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Alterações da lei no tempo: a irretroatividade e seus efeitos

CAPÍTULO 4 – AS BARREIRAS TRADICIONAIS QUE SE OPÕEM À MODIFICAÇÃO E À

4.3 Alterações da lei no tempo: a irretroatividade e seus efeitos

A vedação de irretroatividade das normas em prejuízo dos interessados é princípio basilar da segurança jurídica, mesmo nas Constituições que não o contemplam expressamente.447 Na história constitucional brasileira, a garantia da irretroatividade das leis, em sentido amplo, veio expressa nas Constituições de 1824 e de 1891, mantendo-se nas posteriores apenas para a lei penal.448 Não se trata, contudo, de regra fechada e absoluta, pois encontra exceção na retroatividade de leis penais mais benéficas e na aplicação retroativa de leis tributárias449 interpretativas e mais benignas450, por exemplo.

447 TORRES, Heleno Tavares. Direito constitucional tributário e segurança jurídica. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 309.

448 Constituição de 1824: “Art. 171. Todas as contribuições directas, á excepção daquellas, que estiverem applicadas aos juros, e amortisação da Divida Publica, serão annualmente estabelecidas pela Assembléa Geral, mas continuarão, até que se publique a sua derogação, ou sejam substituidas por outras. Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte. [...] III.

A sua disposição não terá effeito retroactivo”. Constituição de 1891: Art 11 - É vedado aos Estados, como à

União: [...] 3º) prescrever leis retroativas. Constituição de 1934: Art 17 - É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: VII - cobrar quaisquer tributos sem lei especial que os autorize, ou fazê-lo incidir sobre efeitos já produzidos por atos jurídicos perfeitos; Constituição de 1937: “Art 68 - O orçamento será uno, incorporando-se obrigatoriamente à receita todos os tributos, rendas e suprimentos de fundos, incluídas na despesa todas as dotações necessárias ao custeio dos serviços públicos. Art 141 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, a segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: § 34 - Nenhum tributo será exigido ou aumentado sem que a lei o estabeleça; nenhum será cobrado em cada exercício sem prévia autorização orçamentária, ressalvada, porém, a tarifa aduaneira e o imposto lançado por motivo de guerra. Constituição de 1967: Art 150 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Pais a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: § 29 - Nenhum tributo será exigido ou aumentado sem que a lei o estabeleça; nenhum será cobrado em cada exercício sem prévia autorização orçamentária, ressalvados a tarifa aduaneira e o imposto lançado por motivo de guerra. Constituição

de 1969: Art. 153. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade

dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos têrmos seguintes: § 29. Nenhum tributo será exigido ou aumentado sem que a lei o estabeleça, nem cobrado, em cada exercício, sem que a lei o houver instituído ou aumentado esteja em vigor antes do início do exercício financeiro. , ressalvados a tarifa alfandegária e a de transporte, o impôsto sôbre produtos industrializados e o imposto lançado por motivo de guerra e demais casos previstos nesta Constituição.

449 Essa regra não se aplica a infrações administrativas: STJ. REsp º 1.176.900/SP, Rel. Min. Eliana Calmon. 2. Turma. DJe 02.05.2010. 1. Inaplicável a disciplina jurídica do Código Tributário Nacional, referente à retroatividade de lei mais benéfica (art. 106 do CTN), às multas de natureza administrativa. Precedentes do STJ.

No julgamento da ADI 1.451/DF e da ADI 493-0/DF, o Relator, Ministro Moreira Alves, entendeu que a garantia de irretroatividade da lei seria associada ao princípio dos direitos adquiridos e se aplicaria tanto ao regime jurídico de direito público quanto ao de privado.451

A definição do seu alcance, contudo, não é tarefa fácil. Recentemente, no julgamento das ADCs 29 e 30 e da ADI 4578, em que pese os intensos debates e as profundas divergências, venceu a tese da retroatividade inautêntica ou retrospectividade, no sentido de que a aplicação da lei nova, com a consideração de fatos anteriores, não viola o princípio constitucional da irretroatividade das leis. Foi acolhida a tese de Gomes Canotilho, que – sob a influência do direito alemão – faz a distinção entre:

(i) a retroatividade autêntica: a norma possui eficácia ex tunc, gerando efeito sobre situações pretéritas, ou, apesar de pretensamente possuir eficácia meramente ex nunc, atinge, na verdade, situações, direitos ou relações jurídicas estabelecidas no passado; e

(ii) a retroatividade inautêntica (ou retrospectividade): a norma jurídica atribui efeitos futuros a situações ou relações jurídicas já existentes, tendo- se, como exemplos clássicos, as modificações dos estatutos funcionais ou de regras de previdência dos servidores públicos (v. ADI 3105 e 3128, Rel. para o acórdão Min. CEZAR PELUSO).

Nesses termos, admitiu-se que a retroatividade autêntica é vedada pela Constituição da República, o mesmo não ocorrendo com a retrospectividade, que, apesar de semelhante, não se confunde com o conceito de retroatividade mínima (ADI 493): enquanto nesta são alteradas, por lei, as consequências jurídicas de fatos ocorridos anteriormente – consequências estas certas e previsíveis ao tempo da ocorrência do fato –, naquela a lei atribui novos efeitos jurídicos, a partir de sua edição, a fatos ocorridos anteriormente.

2. Não se conhece do recurso especial, no tocante aos dispositivos que não possuem pertinência temática com o fundamento do acórdão recorrido, nem tem comando para infirmar o acórdão recorrido. 3. Inviável a reforma de acórdão, em recurso especial, quanto a fundamento nitidamente constitucional (caráter confiscatório da multa administrativa). 4. É inadmissível o recurso especial se a análise da pretensão da recorrente demanda o reexame de provas. 5. Recurso especial parcialmente conhecido e provido.

450 TORRES, Heleno Tavares. Direito constitucional tributário e segurança jurídica. 2. ed. rev., atual. e ampl.

São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 326: “Para preservação da segurança jurídica e da certeza do

direito, a aplicação retroativa de leis tributárias é admitida em hipóteses excepcionais, as quais estão descritas nos arts. 106 e 112 do CTN, como que em oposição a regra geral, segundo a qual e lei vigora e surge efeitos somente para o futuro (Lex prospicit, non respicit)”.

451“Aliás, no Brasil, sendo o princípio do respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada de natureza constitucional, sem qualquer exceção a qualquer espécie de legislação ordinária, não tem sentido a afirmação de muitos - apegados ao direito de países em que o preceito é de origem meramente legal – de que as leis de ordem pública se aplicam de imediato, alcançando os efeitos futuros do ato jurídico perfeito ou da coisa julgada, e isso porque, se se alteram os efeitos, é óbvio que se está introduzindo modificação na causa, o que é

No precedente em que se julgava a constitucionalidade da aplicabilidade da Lei Complementar 135/10 (Lei da Ficha Limpa) a processo eleitoral posterior à respectiva data de publicação, a hipótese foi considerada clara e inequívoca retroatividade inautêntica. O Tribunal decidiu que o caso não se tratava de retroatividade da lei, e sim de retrospectividade:

“quando a lei atribui novos efeitos jurídicos, a partir de sua edição, a fatos ocorridos anteriormente”. Merece registro a discordância com os fundamentos dessa decisão, embora o

tema não componha o objeto central da tese.452

De todo modo, não se pode afirmar que esse sempre foi o entendimento uniforme das Cortes Superiores, pois, no julgamento da ADI 1.451/DF e da ADIn nº 493-0/DF, o Rel. Min. Moreira Alves entendeu-se que a garantia de irretroatividade da lei seria associada ao princípio dos direitos adquiridos e se aplicaria tanto ao regime jurídico de direito público quanto ao de privado453. Já no caso em que cassada uma delegação administrativa com fundamento lei posterior, o STJ decidiu que “deve-se observar o princípio constitucional

previsto no art. 5º, XXXVI, da Magna Carta, acerca da irretroatividade da lei, já que os fatos pelos quais o recorrente foi acusado se passaram entre janeiro e julho de 1993, bem antes da vigência da Lei nº 8.935, de 1994”.454

Como se vê, a irretroatividade impede, como regra, que uma nova lei altere o ato administrativo e os efeitos que foram produzidos antes de sua vigência. Essa barreira, contudo, não impede que novos efeitos jurídicos lhe sejam agregados. Apurado esse contexto, o presente trabalho não cuida de criticar ou aprofundar a análise das extensões ou das limitações impostas à irretroatividade. Na verdade, avaliando o cenário atual e mesmo as

452 Especificamente no que se refere à irretroatividade, compreende-se que não apenas a vigência da norma merece certeza, mas os administrados devem estar seguros de que as modificações do regime jurídico- administrativo não alcançarão os fatos anteriores a sua vigência. Significa dizer que uma norma não pode lançar seus efeitos sobre fatos pretéritos, afinal, todo o planejamento traçado pelo sujeito, naquele momento, considerou as variáveis que existiam. Não se pode exigir dos cidadãos que eles lidem, no futuro, com o fato de que suas decisões do passado podem ser vinculadas a efeitos negativos que não vigiam à época.

453“Aliás, no Brasil, sendo o princípio do respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada de natureza constitucional, sem qualquer exceção a qualquer espécie de legislação ordinária, não tem sentido a afirmação de muitos - apegados ao direito de países em que o preceito é de origem meramente legal – de que as leis de ordem pública se aplicam de imediato, alcançando os efeitos futuros do ato jurídico perfeito ou da coisa julgada, e isso porque, se se alteram os efeitos, é óbvio que se está introduzindo modificação na causa, o que é

vedado constitucionalmente.”

454STJ. RMS 16752/RO. Rel. Min. Jorge Scartezzini. DJe 08.03.2004: “3 - No mérito, inexistindo fundamento legal a ensejar a pena de perda da delegação em análise na época da suposta prática e da apuração dos fatos, deve-se anular o julgado que se embasou em norma posterior (Lei nº 8.935/94), já que é princípio basilar do Direito Administrativo que o indiciado em Procedimento Disciplinar seja, desde o início, cientificado de suas faltas, com expresso enquadramento legal, para, nos termos constitucionais, defender-se destes. Ademais, deve- se observar o princípio constitucional previsto no art. 5º, XXXVI, da Magna Carta, acerca da irretroatividade da lei, já que os fatos pelos quais o recorrente foi acusado se passaram entre janeiro e julho de 1993, bem antes da vigência da Lei nº 8.935, de 1994 (Cf.: STF, Tribunal Pleno, ADI n. 493/DF, Rel. Ministro MOREIRA

propostas a respeito da matéria, a análise revela que também esse instrumento deixa o administrado em posição binária e extremada: ou o ato se modifica a partir de um novo regramento, no que se inclui a atribuição de novos efeitos, ou permanece como sempre foi.

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