• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 3 O MODELO TRADICIONAL DE EXTINÇÃO E MODIFICAÇÃO DO ATO

3.4 A retirada do ato administrativo e suas espécies

3.4.4 A revogação do ato administrativo e seus efeitos

3.4.5.4 A invalidação e o posicionamento dos Tribunais

As hipóteses de extinção e de modificação dos atos administrativos nunca foram sistematizadas por disposições legislativas que pudessem fundamentar uma construção normativa geral. Por essa razão, os tribunais acabaram protagonizando a criação de uma teoria geral, especialmente no que se refere à revogação e à invalidação dos atos administrativos. As demais hipóteses (cumprimento dos seus efeitos, desaparecimento do elemento infungível, renúncia, cassação, caducidade e contraposição ou derrubada) acabaram recebendo tratamento pontual e, muitas vezes, foram inseridas ou mesmo confundidas com a teoria das nulidades.

Importante, pois, compreender a evolução da teoria das nulidades na jurisprudência, o que se faz a partir de julgados do STF e do STJ.

Ainda sem rigor técnico que diferenciasse os conceitos de invalidade e revogação, em 1943, chegou ao STF a discussão sobre a possibilidade de a própria Administração Pública, no exercício do que foi posteriormente chamado de autotutela, rever seus próprios atos quando identificada irregularidade. Diversos casos levaram à edição das Sumulas 346 e

381 ALESSI, Renato. Sistema Istituzionale del Diritto Amministrativo Italiano. 3. ed., Milão, Giuffrè, 1960, p. 281. Posição também referida por ZOCKUN, Maurício. Dos atributos e da extinção dos atos administrativos. Disponível em:<http://www.zockun.com.br/downloads/Dos%20atributos%20e%20da%20extin%C3%A7%C3% A3o%20dos%20atos%20administrativos.pdf>. Acesso em: 7 set. 2013.

473382, mas, no leading case, discutia-se a licitude do cancelamento dos diplomas de dois médicos obtidos sem os requisitos legais da época – falha curricular em seus históricos.

Na oportunidade, o tribunal decidiu que “a autoridade que tem competência expressa

para a prática de um ato, tem-na, extensivamente, para a anulação desse ato.” 383 E o fez fundamentando-se expressamente nos arts. 82 e 130 do Código Civil de 1916, segundo a teoria das nulidades construída pelo direito privado.

Esse julgamento foi sucedido por outros importantes precedentes,384 embora esparsos, como o RE 9.830 e o RMS 1.135, Rel. Min. Annibal Freire,385 o RE 26.565, o MS 4.609, o RMS 7.983, o RMS 8.731 e o RMS 9.460. No MS 15.512, Rel. Min. Lafayette de Andrada, j. 30.9.1964, nos quais afirmou-se que “os atos administrativos de que resultam direitos, a não

ser quando expedidos contra disposição expressa de lei, são irrevogáveis.”

Com a edição das Súmulas 346 e 473 do STF que autorizavam a anulação dos atos administrativos eivados de nulidade, a qualquer tempo e independentemente de processo administrativo386, ficou claro que o Tribunal havia optado pela Teoria Monista, segundo a qual se admitia apenas a hipótese de nulidade e a dispensabilidade de qualquer motivação bem como de procedimento administrativo. Do precedente formado no RE 27.031, Rel. Min. Luiz Gallotti, DJ 03.8.1955, pode-se extrair uma síntese da posição adotada pela Corte:

A revogação se dá por motivos de conveniência e oportunidade, e não será possível quando do ato revogado já houver nascido um direito subjetivo. [...] A anulação caberá quando o ato contenha vício que o torne ilegal (não será possível falar então de direito subjetivo que haja nascido, pois do ato ilegal não nasce direito).

382 STF. Súmula 346: “A administração pode declarar a nulidade de seus próprios atos”. STF. Súmula 473: “A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos

adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial”.

383 STF. Apelação Cível n. 7.704/DF, Rel. Min. José Linhares. Publicado em 19.01.1943: “já aqui a questão não é de invasão eventual da órbita judiciária, o que já foi examinado, mas da extensão dos poderes administrativos, questões diferentes e que se acham emburilhadas em diversos lances dos autos. Assentando que pode a Administração anular seu ato contrário à lei, salvo à parte recurso à justiça, esta é a questão fundamental dos autos – é certo que, na órbita administrativa, não oferece dúvidas a proposição de que a autoridade, a que compete a prática de um ato, compete a de sua anulação, se cabível e quando cabível”.

384 SANTOS NETO, João Antunes dos. Da anulação ex officio do ato administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2006, p. 141-151.

385 Subtenentes que foram colocados em disponibilidade remunerada e depois reformados no posto de Segundo Tenente, com o que tornado sem efeito o ato anterior que lhes atribuía remuneração do posto superior.

386 STF. 1ª Turma. RE 247.399/SC, rel. Min. Ellen Gracie. DJU 24.5.2002, p. 66: “Pode a Administração Pública, segundo o poder de autotutela a ela conferido, retificar ato eivado de vício que o torne ilegal,

prescindindo, portanto, de instauração de processo administrativo”. STF, 5. Turma. ROMS 12.297/SC, rel. Min. José Arnaldo da Fonseca. DJU 03.06.2002, p. 217: “O ato de transposição de cargo fora totalmente ilegal, uma

vez efetuado ao arrepio da nova ordem constitucional, ferindo o princípio da moralidade, podendo, assim, ser

Contudo, em algumas oportunidades, após a edição da Súmula 473, o Supremo admitiu a existência de atos administrativos anuláveis (RE 79.432, Rel Min. Djaci Falcão e RE 116.693, Rel. Min. Carlos Madeira, j. 27.09.1988). Além disso, a partir do julgamento do MS 13.942, Rel. Min. Vilas Boas, j. 23.9.1964, no qual se debatia a regularidade de ato que tornou sem efeito o enquadramento definitivo do pessoal da Comissão do Vale do São Francisco, o Tribunal posicionou-se pela necessidade de fundamentação dos atos anulatórios, pois “praticará abuso de poder, sempre que o fizer quanto a uma resolução que haja

produzido efeitos, sem indicar os vícios que a poluem”.

A partir dessa construção, os tribunais têm reiterado, como regra, o posicionamento no sentido de que o ato administrativo nulo deve ser suprimido da ordem jurídica e de que, além disso, não pode gerar ou ter mantidos os seus efeitos. Essa a posição do STJ, que vem reafirmando que a nulidade opera com efeitos ex nunc, restabelecendo o status quo ante (STJ, REsp 161.005, rel. Min. Jorge Scartezzini, DJ 16.06.2003). Como fundamento de suas decisões, além das súmulas do STF, o Tribunal utiliza as normas da Lei 4.717/65 (STJ, REsp 450.700, Rel. Min. Luiz Fux, DJ 07.4.2003).387

Não se pode negar, contudo, que, em alguns precedentes, o STF tem flexibilizado o próprio entendimento de que os atos nulos não produzem efeitos e, mais recentemente, mitigou o próprio postulado de que este deve ser suprimido da ordem jurídica.

Ao julgar o RE 330.834, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 22.11.2002, concedeu indenização a Oficial do Corpo de Bombeiros que pediu exoneração de seu cargo no Rio de Janeiro para ocupar cargo na corporação do Maranhão, que estava sendo criada. Contudo, sua nomeação no novo quadro se deu sem concurso público, razão pela qual foi anulada por ato da Governadora dois anos depois. O julgado aponta o dever do Estado de cuidar da legalidade dos seus atos e, embora não expressamente, tem como pano de fundo a presunção de legalidade dos atos administrativos e a proteção da confiança.

Já no julgamento do MS 22357/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 5.11.2004,388 manteve-se a nomeação de agentes públicos sem concurso, mas submetidos a processo

387“10. Deveras, o art. 2º, da Lei 4.717 considera nulo o ato derivado de autoridade incompetente, porquanto a competência é a condição primeira de validade do ato administrativo quer seja vinculado ou discricionário. 11. Consectariamente, toda invalidação, diferentemente da revogação, tece efeitos ex nunc, por força mesma da norma constitucional inserta no art. 37, da CF, que responsabiliza a Fazenda Pública pelos atos ilícitos e pelos

atos lícitos inválidos.”

388“EMENTA: Mandado de Segurança. 2. Acórdão do Tribunal de Contas da União. Prestação de Contas da Empresa Brasileira de Infra-estrutura Aeroportuária - INFRAERO. Emprego Público. Regularização de admissões. 3. Contratações realizadas em conformidade com a legislação vigente à época. Admissões realizadas por processo seletivo sem concurso público, validadas por decisão administrativa e acórdão anterior do TCU. 4. Transcurso de mais de dez anos desde a concessão da liminar no mandado de segurança. 5. Obrigatoriedade da observância do princípio da segurança jurídica enquanto subprincípio do Estado de Direito. Necessidade de

seletivo validado por decisão administrativa e por acórdão anterior do TCU. O Tribunal salientou, como pontos relevantes, o transcurso de mais de dez anos desde a concessão da liminar no mandado de segurança e a observância do regulamento da Infraero, vigente à época, diante da existência de controvérsia quanto à exigência de concurso público no âmbito das empresas públicas e sociedades de economia mista. A decisão fundamentou-se no princípio da segurança jurídica enquanto subprincípio do Estado de Direito, que exige a estabilidade das situações criadas administrativamente.

Quanto ao procedimento administrativo, atualmente, é inquestionável a necessidade de sua instauração prévia, com a garantia do contraditório e da ampla defesa, antes que seja extinto ou modificado qualquer ato administrativo que prejudique direito de terceiros.389 Não obstante, a doutrina tradicional e a jurisprudência consideram que o papel do procedimento administrativo seria não apenas garantir que fossem ouvidos e considerados os argumentos de todos os interessados, mas também assegurar que eventuais afetados não sejam surpreendidos com uma decisão unilateral e abrupta do Poder Público. Nesse sentido, alguns autores390 sustentam que o procedimento administrativo de apuração seria suficiente para garantir a boa- fé objetiva, pois impediria “que aqueles que podem ser surpreendidos com o controle de

juridicidade da Administração se surpreendam com um inesperado, unilateral e coercitivo pronunciamento extintivo de ato anterior”.391

estabilidade das situações criadas administrativamente. 6. Princípio da confiança como elemento do princípio da segurança jurídica. Presença de um componente de ética jurídica e sua aplicação nas relações jurídicas de direito público. 7. Concurso de circunstâncias específicas e excepcionais que revelam: a boa fé dos impetrantes; a realização de processo seletivo rigoroso; a observância do regulamento da Infraero, vigente à época da realização do processo seletivo; a existência de controvérsia, à época das contratações, quanto à exigência, nos termos do art. 37 da Constituição, de concurso público no âmbito das empresas públicas e sociedades de economia mista. 8. Circunstâncias que, aliadas ao longo período de tempo transcorrido, afastam a alegada nulidade das contratações

dos impetrantes. 9. Mandado de Segurança deferido”.

389 STF. 1ª Turma. RE 435196 AgR/CE, Min. Dias Toffoli. DJe 29.10.2012: EMENTA Agravo regimental no recurso extraordinário. Servidor público. Nulidade da nomeação. Demissão. Princípios do contraditório e da ampla defesa. Observância. Necessidade. Reexame da legislação local e dos fatos e das provas dos autos Impossibilidade. Precedentes. 1. O entendimento desta Corte está consolidado no sentido de que qualquer ato da Administração Pública que repercuta no campo dos interesses individuais do cidadão deverá ser precedido de prévio procedimento administrativo no qual se assegure ao interessado o efetivo exercício do direito ao contraditório e à ampla defesa. 2. Inadmissível, em recurso extraordinário, o reexame da legislação infraconstitucional local e das provas dos autos. Incidência das Súmulas 280 e 279/STF. 3. Agravo regimental não provido.

390 CARVALHO, Raquel Melo Urbano de. Curso de direito administrativo. Salvador: Jus Podium, 2008, p. 452.

“Cumprida a exigência de processo administrativo anterior à invalidação, não se pode afirmar que o terceiro viu-

se surpreendido com frustração abrupta da expectativa legítima na presunção de legitimidade do ato viciado, o que preserva a segurança jurídica. Ademais, tem-se a transferência da decisão administrativa, em um processo dialético que deixa clara a boa-fé pública. Por fim, é fundamental assegurar a efetiva supremacia do interesse público primário, ou seja, o interesse de toda a sociedade, que não admite sacrifício para o benefício isolado de

um de seus membros, contrariamente àquilo que o sistema lhe outorgou”.

391 CARVALHO, Raquel Melo Urbano de. Curso de direito administrativo. Salvador: Jus Podium, 2008, p. 447. FRANÇA, Vladimir da Rocha. Contraditório e invalidação administrativa no âmbito da Administração Pública Federal. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, Renovar, v. 223, p. 282-283, jul.-set. 2003.

Esse, contudo, não será o pressuposto adotado no presente trabalho. Essa posição não se coaduna com o princípio da segurança jurídica e com os fundamentos que compõem a juridicidade do Estado democrático de Direito. Inicialmente, é preciso considerar que os atos administrativos trazem consigo a presunção de legalidade que afeta a esfera jurídica de terceiros, especialmente porque, de modo geral, estes não detêm conhecimentos técnicos e nem mesmo acesso facilitado às informações que poderiam auxiliá-los na compreensão do problema. Além disso, os procedimentos administrativos, em geral, não possuem delimitação temporal precisa: podem durar alguns dias ou muitos anos.

Não há, no procedimento administrativo, elemento algum que possa fundamentar a pretensão de que o terceiro se prepare para o pior. Na verdade, o procedimento administrativo tem como pressuposto jurídico a impessoalidade e transparência, que obstam qualquer pré- julgamento. Sobretudo nos casos em que o administrado atua de boa-fé e que não possua conhecimentos técnicos a respeito do fato, é natural que mantenha sua crença na legalidade do ato. Essa posição é reforçada pela orientação jurisprudencial firmada no sentido de que não se exige a constituição de advogado para o procedimento administrativo, que não pode ser considerado nulo pela ausência de defesa técnica.392

É inegável que qualquer terceiro chamado a um procedimento administrativo que prenuncie a possibilidade extinção ou de modificação de um ato administrativo que lhe beneficie alterará a condição de sua expectativa. Contudo, exigir que ele se prepare para a modificação ou a extinção do ato exclusivamente pela abertura do procedimento, especialmente quando não é responsável pelo vício, não condiz com os fundamentos da segurança e subverte a lógica do interesse público, que sustenta a presunção de legalidade dos atos.

392 Súmula vinculante n. 5/STF: A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição.

CAPÍTULO 4 – AS BARREIRAS TRADICIONAIS QUE SE OPÕEM À

Outline

Documentos relacionados