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O princípio da imputação

No documento PERLA CAROLINA LEAL SILVA MÜLLER (páginas 57-60)

CAPÍTULO 2 PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DA TEORIA PURA DO DIREITO

2.2 O princípio da imputação

Os fatos ou fenômenos naturais estão submetidos a um princípio pelo qual para toda causa se espera um efeito. Este é o princípio da causalidade. Consequentemente, o efeito ou conseqüência de um fato natural, submetido ao princípio da causalidade, é certo, pois dado o fato acontecerá o efeito, como sua conseqüência.

Assim, as ciências naturais baseiam-se no princípio da causalidade para estudar, de forma empírica, os fenômenos e fatos naturais, procurando verificar as correlações lógicas entre as causas e efeitos que se percebem fisicamente, definindo como ocorrem tais fatos. Portanto, estas ciências buscam apontar os fenômenos naturais como eles são.

Todavia, segundo nos informa Kelsen, quando se tem em mira o Direito, sob o ponto de vista estritamente normativo, ou outro campo igualmente normativo como a moral, o princípio da causalidade não tem aplicação. O que se estabelece entre as normas não é uma relação de causa e efeito, mas de imputação, pela qual se prescreve uma conseqüência que ‘deve’ ocorrer quando realizada uma ação ou ocorrido um fato.

Nas palavras do mestre de Viena:

Tanto el principio de causalidad como el de imputación se presentan bajo la forma de juicios hipotéticos que estabelecen una relación entre una condición y una consecuencia. Pero la naturaleza de esta relación no es la misma en los dos casos. Indiquemos ante todo la fórmula del principio de causalidad: “Si la condición A se realiza, la consecuencia B se producirá” o para tomar un ejemplo concreto: “Si un metal es calentado se dilatará”. El principio de imputación se formula de modo diferente: “Si la condición A se realiza, la consecuencia B debe producirse”. He aqui algunos ejemplos extraídos del domínio de las leyes morales, religiosas o jurídicas: “Si alguien os presta un servicio débeis agradecérselo”, “si alguien da su vida por la pátria, su memória debe ser honrada”, “aquel que comete un pecado debe hacer penitencia”, “el ladrón debe ser encarcelado”. 14

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KELSEN, Hans. Teoria pura del derecho: introducción a la ciencia del derecho. 11. ed. Buenos Aires: Eudeba, 1973. p. 26.

Quando se trata de ciências normativas, portanto, esta prescrição de conseqüência a determinado ato ou fato é apenas esperada, ditando um ‘dever ser’, pelo princípio da imputação, através do qual uma determinada conseqüência, para que ocorra, deve ser imposta por um ato de vontade; enquanto na natureza, segundo o princípio da causalidade, ocorrido um fato a conseqüência necessariamente ocorre, posto que ligada a uma correlação lógica de causa e efeito.

Assim, recorrendo novamente aos dizeres do próprio autor da Teoria Pura do Direito, temos que:

En el principio de causalidade la condición es una causa y la consecuencia su efecto. Además, no interviene ningún acto humano ni sobrehumano. En el principio de imputación, por el contrario, la relación entre la condición y la consecuencia es estabelecida por actos humanos o sobrehumanos. 15

Desta forma, as ciências causais descrevem como se dão os fenômenos ou fatos naturais estudados, sendo que, por tal motivo, Kelsen identifica este campo do conhecimento como o do ‘ser’, ao passo que o conhecimento das normas jurídicas se identificaria com o do ‘dever ser’.

Por sua vez, Kelsen identifica que o princípio da causalidade também pode ser aplicado às condutas humanas, quando se tem em mira as conseqüências experimentadas a partir de determinados fatos sociais, senão vejamos:

El principio de causalidad ha sido también aplicado a las conductas humanas consideradas como hechos pertenecientes al orden causal de la naturaleza; de aqui la constituición de ciencias causales como la psicologia, la etnologia, la historia o la sociologia, que buscan explicar las conductas humanas estableciendo entre ellas relaciones de causa e efecto. 16

Portanto, dentre as ciências sociais existe nítida distinção entre as ciências normativas – nas quais se encontra uma correlação lógica entre um fato e uma conseqüência tão somente esperada, definida simplesmente por um princípio de imputação, ou seja, por uma vontade humana – e as demais ciências que estudam a conduta humana, submetidas ao mesmo princípio da causalidade que rege as ciências naturais.

Aliás, esta distinção é de extrema importância para se entender o motivo pelo qual Kelsen estabeleceu, através do princípio da pureza, o isolamento da dogmática jurídica, da análise feita sob o prisma de outras ciências sociais que, diferentemente da ciência jurídica, estão submetidas ao princípio da causalidade. Ora, a conclusão parece óbvia quando se constata que tais ciências

15 KELSEN, Hans. Teoria pura del derecho: introducción a la ciencia del derecho. 11. ed. Buenos Aires: Eudeba, 1973. p. 26.

sociais, por não estarem submetidas ao mesmo princípio que rege a ciência jurídica, qual seja, o princípio da imputação, quando analisam o mesmo objeto de estudo, que é o Direito, chegam a proposições e conceitos diversos.

Assim, visto que as normas jurídicas não se estabelecem segundo o princípio da causalidade, mas sim por meio do princípio da imputação – segundo o qual a um ato ou fato ocorrido apenas se espera uma conseqüência definida pela vontade humana – não é possível à ciência jurídica encontrar a lógica de suas proposições, da mesma forma que acontece com as ciências causais.

Isto porque, nas ciências causais, prevalece a lógica tradicional. De acordo com tal lógica é possível verificar se uma proposição é verdadeira ou falsa, apurando, de modo empírico, se tal proposição estabelece como conseqüência para determinado ato ou fato, aquela ocorrência já constatada pela experiência. Por exemplo, se a experiência apura que o metal levado ao fogo se expande, uma proposição que conclua que o metal levado ao fogo encolhe é uma proposição falsa.

Desta forma, como não é possível aplicar a lógica tradicional sobre as ciências normativas, já que a conseqüência determinada pela norma é somente esperada, sendo definida não por um princípio de causa e efeito, mas por uma imputação determinada pela vontade, Kelsen encontrou, como alternativa epistemológica, a conceituação das normas como válidas ou inválidas.

Portanto, Kelsen estabelece, para análise do Direito Positivo, não uma estrutura pautada na lógica tradicional, mas uma coesão sistêmica baseada em uma hierarquia escalonada, na qual o suporte de validade de uma norma está na norma diretamente superior, em uma escala finita, que tem como pressuposto de validade último de todo o ordenamento jurídico, a Constituição.

Kelsen enfatiza o problema, afirmando que:

Dizer que uma norma que se refere à conduta de um individuo “vale” (é vigente), significa que ela é vinculativa, que o indivíduo se deve conduzir do modo prescrito pela norma. Já anteriormente num outro contexto, explicamos que a questão de por que é que a norma vale – quer dizer: por que é que o indivíduo se deve conduzir de tal forma – não pode ser respondida com a simples verificação de um fato da ordem do ser, que o fundamento de validade de uma norma não pode ser um tal fato. Do fato de algo ser não pode seguir-se que algo deve ser; assim como do fato de algo dever ser se não pode seguir que algo é. O fundamento de validade de uma norma apenas pode ser a validade de uma outra norma. Uma norma que representa o fundamento de validade de outra norma é figurativamente designada como norma superior, por confronto com uma norma que é, em relação a ela, a norma inferior. 17

Assim, mesmo não estando submetido ao princípio da causalidade e sim ao da imputação, pelo qual não é possível se realizar um juízo de realidade, posto que a conseqüência de uma norma não é certa, apenas esperada, Kelsen consegue atribuir ao ordenamento jurídico uma coesão sistêmica ao adotar uma ordem hierárquica e escalonada, pela qual é possível, com certa racionalidade, extrair conclusões quanto à validade ou invalidade de um enunciado prescritivo.

No documento PERLA CAROLINA LEAL SILVA MÜLLER (páginas 57-60)