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CAPÍTULO 3 O MODELO TRADICIONAL DE EXTINÇÃO E MODIFICAÇÃO DO ATO

3.4 A retirada do ato administrativo e suas espécies

3.4.4 A revogação do ato administrativo e seus efeitos

3.4.5.1 A nulidade no direito administrativo

A nulidade absoluta, ou simplesmente nulidade, sempre foi vinculada ao ato que ofende a legalidade e demanda proteção de ordem pública. Tradicionalmente, afirma-se que a declaração de nulidade opera efeitos retroativos, retirando do mundo jurídico o ato e suas consequências, como se jamais houvessem existido. Nesse sentido, esse ato não poderia ser objeto de confirmação, pois a nulidade não poderia ser convalidada.338

A mesma compreensão que fundamentou a perspectiva clássica sobre as leis inconstitucionais acabou por influenciar nossa teoria das nulidades. O controle de constitucionalidade no sistema norte-americano era bastante rígido e as leis consideradas inconstitucionais eram declaradas “nulas e írritas”, na tradução de Rui Barbosa.339 Essa compreensão, somada aos fundamentos do direito civil, fomentou o cenário ideal para que se fortalecesse a ideia de que atos irregulares, contrários à lei, também seriam sempre nulos e írritos. Cabe anotar, nesse ponto, que, muito embora a própria declaração de inconstitucionalidade tenha admitido a possibilidade de modulação de efeitos, a teoria das nulidades do ato administrativo ainda resiste a este conceito, tema que será mais bem enfrentado nos últimos capítulos deste trabalho.

Não apenas sob essa influência, mas também seguindo a doutrina civilista, alguns autores340 construíram sua teoria das nulidades, no direito administrativo, considerando as categorias de atos nulos e atos anuláveis (Teoria Dualista). Com fundamento no interesse público e no princípio da legalidade, outros autores341 defenderam que a única espécie de

338 MAZEAUD, Henri; MAZEAUD, Léon; MAZEAUD, Jean. Leçons de droit civil. 4. ed. Paris: Montchrestien, 1970. v. 1, t. I, p. 378. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 1961. v. I, p. 449-450: “O ato nulo de pleno direito é frusto em seus resultados, nenhum efeito produzindo: quod nullum est nullum producit effectum. Quando se diz, contudo, que é destituído de efeitos, quer-se referir aos que normalmente lhes pertencem, pois às vezes algumas consequências dele emanam, como é o caso do casamento putativo; outras vezes, há efeitos indiretos, como se dá com o negócio jurídico translatício do domínio, que, anulado, é inábil à sua transmissão, mas vale não obstante como causa justificativa da posse; outras vezes, ainda, ocorre o aproveitamento do ato para outro fim, como e.g., a nulidade do instrumento que deixe de subsistir obrigação. Em outros casos, o ato nulo produz alguns efeitos do ato válido, como é, no direito processual, a citação nula por incompetência do juiz, que é apta a interromper a prescrição e constituir o devedor em mora, tal

qual válida [...]”.

339 NEVES, Marcelo. Teoria da inconstitucionalidade das leis. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 73.

340 CIRNE LIMA, Ruy. Princípios de direito administrativo. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 94.

FONSECA, Tito Prates da. Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1939, p. 390. MASAGÃO, Mário. Curso de direito administrativo. 6. ed. São Paulo: RT, 1977, p. 161. BANDEIRA DE MELO, Oswaldo Aranha. Princípios gerais do direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1969. v. 1, p. 580. FAGUNDES, M. Seabra. O controle dos atos administrativos pelo poder judiciário. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 51: “O ato só pode ser invalidado ou nulo. No segundo, o vício pode ser grave, mas razões especiais aconselharam a subsistência do ato (como nos casos de incompetência por fato da requisitos à investidura), e pode ser de secundária importância, não justificando, por isso, a fulminação do ato (como nos pequenos defeitos de forma).

O ato será apenas irregular”.

invalidade admitida no direito público seria a nulidade (Teoria Monista). Ressaltando que, no direito civil, a nulidade busca restaurar equilíbrio individual, enquanto, no direito administrativo, os interesses são múltiplos, Seabra Fagundes já observava que as esferas complementam-se, mas deve ser realizada “através duma adaptação inteligente feita pela

doutrina, no tocante à sistematização geral, e pela jurisprudência, no que respeita aos casos concretos, de modo a articular-se com os princípios gerais e especiais do direito administrativo”.342

Atualmente, a corrente majoritária adota a Teoria Dualista e prevalece a compreensão de que a nulidade divide espaço com a anulabilidade, de modo que a nulidade alcançaria atos administrativos que apresentem vício insanável, enquanto a anulabilidade estaria reservada para os casos de convalidação possível. Entende-se que esse caminho resguarda o princípio da legalidade, da segurança jurídica, da boa-fé e da supremacia do interesse público. Ao mesmo tempo em que não se poderia admitir no ordenamento jurídico a permanência de ato incorrigível, não se poderia admitir a supressão de ato por irregularidade sanável. Nesses termos, a anulação seria ato vinculado343, e poderia ser declarada tanto pela Administração Pública quanto pelo Poder Judiciário344, quando identificados vícios insanáveis que maculem os elementos e/ou pressupostos do ato administrativo.

A questão remanescente seria definir quais os fatores que atraem a nulidade e quais os que permitem identificar hipótese de anulabilidade. Foram diversas as teorias construídas ao longo do tempo e muitos os autores que cuidaram do tema. Para o presente trabalho, contudo, basta a compreensão do modelo atual, situado no seu tempo.

Nos primórdios do direito administrativo republicano, Ruy Cirne Lima apontava como causas de nulidade “(a) incompetência absoluta do agente ou capacidade absoluta do

co-contratante; (b) objeto ilícito ou impossível; (c) forma não autorizada em lei; (d) preterição de solenidade reputada essencial à validade; (e) ineficácia textualmente declarada”.345 Sintetizando a teoria acolhida na atualidade, Seabra Fagundes aponta que os requisitos do ato administrativo “se podem apresentar defeituosos quanto à manifestação de

vontade, ao motivo, ao objeto, à finalidade e a forma. Estas cinco categorias abrangem todos

342 FAGUNDES, M. Seabra. O controle dos atos administrativos pelo poder judiciário. São Paulo: Saraiva, 1984.

343 Exceto quando o vício atinge a competência de ato discricionário, hipótese em que o agente competente poderá reavaliar os requisitos de incidência da norma para convalidar ou invalidar o ato.

344 STJ. 5. Turma. REspe 65.039/DF. Rel. Min. Laurita Vaz. DJU 17.11.2003, p. 353: “a revisão de ato praticado fora dos ditames legais não constitui mera faculdade, é um poder-dever que pode ser exercitado de ofício pela própria Administração, conforme o estabelecido no enunciado da Súmula n. 473 da Suprema Corte”.

os aspectos que seus vícios podem revestir.”346 De modo geral, afirma-se que os vícios que atingem o conteúdo347, o motivo348 e a finalidade349 do ato administrativo são insanáveis, ao passo que, nos vícios de forma350 e de competência,351 haveria espaço para a convalidação.352 De um lado, alguns afirmam que não haveria barreiras suficientes para impedir a anulação do vício originário, tendo em vista a grave afronta à ordem jurídica.353 Partindo dessa premissa, a doutrina clássica atribuiu efeitos retroativos aos atos de anulação, de modo que a invalidação por vício insanável fulminaria o ato e seus efeitos desde a sua origem, com efeitos ex tunc. Além disso, a pretensão de reestabelecer a situação original atrairia uma eficácia constitutiva, no sentido de que “acarreta não só a eliminação do ato defeituoso, mas

também a edição de outros atos, a fim de colocar a situação no estado em que estaria no presente se a ilegalidade não tivesse existido no passado”.354

346 FAGUNDES, M. Seabra. O controle dos atos administrativos pelo poder judiciário. São Paulo: Saraiva,

1984, p. 51.

347 Ilicitude, indeterminação e impossibilidade.

348 Ocorre quando o ato se fundamenta em fato inexistente, inverídico, insuficiente ou que não pode ser imputado a seu destinatário. A impossibilidade de alterar os fatos e o vício que afeta o nexo de causalidade tornam a invalidade obrigatória.

349 Decorre do exercício de competência para atingir finalidade diversa da que é lícita, alcançando o desvio de poder ou de finalidade. Doutrina e jurisprudência majoritárias não admitem a convalidação do desvio de finalidade por entenderem ser inviável a correção de pretensão desviada que já se materializou.

350 Carência da forma legal indispensável ou preterição de formalidades anteriores à prática do ato ou pertinentes à sua própria realização. Tratando-se de formalidade não essencial, “tais omissões ou irregularidades podem ser oportunamente supridas pela prática da formalidade omitida ou mediante a revogação do acto e a sua repetição,

bem como pela ratificação, reforma ou conversão”. CAETANO, Marcelo. Manual de direito administrativo.

Coimbra: Almedina, 1997, p. 505.

351 Nos casos em que a incompetência ou incapacidade atinge um ato vinculado, sendo possível aferir a regularidade do motivo, finalidade, forma e conteúdo, a convalidação do vício pelo sujeito capaz e competente é obrigatória. Por outro lado, se o ato é discricionário, cabe ao agente público capaz e competente reavaliar o caso concreto para concluir pela invalidação ou pela convalidação. FRANÇA, Vladimir Rocha. Classificação dos atos administrativos inválidos no direito administrativo brasileiro. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, Renovar, n. 226, p. 77, out./dez. 2001.

352 Embora a identificação dos efeitos da nulidade/anulabilidade sejam indispensáveis para testar as hipóteses do trabalho e para o desenvolvimento da tese, o aprofundamento do estudo dos fatores que podem causar nulidade ou anulabilidade fogem ao escopo da pesquisa.

353“Um ato nulo não é apto a produzir direito adquirido nem não adquirido. O STF já se pronunciou a esse respeito em diversas ocasiões. [Cita AgReg 155772/SP e MS 21722/DF]. Destarte, tisnado que estava do vício da inconstitucionalidade, como amiúde explicitado, o ato concessório da aposentadoria especial é nulo, não sendo apto a gerar qualquer efeito jurídico que importe direito adquirido. O repúdio ao ato inconstitucional decorre, em essência, do princípio que, fundado na necessidade de preservar a unidade da ordem jurídica nacional, consagra a supremacia da Constituição. Atos inconstitucionais são, por isso mesmo, nulos e destituídos, em consequência, de qualquer carga de eficácia jurídica. O reconhecimento da validade de uma norma inconstitucional – ainda que por tempo limitado – representaria uma ruptura com o princípio da supremacia da Constituição”. A norma inconstitucional não pode criar direitos, nem impor obrigações, de modo que tanto os órgãos estatais como o indivíduo estão legitimamente autorizados a negar obediência às prescrições

incompatíveis com a Constituição”. FRANCA FILHO, Marcílio Toscano. As aposentadorias parlamentares e a

Constituição: um exercício de hermenêutica constitucional. Revista dos Tribunais, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 92, n. 807, p. 149-150, jan. 2003.

Durante longo tempo, a jurisprudência reconheceu os efeitos “construtivos” decorrentes da nulidade, seja em favor 355 ou em desfavor dos administrados356. Parte da doutrina ainda defende que os efeitos da invalidação são ex tunc, em qualquer caso, de modo que o ato viciado é invalidado retroativamente, seja restritivo ou ampliativo de direitos. Nesse sentido, os contornos do Direito Administrativo (titularidade social dos direitos subjetivos públicos à juridicidade, necessidade de estabilidade das relações jurídicas e interesse público) impediriam o uso de sistemática própria do Direito Civil.

Como se verá a seguir, mais recentemente, a convalidação, o tempo e a boa-fé objetiva vêm ganhando espaço como elementos que modificam os fundamentos e as conclusões que pautam a teoria das nulidades do ato administrativo. Além disso, tem-se afirmado que a manutenção ou a supressão do ato nulo devem se pautar pela preservação do bem comum e não apenas da legalidade.357 De todo modo, ainda que se considere a perspectiva do caso concreto, as soluções prendem-se apenas à manutenção ou à extinção do ato em sistema ainda fechado, preso a soluções que se situam em extremos. Para compreender a extensão de todas as barreiras que atualmente se levantam em face das hipóteses de extinção dos atos administrativos, o tema será tratado separadamente.358

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