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O problema do conhecimento para Kelsen

No documento PERLA CAROLINA LEAL SILVA MÜLLER (páginas 33-35)

CAPÍTULO 1 O PENSAMENTO JURÍDICO DE HANS KELSEN

1.4 O problema do conhecimento para Kelsen

A influência dos debates filosóficos travados no final do século XIX e início do século XX, principalmente através do Círculo de Viena e da Escola de Marburgo, como visto, condicionou o pensamento do jurista vienense, Hans Kelsen, a indagar quais seriam as possibilidades de conhecimento científico do Direito.

Tal questionamento revela-se ainda mais relevante para Kelsen, quando se constata o momento histórico vivido por este jurista, que começa a propagar seus primeiros estudos por volta do ano de 1911.

Nesta época o debate filosófico de maior expressão girava em torno dos fundamentos de validade do Direito, indagando-se quais seriam as justificativas de um Direito Positivo. Diversas teorias procuravam justificar o Direito Positivo através dos mais variados pontos de vista, eis que, a todo o momento, davam-lhe enfoques sob perspectivas diferentes, erguidas com base em métodos e conceitos próprios de ciências sociais diversas, as quais não tinham comprometimento com o conhecimento exclusivo do objeto a que se propunham a estudar, qual seja, o Direito.

Margarida Maria Lacombe Camargo14 define bem o momento vivido por Kelsen e as influências filosóficas que colaboraram com a criação de seu pensamento, narrando que o pensamento de Kelsen é visto como influenciado ora pelo neokantismo sudocidental alemão, ora pelo neopositivismo do Círculo de Viena, sob o ponto de vista da filosofia e da teoria do conhecimento, citando Miguel Reale, quando descreve o verdadeiro “caos” vivido pelo Direito na segunda década do século XX, assim manifestando: “A ciência jurídica era uma cidadela cercada por todos os lados, por psicólogos, economistas, políticos e sociólogos. Cada qual procurando transpor os muros da Jurisprudência para torná-la sua, para incluí-la em seus domínios.” 15

É neste cenário que Kelsen inicia a construção de uma teoria capaz de delimitar o campo de conhecimento da Ciência do Direito, tentando conferir alguma autonomia em relação às demais ciência sociais, que tentavam buscar para si a descrição, ou melhor, a justificação do Direito, porém sem êxito, na visão do jurista vienense.

14 CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação: uma contribuição ao estudo do direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.

Tércio Sampaio Ferraz Júnior16, em prólogo feito à obra de Fábio Ulhoa Coelho, ao se manifestar quanto à Teoria Pura do Direito, esclarece-nos que:

O grande objetivo da obra foi discutir e propor os princípios e métodos da teoria jurídica. Suas preocupações, neste sentido, se inseriam no contexto específico dos debates metodológicos do final do século XIX e que repercutiam intensamente no começo do século XX. A presença avassaladora do positivismo jurídico da várias tendências, somada à reação dos teóricos da livre interpretação do direito, punha em questão a própria autonomia da ciência jurídica. Para alguns, o caminho dessa metodologia indicava para um acoplamento com outras ciências humanas, como a sociologia, a psicologia e até com princípios das ciências naturais. Para outros, a liberação da Ciência jurídica deveria desembocar em critérios de livre valoração, não faltando os que recomendavam uma volta aos parâmetros do direito natural. Nesta discussão, o pensamento de Kelsen seria marcado pela tentativa de conferir à ciência jurídica um método e um objeto próprios, capazes de superar as confusões metodológicas e de dar ao jurista uma autonomia científica.

Foi com este propósito que Kelsen propôs o que denominou princípio da pureza, segundo o qual método e objeto da ciência jurídica deveriam ter, como premissa básica, o enfoque normativo. Ou seja, o direito, para o jurista, deveria ser encarado como norma (e não como fato social ou como valor transcendente). Isto valia tanto para o objeto quanto para o método.

O que Kelsen identifica como princípio da pureza é sem dúvida o ponto de partida epistemológico para construção de sua ciência jurídica. Como dito pelo próprio jurista vienense:

Quando a si própria se designa como “pura” teoria do Direito, isto significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objetivo, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito. Quer isto dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é o seu princípio metodológico fundamental.17

Por outro lado, além do princípio da pureza, Kelsen informa-nos que todo conhecimento científico deve ser neutro, ou seja, não deve emitir qualquer juízo de valor em relação ao objeto de estudo, apenas descrevê-lo.

Portanto, em seu modelo de ciência jurídica, Kelsen estabelece ao lado do princípio da pureza, a neutralidade científica, pela qual afasta da ciência a incumbência de julgar o próprio

16 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Prólogo. In: COELHO, Fabio Ulhoa. Para entender Kelsen. 3. ed. São Paulo: Max Limonad, 2000. p. 15.

Direito, de a ele atribuir um valor ou mesmo justificar este Direito através de um juízo axiológico.

Kelsen propõe, portanto, dois cortes metodológicos para definição de sua ciência jurídica: a pureza da ciência do direito, decorrente da estrita definição de seu objeto (corte epistemológico) e de sua neutralidade (corte axiológico).18

Todavia, deve ser destacado que esta segregação proposta por Kelsen, que muitos equivocadamente criticam, alegando gerar uma redução da ciência jurídica a um formalismo exagerado, não significa, como pesam tais críticos, um desprezo completo, por parte de Kelsen, dos juízos de valor e dos conceitos e proposições encontrados por outros campos das ciências sociais, que estabeleçam certo grau de conexão com o Direito.

O problema para Kelsen é identificar dentre todos os campos do conhecimento jurídico, aquele que realmente possa descrever o Direito Posto, de forma racional e segundo princípios lógicos, chegando a proposições verdadeiramente científicas, capazes de serem testadas através de uma metodologia própria.

Portanto, através do corte metodológico idealizado pelo jurista vienense, viabilizado através da utilização do princípio da pureza e do afastamento da axiologia da norma jurídica, Kelsen consegue separar de um lado o conhecimento científico do Direito e, de outro, a crítica filosófica deste conhecimento científico, onde se encontra toda sorte de juízos axiológicos ou de outros campos igualmente científicos.

No documento PERLA CAROLINA LEAL SILVA MÜLLER (páginas 33-35)