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A INTERVENÇÃO DOS ANTROPÓLOGOS E O INVENTÁRIO NACIONAL DE

2. O PROGRAMA DE PRESERVAÇÃO DO PATRIMONIO CULTURAL DAS FAMÍLIAS

2.3. A INTERVENÇÃO DOS ANTROPÓLOGOS E O INVENTÁRIO NACIONAL DE

A análise desse processo abre um amplo leque de discussões. A primeira delas é: o que expressa o resultado do Inventário? Nota-se que, para o caso de Irapé, a forma de abordar o objeto a ser inventariado já estava previamente definido quando da execução do trabalho.

Defendo a idéia de que este olhar pré-estabelecido sobre o patrimônio cultural das comunidades de Irapé se consolidou em três níveis diferentes, complementares e interdependentes. O primeiro nível, mais geral, diz respeito ao fato de que a própria noção do que vem a ser patrimônio imaterial já está definida nas políticas públicas, assim como a metodologia a ser adotada para sua identificação. Ou seja, a implementação de uma política pública e de uma metodologia padrão de abordagem desses bens estabelece uma dinâmica processual que termina ela mesma por estabelecer recortes, incluir e excluir, afastar outros olhares e abordagens possíveis. A pergunta que cabe é o que fazer com aqueles aspectos tradicionais que não apresentam relevância que “justifique” seu registro em nível federal. No caso de Irapé, o que fazer com aqueles aspectos que não se enquadram nas categorias de celebrações, saberes, lugares e formas de expressão, como por exemplo, o ordenamento de tempo e do espaço no cotidiano das comunidades, questão que é absolutamente fundamental para a reconstrução das vidas das pessoas nas novas comunidades, pós reassentamento?

Esta estruturação metodológica promove uma estruturação do olhar daqueles técnicos envolvidos com os processos de inventário, reconhecimento e registro desses bens, e, aqui, apresento o segundo nível ao qual me referi anteriormente. Fala-se em bens de natureza dinâmica, mas o olhar que se coloca sobre eles foi estruturado previamente. Isso fica claro

quando se observa a listagem de bens apresentada no PCA, apresentada no Anexo II, que estava em acordo com as políticas públicas e com o estabelecido correntemente. Essa afirmação pode causar estranheza, num primeiro momento, e um interlocutor mais atento poderia me questionar se, então, o que teria que ser feito é não adotar os conhecimentos e avanços (que existem, é óbvio) daquelas metodologias e instrumentos de políticas públicas disponíveis; nesse caso, para se utilizar o que como alternativa? O que proporia em termos de novidade metodológica que me põe em condições de estabelecer esta crítica? Antes de responder a esta questão, que espero que meu interlocutor imaginário considere respondida até o final dessa dissertação, proponho uma contra-pergunta, para elucidar minha linha de raciocínio. O fato de a CEMIG não ter contratado um antropólogo para exercer a coordenação do Inventário, tal como preconizado pelo Manual do INRC, modifica de que maneira o resultado final obtido, na medida em que, primeiro, a metodologia e procedimentos já se encontravam contratados e em execução? E antes que meu interlocutor me interrompa com um: “mas isso é um problema do empreendedor, que não se dispôs a desenvolver o processo

como ele deve ser”, sigo minha linha de raciocínio perguntando o que mudaria o resultado

obtido se, em segundo lugar, o antropólogo, especialista em inventário de bens de natureza imaterial, estabelecesse um processo diferenciado do que realmente ocorreu, mas mantendo o mesmo olhar do que vem a ser o patrimônio imaterial (em acordo com as conceituações estabelecidas pelos órgãos oficiais), e, por fim, naquele lugar de propor uma versão do patrimônio das comunidades de “segunda mão ou de terceira mão”?

A discussão posta aqui diz respeito aos novos papéis assumidos pelos antropólogos no exercício de sua profissão, os quais implicam em métodos e em respostas diferenciadas das pesquisas etnográficas produzidas no âmbito acadêmico para a produção de monografias, dissertações e teses. Trata-se de um exemplo de ampliação do ofício do antropólogo: a realização dos Inventários de Bens de Natureza Imaterial. O que se nota, contudo, é que este tipo de trabalho apresenta características e metodologias particulares, próprias da atuação no âmbito da máquina administrativa e da concepção do IPHAN, o que exige novos critérios de inserção do antropólogo, além de uma profunda reflexão acerca das diferenças entre o trabalho acadêmico e o trabalho político. Nesse caso, a primeira grande questão que levanto é que o olhar sobre os grupos estudados é direcionado pelas questões do patrimônio, tal como preconizado pela metodologia do INRC. Ora, esta é uma visão completamente diferente do conceito do etnólogo orgânico, com o qual trabalha Oliveira (2004), tomando a expressão gramsciana, quando pretende falar da condição de situação do antropólogo, no que diz respeito ao fato dele sempre falar de algum lugar. O que chamo atenção aqui é para o

processo de intervenção em comunidades com fins específicos já definidos por uma prática padronizada no âmbito dos organismos de governo. É a isso que estou chamando de estruturação do olhar daqueles que participam dos processos de realização dos Inventários de Bens de Natureza Imaterial.

Esta questão da ampliação do universo de atuação dos antropólogos e da necessidade de reflexão acerca dos parâmetros e característica desses trabalhos tem sido levantada principalmente no âmbito da realização de laudos antropológicos periciais solicitados por órgãos como o Ministério Público6. Entretanto, as reflexões feitas para esta questão servem para as situações aqui relatadas na medida em que há um tipo de prática atribuída ao antropólogo e para o qual ainda não foram discutidos e sedimentados os procedimentos necessários para o desenvolvimento dessas atividades. Dessa maneira, a prática antropológica de realização de inventários de bens de natureza imaterial vai se construindo aos poucos, a partir das experiências vivenciadas e sendo adotada pelo IPHAN e por outros órgãos ligados à preservação do patrimônio, sem que, contudo, haja uma reflexão mais profunda das implicações dessas práticas junto às comunidades.

O olhar de quem focaliza o objeto e a quem serve a utilização deste tipo de inventário, no caso de processos de remanejamento compulsório é o cerne desta discussão. E aqui ressalto que não discuto a metodologia do INRC, lato sensu, mas seu contexto específico de utilização no caso de Irapé, embora algumas reflexões possam ser aproveitadas para outros contextos. E, nesse ponto, apresento o terceiro nível e, talvez, a mais fundamental das questões. O fato de não haver pessoas das comunidades participando do processo de concepção do inventário e somente como informantes quando da realização do levantamento de dados em Irapé, já permite antever que o olhar deste inventário não teve como referência o dos atingidos, mas o de um terceiro. Aqui coloca-se em questão a possibilidade de apropriação dessas informações geradas pelo Programa de Preservação do Patrimônio Cultural em seu processo de reconstrução de identidades nas novas áreas de reassentamento. Este é o cerne da discussão: em processos de remanejamento compulsório, em função da implantação de empreendimentos ou não, o foco dos programas de resgate do patrimônio destas comunidades não é o patrimônio, mas o processo de reflexão que se estabelece com os atingidos. Nessa medida, pode-se dizer que importa menos o patrimônio que será inventariado, mas para quem (e com quem) esse levantamento será feito. Mesmo porque as

condições de existência desse patrimônio estarão fadadas a uma profunda alteração, tendo em vista as mudanças materiais necessárias à sua realização.

Chamo atenção, aqui, para a importância de se considerar o patrimônio cultural das comunidades reassentadas nos moldes propostos por Gonçalves (2005, p. 16), enquanto mediador entre “diversos domínios sociais e simbolicamente construídos”. É esta característica de mediador que possibilita a utilização desta categoria num processo de reassentamento compulsório, na medida em que permite questionar: num contexto em que alterações materiais ocorreram, é possível pensar na reconstrução de uma identidade que leve em conta os conhecimentos anteriormente adquiridos e as características das novas áreas de moradia? Entretanto, esta reflexão só pode ser desenvolvida tendo em vista não somente as categorias de patrimônio já definidas a priori, mas uma relação íntima e profunda com a cultura e, como sugere Gonçalves, com a materialidade da cultura, nas antigas áreas de reassentamento, juntamente com as possibilidades materiais oferecidas nas novas áreas.

Nessa medida, o trabalho a ser desenvolvido pelo antropólogo, especialista em execução de inventários de bens natureza imaterial, é menos o do levantamento daquelas manifestações consagradas pela metodologia do IPHAN, mas o de exercer aquela que sempre foi a característica da profissão. Ou seja, cabe ao antropólogo desempenhar o papel de mediador, utilizando-se, para tanto, da postura já consagrada de descobrir a lógica de constituição das construções culturais e suas classificações, bem como dos jogos estabelecidos nesse contexto.

O que chama atenção é que este trabalho só se torna possível na medida em que o antropólogo assume sua interferência sobre a comunidade, o que coloca uma questão ética acerca deste trabalho de intervenção em um momento em que existe um contexto de decisões vitais para aquele grupo7. Aqui, o artigo de Fernandes (2005) oferece aportes importantes para essa discussão. Ao antropólogo cabe o papel de mediador entre os diferentes pontos de vista: aqueles existentes dentro da própria comunidade impactada, entre a comunidade e o empreendedor e destes com os órgãos governamentais ligados ao processo de licenciamento

7 Embora a questão ética não seja o foco da minha análise, considero que ela é fundamental no âmbito da discussão empreendida, não somente para os casos de atuação de antropólogos em processo de remanejamento compulsório, mas também, da sua atuação em processos de registro de bens de natureza imaterial, já que o processo de registro de determinado “bem imaterial” interfere substantivamente no desenvolvimento daquela prática, podendo imprimir nela o tom da teatralização, esvaziando os conteúdos e significados desenvolvidos em sua realização cotidiana, ou dar contornos outros que sem a intervenção patrimonializadora não aconteceriam. Ou seja, este trabalho contínuo de interpretação das práticas tradicionais pode ser colocado em risco em virtude desta significação de um grupo externo (o próprio IPHAN). Em termos éticos, este tipo de atuação merece uma profunda reflexão por parte dos antropólogos, a qual vem sendo desenvolvida, como por exemplo, nos trabalhos já listados na citação anterior.

ou de registro. Entretanto, segundo o autor, a ele (antropólogo) não cabe participar dos processos de decisão.

Ao circular entre a comunidade e entre os agentes que promovem e autorizam as transformações esperadas, o antropólogo cumpre um importante papel na produção e na comunicação de pontos-de-vista. O antropólogo está, portanto, inevitavelmente confinado a uma posição de intermediação. Porém, esperar que o antropólogo possa intermediar decisões é ultrapassar um importante limite de nossa atuação. Afinal, intermediamos discussões, pontos-de-vista, e não decisões. (FERNANDES, 2005, p. 206).

O que me parece importante salientar para essa discussão, em discordância com o posicionamento de Fernandes, é que o fato de assumir o papel de “mediador de pontos-de-vista”, nesse contexto, já implica num tipo de intervenção que não pode ser desconsiderado pelos antropólogos. Isto porque a adoção do olhar antropológico e da ferramenta da Etnografia num processo como o de licenciamento ambiental pode conduzir a caminhos não esperados, em função de que a postura metodológica frente às comunidades é diferente daquela comumente adotada. Essa relação entre postura metodológica e o posicionamento será tratada a seguir.

As considerações anteriores serviram para elucidar os meandros que se colocam quando dizemos que o olhar do técnico especializado, o olhar do patrimonializável, direcionou a execução do inventário realizado em Irapé. Além disso, dando continuidade ao caso de Irapé, por questões de condução do processo, não houve uma discussão com os atingidos para definição prévia do que para eles era considerado mais relevante a ser levantado. O que me parece importante é que esse direcionamento não foi estabelecido somente pela CEMIG, por meio dos seus processos de contratação e prazos a serem cumpridos e posturas enquanto empreendedor, mas também pela concepção mesma de patrimônio cultural, tal como desenvolvida e defendida pelos técnicos especialistas contratados.

É preciso ter cuidado para não se jogar fora a criança junto com a água do banho: se por um lado, o olhar patrimonializado direcionou a execução do trabalho no âmbito do Programa de Preservação do Patrimônio Cultural de Irapé, por outro, fez com que determinados aspectos fundamentais do cotidiano e das tradições das comunidades fossem sistematizados e conhecidos, o que não é pouca coisa. Tal como foi salientado por uma professora da comunidade de Posses, no município de Leme do Prado, presente em uma das oficinas de Educação Patrimonial. Sua afirmação foi feita num contexto de demanda, por

parte de representantes de alguns municípios, de que fosse realizado o mesmo trabalho de inventário do patrimônio nas sedes dos municípios, mas dá uma idéia da importância do trabalho realizado: “Foi a primeira vez que foi dada voz ao pessoal da beira do rio. Até hoje tudo que houve em termos de política foi para a sedes dos municípios, esse é o primeiro trabalho para os ribeirinhos”.

As questões colocadas são importantes no sentido de pensar uma metodologia que contribua num processo de reconstrução de referências pessoais e coletivas, num contexto de desagregação de referências materiais de sua existência, e são fruto da interação com as comunidades de Irapé e, mais especificamente com a comunidade de Peixe Cru, de quem começo a tratar a partir de agora e no próximo capítulo. Aqui, ainda trato somente da aplicação do INRC na comunidade. A caracterização da comunidade, assim como a análise mais aprofundada do processo de mudança e da importância dos aspectos imateriais (e materiais) da cultura nesse momento do remanejamento compulsório são apresentados no próximo capítulo.

Uma última questão desse tópico diz respeito ao retorno dado às comunidades com o material produzido pelo Programa. Em primeiro lugar, este retorno se deu em forma de devolução dos dados gerados durante a realização do trabalho. Para isso, foram elaborados um CD contendo parte das informações e registros, mapas culturais impressos e cartilhas sobre o tema do patrimônio. Este material foi entregue durante as Oficinas de Educação Patrimonial, cujo público foram lideranças locais e pessoas ligadas à área cultural das sedes dos municípios afetados pelo reservatório da UHE Irapé. As únicas comunidades reassentadas que tiveram algum acesso ao material produzido foram Peixe Cru e Porto Coris, nas quais foi desenvolvida uma Oficina de Educação Patrimonial.

A outra forma de retorno às comunidades, conforme previsto no Programa de Preservação do Patrimônio Cultural, se dará por meio dos trabalhos a serem realizados no âmbito dos Centros de Referência e Memória. Entretanto, a questão que se coloca é o fato de que a CEMIG não possui como atividade fim a promoção de atividades culturais, deixando, assim, dúvidas em relação à continuidade do trabalho a ser desenvolvido. Tem sido feito uma tentativa de aproximação, por parte da CEMIG, junto à Secretaria de Estado da Cultura, para a inclusão dos Centros de Referência e Memória no percurso, do “Museu de Território do Vale do Jequitinhonha”, em processo de implantação pela Superintendência de Museus.

Nesse ponto chama atenção a noção de “retorno às comunidades”, que implica num tipo de atuação que não considera as comunidades como atores do processo de reassentamento ou de envolvidos no processo de reflexão acerca de seu patrimônio cultural. A

visão aqui desenvolvida é aquela de que um especialista, dotado das competências técnicas necessárias, desenvolve uma série de ações com vistas à garantia de direitos daquela comunidade e, posteriormente, repassa a ela o resultado de seu trabalho. Este tipo de prática, já exaustivamente discutida quando da implementação das metodologias participativas, não se mostra adequada, já que a apropriação das comunidades é feito durante a condução dos processos e não após a sua realização, sob pena de descartados a posteriori.