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O sistema do Direito Positivo e o sistema da Ciência do Direito

No documento PERLA CAROLINA LEAL SILVA MÜLLER (páginas 63-70)

CAPÍTULO 2 PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DA TEORIA PURA DO DIREITO

2.4 O sistema do Direito Positivo e o sistema da Ciência do Direito

Não se pode confundir o Direito Positivo com a Ciência do Direito, pois são duas realidades completamente distintas. Aliás, como adverte Fábio Ulhoa Coelho21, “[...] uma das distinções mais importantes da teoria kelseniana diz respeito à norma jurídica (Rechtsnorm), de um lado, e à proposições jurídicas (Rechtssatz), de outro.”

Comentando esta distinção, o professor Fábio informa que,

20 MOUSSALLEM, Tárek Moysés. Fontes do direito tributário. São Paulo: Max Limonad, 2001. p. 33-34. (grifo do autor).

Com tais categorias (norma jurídica e proposições jurídicas), pretendeu-se acentuar a diferença entre a atividade de aplicação do direito e a desenvolvida pelo cientista jurídico. A doutrina é um conjunto de proposições descritivas de normas. Quando a autoridade com competência para editar normas jurídicas (gerais, como a lei; ou individuais, como a sentença judicial) formula a sua prescrição, no sentido de que uma determinada conseqüência deve ocorrer em certa situação, ela externa um enunciado. De outro passo, quando o doutrinador interpreta a norma e procura examiná-la, sob vários ângulos, com vistas a fixar os seus contornos, ele também externa um enunciado. 22

O Direito Positivo apresenta-se como um conjunto de enunciados prescritivos, que são as próprias normas jurídicas, as quais determinam um ‘dever ser’ aos atos e fatos jurídicos, dirigindo-se à conduta humana. Já a Ciência do Direito se apresenta como uma linguagem descritiva, que procura identificar as possibilidades jurídicas de existência da norma, suas relações com o sistema jurídico.

Paulo de Barros Carvalho23 identifica esta situação entendendo haver dois sistemas distintos: um sistema do Direito Posto e um sistema da Ciência do Direito, ponderando que

[...] o plexo das normas jurídicas válidas está posto num corpo de linguagem prescritiva, que fala do comportamento do homem na comunidade social. Essa rede de construções lingüísticas é o que chamamos de sistema empírico do direito positivo, justamente porque está voltado para uma específica região material: certa sociedade, historicamente determinada no espaço e no tempo.

[...] sobre esse discurso prescritivo desenvolve o cientista outra camada lingüística, feita de proposições descritivas, associadas organicamente debaixo de um princípio unitário. É o sistema da Ciência do Direito. Há sistema na realidade do direito positivo e há sistema nos enunciados cognoscitivos que sobre ele emite a Ciência Jurídica.

Como já referido, o sistema do Direito Positivo é regido por uma simples razão de hierarquia, que lhe confere coesão, na medida em que se pode apurar a validade ou não de uma norma, avaliando a sua pertinência ao conjunto normativo, através de uma busca de validade dentro do próprio sistema normativo, pelo qual é possível encontrar o pressuposto de validade de uma norma jurídica em outras normas de hierarquia superior.

Ao sistema do Direito Positivo não é possível aplicarmos métodos de lógica clássica, pois os enunciados prescritivos comportam lacunas e contradições não permitidas pelos sistemas lógico-científicos. Para sustentar a coesão sistêmica e permitir um método racional de verificação do Direito Positivo, Kelsen introduz uma adaptação do método de lógica tradicional (verdadeiro

22

COELHO, Fabio Ulhoa. Para entender Kelsen. 3. ed. São Paulo: Max Limonad, 2000. p. 26.

ou falso), criando uma lógica própria à realidade do Direito, conhecida como lógica deontica (lógica do dever ser), através da qual é possível afirmar somente se uma norma é válida ou inválida; ou seja, se uma determinada prescrição foi posta por autoridade competente e se é formalmente pertinente ao sistema jurídico na qual inserida.

No caso da Ciência do Direito, as lacunas ou contradições próprias dos enunciados prescritivos não podem existir, sob pena de se anular a cientificidade do sistema proposto. Assim, diferentemente do sistema de Direito Positivo, a ciência jurídica rege-se pelo método de lógica tradicional, sendo possível ao jurista avaliar se certa proposição jurídica é ou não embasada em uma norma jurídica válida, podendo se extrair desta constatação um juízo de verdade.

Diferentemente da norma jurídica, que possui um conteúdo prescritivo e direcionado à conduta humana, as proposições jurídicas, também chamadas por Kelsen de regras de direito, são enunciadas através de uma constatação de que certa norma jurídica encontra-se vigente e válida dentro do sistema jurídico.

Assim, se uma norma prescreve que o fato de furtar coisa alheia deve ser punido com pena restritiva de liberdade, uma proposição jurídica que, ao analisar esta norma prescritiva, enuncia que o ladrão deve ser punido com pena de morte, não pode ser aceita como verdadeira, pois fixa como premissa uma conseqüência prescritiva não comportada pela norma jurídica analisada.

Isto não significa que, diante uma norma prescritiva, o intérprete do Direito possa extrair apenas uma única significação. O que se exige é que tal proposição jurídica refira-se, como premissa, a uma norma válida e, portanto, existente no ordenamento jurídico que se analisa.

As normas jurídicas são vertidas em linguagem, e como tal comportam uma interpretação sensorial pelo sujeito congnoscente. Assim, dada à ambigüidade comum aos signos lingüísticos, não é possível ao homem apreender um único sentido do texto normativo, podendo, pois, serem múltiplas as significações extraídas de um enunciado prescritivo.

O constitucionalista Celso Ribeiro Bastos nos explica que

[...] interpretar é atribuir um sentido ou um significado a signos ou a símbolos, dentro de determinados parâmetros. É que a linguagem normativa não tem significações unívocas. Os seus vocábulos comportam mais de um conceito, o que, por si só, já seria bastante para justificar a necessidade da interpretação. Esta viria a reduzir as inteligências possíveis a uma só: a escolhida para decidir o caso concreto. 24

24

BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Celso Bastos, 2002. p. 28.

Essa busca de significação realizada através da interpretação dos enunciados prescritivos pode ser direcionada para duas perspectivas diferentes. Num primeiro aspecto pode ser direcionada a analisar os sentidos possíveis das normas jurídicas enquanto inseridas em num conjunto normativo, observando o sistema jurídico em seu viés estático.

Por sua vez, o sistema jurídico comporta também um aspecto dinâmico, pelo qual se procura o sentido e o alcance da norma jurídica enquanto destinada à criação de outra norma jurídica, seja de caráter geral e abstrato posta pelo legislador, seja individual e concreta posta pelo aplicador do direito.

Sob este ponto de vista dinâmico do direito, constata-se a forma pela qual o direito determina sua própria criação. A Constituição regula a criação legislativa, ou seja, de normas jurídicas gerais e abstratas. Por sua vez, as próprias normas gerais e abstratas criadas pelo legislador regulam a forma de criação de normas individuais e concretas, postas no sistema através das sentenças judiciais, dos atos administrativos de cunho normativo (regulamentos, decisões administrativas) e mesmo dos atos jurídicos de direito privado que adquirem força normativa entre as partes (contratos, ex vi).

Quanto à função legislativa, a criação de uma nova norma deverá obedecer às normas superiores que determinam a competência para se criar este novo enunciado prescritivo, o que determinará a sua validade, cabendo ao legislador pautar-se pela não contrariedade em relação às demais normas vigentes, partindo de uma interpretação de normas superiores para se verificar a pertinência do enunciado que se pretende enunciar.

Por sua vez, quando o legislador dirige-se para a conduta humana que pretende regular, fixando para determinado fato uma conseqüência, realiza verdadeira opção política, impregnada de carga valorativa, expressa através de um juízo axiológico de índole subjetiva.

Situação semelhante acontece com o aplicador do direito que, diante de um fato concreto, prescreverá uma norma individual e concreta com a finalidade de regular determinado fato ou conduta humana.

Assim, acontecido o fato concreto no mundo fenomênico, e captado o mesmo pelo direito, caberá a aplicação da conseqüência normativa esperada, conforme definido no esquema normativo.

A Ciência do Direito, ao analisar as normas jurídicas diante um caso concreto, realiza verdadeiro trabalho de hermenêutica, buscando o sentido e alcance da norma e a sua adequação ao fato jurídico, ou seja, procurando, através de uma interpretação dos enunciados prescritivos que compõem o direito posto, qual a regra de conduta a ser aplicada ao caso.

Nesta busca pelo sentido da norma jurídica, surge ao cientista do direito a árdua tarefa de encontrar, dentro de todo o ordenamento jurídico, o real comando aplicável ao caso concreto.

Assim, tendo em vista que o ordenamento jurídico se caracteriza por um campo de linguagem, o direito é suscetível de uma gama de interpretações possíveis, tantas quantas forem as combinações lingüísticas que se apresentem aos sentidos do intérprete.

Dentre os diversos enunciados prescritivos que o texto do direito positivo revela, cabe inicialmente um trabalho de busca pelas disposições aplicáveis ao caso concreto, para então apurarem-se as diversas significações lingüísticas encontrados pela apreensão do intérprete. Estes sentidos possíveis devem ser conformados com os demais enunciados prescritivos que se correlacionam, buscando o sentido completo da norma aplicável, dentro de uma análise sistemática do ordenamento jurídico, e verificando os pressupostos de validade da norma jurídica encontrada ante a hierarquia normativa que compõe o sistema.

Este trabalho de busca do sentido do texto do direito positivo, sem qualquer possibilidade de valoração do conteúdo normativo, ou seja, isento de qualquer juízo de justiça, de intenção política ou repercussão social da norma, se mostra um tanto formalista, parecendo desprender-se de qualquer pretensão de se apurar o verdadeiro alcance buscado pela norma jurídica, o que tornam possíveis interpretações completamente distantes dos ideais almejados pela sociedade e pelo próprio legislador.

Realmente, a interpretação jurídica na obra de Kelsen não visa um conteúdo valorativo da norma jurídica, mas tão somente identificar as possíveis molduras normativas válidas perante o sistema do direito positivo vigente. E quando se diz válida perante o sistema significa dizer que tais molduras normativas encontram amparo na hierarquia do sistema normativo, alcançando sua validade em normas superiores.

Estas molduras normativas identificadas pela ciência do direito, na realidade são regras de direito e não normas jurídicas, ou seja, são proposições descritivas do direito positivo, para as quais a ciência, através de técnicas hermenêuticas, conseguiu encontrar suporte e validade dentre do sistema jurídico analisado.

E é esta a distinção crucial para se entender bem a teoria de Kelsen. Veja-se que quando a ciência do direito, em sua busca descritiva do direito, identifica regras de direito possíveis dentro de uma moldura normativa válida, não está dizendo a norma jurídica propriamente dita, mas apenas um esquema normativo válido.

A norma jurídica, na realidade, é definida sempre por um ato de vontade (subjetivo) do aplicador do direito que, optando por um dos arquétipos descritivos da ciência do direito, faz nascer uma norma jurídica, criando nova norma jurídica posta.

Neste sentido:

La interpretación del derecho, por ejemplo, un tema ‘técnico’. Kelsen plantea allí, que la tarea de los juristas es una tarea ‘política’. Si se trata de la creación del derecho por el legislador, no hay duda de la politicidade del acto. Si se trata de un juez, lo que este hace es elegir entre varias interpretaciones posibles, y producir, por un acto de voluntad, una norma individual. Es también un acto político. Lo que hay que distinguir aquí, es el papel de la ciencia. La ciencia no crea derecho. El científico, para serlo, debe limitarse a mostrar cuáles son las opciones entre las que el juez pude elegir. Pero ‘el abogado que, em interes de su parte, solo invoca ante el tribunal una de las varias interpretaciones posibles de la norma jurídica aplicable al caso; el escritor que em su comentário caracteriza una determinada interpretación, entre varias posibles, como la única ‘correcta’, no cumplen una función cientifico-jurídica, seno una función cientifico-política. Tratan de ganar influencia sobre la producción del derecho’. 25

Portanto, a aplicação do direito, no momento que aponta a norma jurídica aplicável ao caso concreto, está realizando, por um ato de vontade, a criação de uma norma jurídica individual e concreta, a exemplo do ato praticado pelo legislador, que faz inserir norma jurídica no sistema, porém de ordem abstrata e geral.

A criação do direito, seja através do ato do legislador, que faz inserir uma norma jurídica geral e abstrata, seja através do aplicador do direito, que cria uma norma individual e concreta, é definida por Kelsen como um ato de vontade.

O que Kelsen pretendeu dizer com isto, e que talvez não tenha sido bem entendido, é que, justamente neste momento de criação do direito, a autoridade investida do poder de criar normas jurídicas está sujeita a toda sorte de influência filosófica, política e cultural, que a irão guiar, inevitavelmente, para um juízo de valor, no momento de opção entre as possibilidades jurídicas que lhe são apresentadas como válidas, pela ciência jurídica.

Cabe distinguir aqui, portanto, dois aspectos distintos que se apresentam no momento de criação do direito por seus órgãos legitimados. O aspecto da ciência do direito, que vai apontar as regras de direito, as molduras normativas possíveis e válidas dentro do sistema jurídico, e o aspecto da opção do legislador ou do aplicador do direito, quando da escolha de uma dentre as possíveis molduras normativas reveladas pela ciência do direito.

O princípio da pureza pregado por Kelsen encerra-se na própria ciência, enquanto pesquisa os sentidos possíveis da norma jurídica dentro do direito posto. Kelsen não nega em sua obra que no momento de criação do direito, ou seja, no momento em que uma norma é posta, incida a influência de outras vertentes do conhecimento humano. O que nega é o

25

CORREAS, Óscar. El otro Kelsen. In: ______. (Comp.). El otro Kelsen. 2. ed. México: Coyoacán, 2003. primera pte. cap. 2. p. 60-61.

absolutismo de tais influências, como revelador de um real conteúdo da norma jurídica ou como pressuposto de validade do sistema, eis que, segundo a visão relativista do jusfilosofo austríaco, tais pressupostos nem sempre são absolutos.

Portanto, e primeiramente, o que pretendeu Kelsen foi, na realidade, encontrar, através de uma ciência pura do direito, o que realmente é jurídico, extirpando das proposições normativas aquelas que não encontrem sua validade no próprio sistema jurídico. Isto para, num segundo momento, e com liberdade filosófica, realizar a escolha dentre as possibilidades normativas apontadas pela ciência jurídica, criando a norma jurídica, seja ela de caráter geral e abstrato, ou individual e concreto, através de um ato de vontade, ou seja, um ato político/ideológico, sujeito à influência cultural inerente àquele que está revestido da legitimidade concedida pelo direito para inserir normas jurídicas no ordenamento.

No documento PERLA CAROLINA LEAL SILVA MÜLLER (páginas 63-70)