 – DISPUTA, RESISTÊNCIAS E CONTRADIÇÕES DE UM PROJETO

3.2. A falência e a construção do projeto coletivo Catende-Harmonia

3.2.3. O eixo Educação/Trabalho nas atividades de qualificação

Essa nova visão fez com que muitos trabalhadores que eram do chão de fábrica, tais como mecânicos, eletricistas, entre outros com postos de trabalho compreendidos como menos qualificados, começassem a participar mais intensamente das Assembléias e até da administração da Usina, possibilitando uma nova construção das relações de trabalho. No caso dos trabalhadores do campo, essa nova perspectiva fez com que as suas qualificações fossem valorizadas e ampliadas, passando a compreender da plantação da cana e aprendendo tecnicamente sobre agricultura, bem como ampliando à participação política nas reuniões e Assembléias organizadas pela Usina.

Com isso, em alguma medida, houve uma mudança de paradigma no próprio conceito de qualificação atrelado à ocupação de alguns espaços, marcado por uma construção social onde é mais qualificado quem tem mais estudo e quem cumpre com alguns pré-requisitos que combinam saberes técnicos e atributos pessoais impostos pelo mercado de trabalho.

Neves e Leite (1998, p.11) explicam que, de uma maneira ampla, “a qualificação do trabalhador compõe um conjunto de saberes escolares, técnicos e sociais, que o tornam capacitado

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profissionalmente”, no entanto, essa capacitação não acontece isolada nas relações econômicas, mas também se compõem no âmbito cultural e das representações simbólicas. Tal constatação nos leva a entender qualificação como relação social, ou seja, “é na dinâmica entre capital e trabalho que se estabelece a qualificação dos trabalhadores” (ibid.). Nessa relação, por meio de uma construção social hierárquica definem-se quais são as profissões mais ou menos qualificadas, sendo que as mais qualificadas são valorizadas em forma de salário. Ao revisar a literatura sobre qualificação e Organizações Sociais Produtivas identificadas pela Economia Solidária, observa-se uma tentativa de questionar essa imposição social.

De um lado, esses estudos fazem uma crítica à ausência de formação dos trabalhadores e trabalhadoras, excluídos/as, em sua maioria, do direito humano da escolarização e das boas condições de trabalho, como era o caso dos/as trabalhadores/as analfabetos de Catende (KRUPPA, 2005; TIRIBA, FISCHER, 2009). Mas, em contrapartida, os estudos valorizam os aprendizados que esses trabalhadores conquistam na prática cotidiana ao longo da vida e nos processos de construção dos empreendimentos coletivos, assim como buscam revelar que as pessoas se qualificam no cotidiano de trabalho e que os espaços coletivos contribuem nessa direção.

Segundo Mello (2005, p.47), as frentes de qualificação para o trabalho advindas do Estado e municípios oferecem cursos distantes da possibilidade real de uma conquista de emprego. Nas palavras da autora, “qualificar seria uma espécie de mágica que, pela sua simples aplicação, transformaria o trabalhador desempregado em empregado”. Trata-se de um trabalhador que vem sendo condicionado pelo capital: os trabalhadores recebem a qualificação que o mercado lhes reserva, ajustando-lhes às suas necessidades. Não há nessa proposta uma relação direta entre trabalho e educação, tal como foi proposto em Catende, por exemplo.

A discussão sobre a qualificação e escolarização de trabalhadores e trabalhadoras é histórica no Brasil. Segundo Ireland et al (2005, p. 95) a “educação como direito humano básico que poderia mostrar-se uma das ferramentas mais eficazes de inclusão social, tornou-se, no nosso caso, um instrumento nocivamente eficiente de exclusão”. Um breve olhar sobre a história da formação de trabalhadores no país indica, de um lado, a prioridade do conhecimento a uma elite privilegiada educada para o trabalho qualificado; e no outro extremo, uma população sem escolarização que fica a mercê dos processos de industrialização do país, bem como das demandas dos mercados. Embora essa mão de obra seja extremamente necessária para o desenvolvimento do país, explorá-la com baixos salários corresponde à divisão social histórica do trabalho.

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trabalhadores. Além disso, acaba atuando no sentido de individualizar e especializar as pessoas. Nas palavras da autora:

Baseada na divisão social do trabalho – quanto mais o indivíduo especializa-se mais define sua área de atuação – a sociedade atual perdeu a disponibilidade de ensinar os que não são do mesmo segmento profissional. Essa divisão do saber legitima que o engenheiro saiba o que o peão da fábrica não sabe, sem que se pergunte porque isso ocorre. O conhecimento da Física pertence ao físico, o conhecimento da Química ao químico, mas o trabalhador na Usina Catende, ao produzir o açúcar, provoca uma série de fenômenos físico-químicos, cujos processos precisam, na autogestão, ser compreendidos e renomeados por ele próprio na relação ensino-aprendizagem, o que pode, também, consolidar, ainda mais, os mecanismos da autogestão (KRUPPA, 2005, p.24).

Os autores e autoras que discutem o tema vêm tentando apontar a diferença de educação necessária às práticas coletivas e associativas de trabalho e a educação que serve ao capital. Embora reconheçam que na prática dos empreendimentos ambas as vertentes se relacionam, consideram importante pontuar que uma construção solidária exige um novo educar-se para a solidariedade (TIRIBA, FISCHER, 2009; MELLO, 2005).

Nessa direção, observou-se que houve em Catende um novo significado em torno da qualificação de trabalhadores, que contribui para uma nova forma de pensar esse conceito no âmbito das Organizações Sociais Produtivas. Nesses espaços, as exigências de formação e qualificação não são as mesmas do mercado de trabalho convencional e se expressam de diferentes maneiras. Logo, terão que criar novas categorias de qualificação para desenvolverem suas atividades no âmbito do trabalho associativo.

Cabe destacar que, nesta tese, tal como vem sendo discutido desde a introdução, o conceito de qualificação, além de compreendido como construção social, não se refere apenas ao acesso educacional (escolar, profissionalizante, etc.) que as pessoas tiveram ao longo de suas vidas. Refere- se também às diferentes aprendizagens e saberes adquiridos, bem como à capacidade de agir dos sujeitos sociais que constroem as Organizações Sociais Produtivas pesquisadas. Embora os trabalhadores e trabalhadoras das OSPs não sejam considerados qualificados pelo mercado de trabalho, não significa que não tenham espaço no mesmo. A questão é que sua qualificação, que é

naturalizada e não passou pelos canais formais de qualificação do mercado, não é valorizada e é explorada por ele66.

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Para maior compreensão, considera-se uma mulher que sempre trabalhou como doméstica, por exemplo, como uma pessoa altamente qualificada para a atividade reprodutiva fundamental que ela desempenha, embora não seja socialmente reconhecida como tal. Concordamos com Kergoat (1986) ao dizer que as mulheres possuem a qualificação que lhes são reservadas. Assim como os homens, brancos ou negros, pobres ou ricos, e as mulheres brancas ou negras, pobres ou ricas também apresentam grandes chances de possuírem diferentes qualificações à medida da coextensividade das categorias de classe, raça e gênero em suas trajetórias de vida e trabalho. Somado a isso, há ainda o desenvolvimento

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Seguindo estas perspectivas e pautada nessa experiência de Catende, é possível identificar três diferentes categorias de qualificação exigidas para o trabalho nas Organizações Sociais Produtivas (OSP), a saber: 1) Qualificação e aprendizagens Técnicas (exigida por cada OSP e que correspondem aos elementos que as pessoas precisam para compreender o trabalho e aos conhecimentos que permitem ocupar espaços administrativos, de presidência, etc.); 2) Qualificação para a Gestão Coletiva e para a ampliação e exercício da autogestão parcial; 3) Qualificação política que permite participação (falar em público, militância, etc.), bem como consciência das diferentes formas de dominação de raça, classe e gênero que estruturam a sociedade.

Este seria então o desafio presente nos processos de qualificação de trabalhadores nas propostas coletivas/associativas de trabalho, principalmente se considerarmos que a história de qualificação de trabalhadores no país acompanha o desenvolvimento econômico e não a aquisição crítica de conhecimentos para a autonomia humana.

Essas discussões se ampliaram nos anos 2000 em Catende quando as lideranças do projeto Catende-Harmonia foram convidadas a conhecer a ANTEAG. Foi quando os trabalhadores souberam da existência de outras iniciativas de recuperação de empresas em toda América Latina e começaram a se aproximar das discussões sobre autogestão e Economia Solidária.

Ao longo da pesquisa, foram identificados três grandes momentos educativos em Catende: o primeiro de alfabetização em massa, preocupado também com a articulação entre os trabalhadores e ampliação do diálogo com os mesmos. Já num segundo momento, embora tenha mantido a preocupação com a alfabetização, a ênfase dada era para a educação sistematizada com cursos que aproveitassem a experiência de Catende por meio de atividades práticas e da participação de jovens. Além do estágio na Usina, esses jovens fizeram cursos de sementeira, ovinocultura, piscicultura, além de gestão da cooperativa, etc. Por fim, houve um terceiro momento voltado mais especificamente para a denominada Economia Solidária, com apoio da ANTEAG e da SENAES, com propostas de ampliação da noção de qualificação existente, que veio se consolidar em 2003.

Esse também foi um momento de intensificar a ideia das Associações para ampliar as informações sobre o projeto Catende-Harmonia, bem como para ampliar o diálogo com os trabalhadores. Nas Associações, os trabalhadores e trabalhadoras passaram por um significativo processo de qualificação e participação política.

das aprendizagens que estão no âmbito da resistência e das práticas sociais de que os sujeitos participam ao longo de suas vidas, como por exemplo, aquelas aprendizagens adquiridas em outras oportunidades de trabalho, como no caso das organizações de trabalho coletivo que estamos pesquisando. Este aspecto voltará a ser aprofundado nos próximos capítulos desta pesquisa.

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As Associações foram formadas em cada Engenho, somando cerca de 48 delas. Os presidentes faziam reuniões nos engenhos para levar as questões e solicitações dos trabalhadores nas reuniões que aconteciam no Chalé, a antiga Casa Grande. Cabe destacar que a Casa Grande conferia um valor simbólico ao trabalhador, já que ele passou a frequentar espaços a que jamais teve acesso e que representava o poder que diferenciava trabalhadores e usineiros. Era uma forma concreta de mostrar aos trabalhadores que eles estavam adquirindo um novo status no projeto.

A fala de Inácio mostra a quantidade de aprendizados advindos das experiências das reuniões e das Assembléias por parte dos trabalhadores:

E eles opinavam, toda semana tinha uma reunião na casa que foi do usineiro, o usineiro mais bravo que tinha aqui. Virou uma casa de decisão do trabalhador, o trabalhador ia pra lá decidir o destino da usina. O trabalhador rural e o trabalhador da usina iam pra lá toda quarta-feira, juntava tudo, tinha almoço pra todo mundo, lanche, era o dia todinho essa reunião para decidir todo o destino da usina, toda semana […] O trabalhador rural não sabia nem o que era um adubo, quanto era o quilo do adubo, passou a conhecer o preço de frete, de cana, de rendimento de cana. Ele passou a saber tudo, e escrevia tudo e dizia “epa, pera aí deu errado aí, minha cana deu tanto, eu quero ela, o frete é 4 km eu quero receber”, era assim. Eles aprenderam coisas que a gente não sabia. Antes era que nem criança, quer a mamadeira, mas não quer saber da onde vem. Agora o trabalhador, quando passou a essa gestão aí, ele passou a conhecer tudo, se envolveu, passou a trabalhar no lucro também; a cooperativa comprava o adubo e ele sabia distribuir o adubo, sabia quanto ia pagar de adubo, sabia preço de frete. Parecia um usineiro, sabia tudo (Inácio/trabalhador, técnico da Usina que chegou a ser diretor da cooperativa).

Dessa forma, a partir dos novos conhecimentos adquiridos, o trabalhador passou não somente a ser ouvido e considerado pela administração da Usina, como também a compreender mais claramente o processo de trabalho no qual estava envolvido, diminuindo a alienação do trabalhador:

Eu era um mecânico, eu sabia que esse caminhão se ele rodasse mais um mês, ele teria um desgaste maior no motor, e o prejuízo seria maior pra usina. Então o chefe dizia que não estava olhando pro prejuízo, queria que o caminhão rodasse mais um mês porque queria mais cana na usina, e a gente calava a boca e tinha que fazer o que o encarregado mandasse. Depois daí não, “esse caminhão aí, dá pra rodar?”, “dá”, então vai. Mas se o prejuízo pode ser maior, mais de R$ 10.000, então é melhor parar e fazer o serviço. Quer dizer, a gente passou a conversar com o encarregado, passou a distribuir as tarefas, ele não ia direto “eu quero assim”, não (Inácio/trabalhador, técnico da Usina que chegou a ser diretor da cooperativa).

Alguns trabalhadores passaram a ser lideranças nesse processo e houve um aumento da participação de maneira geral, o que também possibilita certa mobilidade entre os grupos classificados nesta pesquisa. Segundo a pesquisa de Lima (2006), contudo, esse processo não aconteceu sem contradições. A autora observou que “Catende é um todo educativo”, já que todas as atividades permitiam um processo educativo para além de espaços escolares, por exemplo. Contudo, ela observou que havia alguns limites na participação dos trabalhadores nessas Assembléias e

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Conforme a autora descreveu em sua investigação, muitas vezes os trabalhadores do campo e da Usina “ficavam na posição de platéia, ou de educandos, e um grupo de técnicos, assessores, dirigentes se colocava à frente e entre eles” (LIMA, 2006, p. 62). Ela observou uma diferença entre as lideranças que falavam e os trabalhadores que se colocavam em posição de escuta.

Em entrevista com um trabalhador do campo ele nos contou que gostava muito de participar dessas reuniões do Conselho, embora não conseguisse entender tudo: “não é tudo que eu entendo, mas gostava de participar das reuniões. A gente vai entendendo uma coisa, o outro entende outra, depois junta”. Damião também dizia que apesar de sua dificuldade era um momento de ampliar as aprendizagens: “a gente participava, apesar de eu não entender muito das coisas. Cada Engenho tinha um representante. Então a gente se reunia todo mês. Tinha mês que até duas vezes a gente era chamado lá. A gente acompanhava a coisa. Tava sempre por dentro. Tinha informação para o pessoal”

Dessa forma, observa-se que houve grandes avanços no que tange à ampliação de informações sobre a Usina e qualificação técnica e política que poderia garantir a autonomia dos trabalhadores, sobretudo do campo. Mas, como face do mesmo processo, ainda havia lacunas no que tange à participação na construção de um projeto de autogestão parcial.

Para alguns entrevistados é muito claro todo o trabalho feito depois do processo de falência e todo o esforço das lideranças para aumentar a participação e qualificação dos trabalhadores. Mas, para outros, embora reconheçam as conquistas explicitadas, Mário Borba e o síndico sucessor não passavam de usineiros que conseguiram manter a Usina Catende funcionando, num processo onde eles eram trabalhadores assalariados e subordinados da Usina.

Nota-se, dessa forma, que havia uma série de limites e contradições na participação dos trabalhadores em Catende e que nem todos se envolveram de maneira igualitária com o projeto. Contudo, há de se reconhecer que, apesar dos limites históricos da região, essa visão de educação e qualificação no processo de trabalho foi proporcionando aos poucos a construção de um projeto coletivo.

Nesses processos de qualificação, outro tema relevante foi o da diversificação de culturas plantadas na Zona da Mata. Primeiro para que os trabalhadores pudessem plantar a cana, entender

sobre as variedades da mesma e começarem a pensar em ter a cana deles próprios para vender à Usina. Paralelamente, a principal ideia era diversificar a produção para um dia acabar com a monocultura, criando novas possibilidades de renda e de alimentação para os trabalhadores.

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Porém, nesse período houve uma grande enchente que teve consequências muito difíceis para a Usina e para toda a população local. Como descreve Kleiman (2008), foi uma catástrofe que acabou com muitas máquinas, automóveis, computadores, plantação e mobílias das casas. Os trabalhadores articularam uma Assembléia de emergência para pensar em soluções e uma série de mutirões e de doações foi iniciada. Eles conseguiram recuperar a destilaria da Usina, mas muitas coisas se perderam nessa tragédia.

Mal recuperados deste episódio, houve um incêndio na Usina: um curto circuito acontecido na casa de força causou um incêndio no complexo industrial. Os trabalhadores narram esse momento e contam que eles arriscaram suas vidas para apagar o fogo. Acabada a água dos bombeiros, os trabalhadores iam buscar água no rio abastecendo o caminhão. Segundo os entrevistados, mesmo os bombeiros ficaram impressionados com a atuação dos trabalhadores:

O povo foi pra dentro do fogo, apartou, quando o bombeiro chegou, o fogo tava isolado na casa de força, tinha gente que subia, se agarrava no ferro e chutava as telhas queimando para não passar o fogo para dentro da usina. Quando o bombeiro chegou queria tirar o povo que não saía, queria ajudar, o pessoal com balde, o povo abasteceu o tanque do rio assim, carregando água, botando no tanque. Ai o bombeiro falou que nunca tinha visto isso, mas isso aqui é a vida da gente (Artur/liderança no projeto Catende/Harmonia).

Isso levou mais um tempo para que a Usina pudesse se recuperar de um grande período sem atividade, o que causava insegurança nos trabalhadores. Em 2001, por sua vez, inicia-se o projeto Cana de Morador, retomando as propostas voltadas ao plantio e à capacitação técnica do trabalhador do campo para plantar cana e diversificar a plantação, tal como será detalhado abaixo.