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O ato administrativo normativo e sua posição no regime jurídico administrativo

CAPÍTULO 2 – DELIMITAÇÃO DO ATO ADMINISTRATIVO COMO OBJETO DE

2.3 O ato administrativo normativo e sua posição no regime jurídico administrativo

Tradicionalmente, o poder regulamentar da Administração Pública foi vinculado à prerrogativa de editar atos complementares à lei que permitissem a sua efetiva aplicação. Nesse sentido, os atos regulamentares teriam caráter executivo e não poderiam ampliar ou alterar as previsões normativas, sob pena de invadirem competência reservada ao Poder Legislativo. Mesmo nesse período, apesar de se ter convencionado afirmar que o ato

245 FRANCO SOBRINHO, Manoel de Oliveira. Atos administrativos. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 82. ALESSI, Renato. Sistema istituzionale del diritto amministrativo ilaliano. 3. ed. Milano: Giuffré, 1960, p. 308. Houve alguma divergência a respeito da causa como requisito do ato administrativo. Renato Alessi entendia que a noção de causa – extraída dos negócios jurídicos – não é própria do ato administrativo, pois o interesse público apresenta-se como limite na atuação administrativa e não propriamente como sua causa. No mesmo sentido posicionam-se Enterría e Fernández (ENTERRÍA, Eduardo Garcia; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de derecho administrativo. 8. ed. Madrid: Civitas, 1998, p. 544). A doutrina atual, majoritária, não acolhe o conceito de causa que acaba segmentado pelas noções de motivo e finalidade.

regulamentar “não acarreta modificação à ordem jurídica vigente”, pois, não haveria regulamento autônomo no Brasil, Seabra Fagundes já afirmava que todo ato jurídico implica na modificação de situação jurídica anterior246.

De fato, não é possível se exigir que o ato regular reprise os termos da lei. Nesta tarefa de dar “fiel execução” aos parâmetros genéricos da lei, o ato não se limita a simples repetição de seus termos. Exatamente por isso, sempre se afirmou que o ato regulamentar teria por objetivo “pormenorizar as condições de modificação originária doutro ato (lei)” 247. Tendo em vista que o legislador não possui condições de elencar todas as soluções possíveis, o ato regulamentar assume a tarefa indispensável de complementá-lo, produzindo inovações que garantam sua executoriedade. Esse controle seria feito pelo Congresso Nacional, que por disposição constitucional expressa (art. 49, V da CR/88) estaria autorizado a sustar atos normativos que extrapolassem os limites do poder de regulamentação248.

Ainda hoje, referindo-se ao regulamento executivo249, Marçal Justen Filho esclarece que “o que se pode discutir não é a existência de cunho inovador nas regras contidas no

regulamento, mas a extensão da inovação produzível por essa via”250. Tal entendimento já foi albergado pelo STF, em voto do Min. Celso de Mello, quando observou que “não

obstante a função regulamentar efetivamente sofra os condicionamentos normativos impostos, de modo imediato, pela lei, o Poder Executivo, ao desempenhar concretamente a sua competência regulamentar, não se reduz à condição de mero órgão de reprodução do conteúdo material do ato legislativo a que se vincula”251.

Mais recentemente, o alcance dos regulamentos foi vinculado ao conceito de discricionariedade técnica e o rol de regulamentos autônomos admitidos252 foi ampliado253.

246 FAGUNDES, M. Seabra. O controle dos atos administrativos pelo poder judiciário. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 17.

247 FAGUNDES, M. Seabra. O controle dos atos administrativos pelo poder judiciário. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 19.

248 MOTTA, Fabrício. Função normativa da administração pública. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 128. 249 Art. 84, VI da CR/88: Compete privativamente ao Presidente da República:

VI - dispor, mediante decreto, sobre: [...] (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)

a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos; [...] (Incluída pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)

b) extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos;

250 JUSTEN FILHO. Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 147.

251 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Min. Celso de Mello. ADI 561-8. apud JUSTEN FILHO. Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 147.

252 A doutrina majoritária sempre admitiu como regulamento autônomo o disposto no art. 84, VI da Constituição: Art. 84 Compete privativamente ao Presidente da República:

VI - dispor, mediante decreto, sobre:(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)

a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos; (Incluída pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)

Na perspectiva de delegação da competência regulamentar por meio de leis, o fenômeno foi intitulado como deslegalização por alguns autores254 e pela jurisprudência. Em que pesem as divergências a respeito do tema, converge-se no sentido de que o desenvolvimento científico, as especificidades das questões técnicas, a necessidade de atualização constante e a dificuldade de se alcançar determinados consensos, tornaram quase indispensável que certas matérias encontrem espaço na esfera regulamentar.

Os regulamentos, contudo, estão limitados às questões técnicas, de modo que a lei mantém o regramento básico definido a partir de critérios políticos. Daí afirmar-se que a delegação deve limitar-se à discricionariedade técnica, seara em que o conteúdo normativo é inovador e não apenas executivo. Esse fenômeno ganhou fôlego com as agências reguladoras255, mas se estende para todos os órgãos da Administração Pública256.

Já a existência de regulamentos autônomos no Brasil encontrou bastante controvérsia doutrinária257. Os autores se põem de acordo quanto ao seu conceito, mas divergem a respeito da existência de norma constitucional que os autorize. Conceitualmente, afirmam que essa espécie normativa se revelaria quando “desvinculados de uma lei [...] encontra seu

253 Para os fins do presente trabalho, basta a delimitação das espécies normativas para que se possa identificar a ausência de motivação ou de regime de transição na atualidade. Nesse sentido, não se faz necessário aprofundar o estudo da matéria.

254 Por todos: CANOTILLHO, J. J. Gomes, Direito Constitucional, 6 ª Ed., Coimbra: Almedina, 1995, p. 915. A deslegalização ocorreria quando “uma lei, sem entrar na regulamentação da matéria, rebaixa formalmente o seu

grau normativo, permitindo que essa matéria possa vir a ser modificada por regulamento”. No mesmo sentido:

ARAGÃO, Alexandre Santos de. O Poder Normativo das Agências Independentes e o Estado Democrático de Direito. Revista de Informação Legislativa, Brasília. a. 37, n. 148, outubro/dezembro, 2000, p. 289

255 ANEEL: Lei 9.427/96, Art. 2º A Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL tem por finalidade regular e fiscalizar a produção, transmissão, distribuição e comercialização de energia elétrica, em conformidade com as políticas e diretrizes do governo federal.

ANATEL: Lei 9.472/97, art. 19: Art. 19. À Agência compete adotar as medidas necessárias para o atendimento do interesse público e para o desenvolvimento das telecomunicações brasileiras, atuando com independência, imparcialidade, legalidade, impessoalidade e publicidade, e especialmente:

IV - expedir normas quanto à outorga, prestação e fruição dos serviços de telecomunicações no regime público; X - expedir normas sobre prestação de serviços de telecomunicações no regime privado;

XII - expedir normas e padrões a serem cumpridos pelas prestadoras de serviços de telecomunicações quanto aos equipamentos que utilizarem;

XIV - expedir normas e padrões que assegurem a compatibilidade, a operação integrada e a interconexão entre as redes, abrangendo inclusive os equipamentos terminais;

XVI - deliberar na esfera administrativa quanto à interpretação da legislação de telecomunicações e sobre os casos omissos;

256 Citam-se, exemplificativamente, o Banco Central, a Receita Federal, o Departamento Nacional de Produção Mineral e os órgãos que titularizem o exercício do poder de polícia.

257 Marçal Justen Filho relata que haveria quatro orientações principais na doutrina e jurisprudência: “A primeira corrente entende que, em determinadas situações, a ausência de disciplina legislativa pode ser suprida por meio de regulamento. A segunda posição defende a possibilidade de dispositivo legal atribuir expressa competência ao Poder Executivo para disciplinar inovadoramente certos temas por meio de regulamento. A terceira orientação admite que a sumariedade da disciplina constante de uma lei propicie ao Poder Executivo o suprimento por meio de um regulamento. A quarta concepção afirma que o regulamento deve ser estritamente

subordinado à lei, sem que se admita qualquer inovação ou acréscimo às normas contempladas por ela”.

fundamento de validade diretamente na Constituição, de modo a dispensar a existência de uma lei”258. Significa dizer que o regulamento autônomo criaria direitos e obrigações, sem fundamento legal, diretamente do texto constitucional.

Compreende-se, no presente trabalho, que além do disposto no art. 84, VI a Constituição também veicula competência para edição de regulamentos autônomos ao Conselho Nacional de Justiça e ao Conselho Nacional do Ministério Público.

Nessa linha, o STF e o STJ já admitiram a constitucionalidade de Resoluções e Portarias que não encontravam amparo em leis, mas que regulamentariam diretamente disposições constitucionais. No caso paradigmático da ADC n. 12, o STF reconheceu a constitucionalidade da Res./CNJ n. 7 que estabelece vedação ao nepotismo no Poder Judiciário, por entender que apesar da ausência de lei específica, “as restrições constantes do

ato resolutivo são, no rigor dos termos, as mesmas já impostas pela Constituição de 1988, dedutíveis dos republicanos princípios da impessoalidade, da eficiência, da igualdade e da moralidade”259260.

258 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 155.

259 STF. Pleno. ADC 12. Rel. Min. Carlos Britto. DJe 17.12.2009. EMENTA: AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE, AJUIZADA EM PROL DA RESOLUÇÃO Nº 07, de 18.10.05, DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. ATO NORMATIVO QUE "DISCIPLINA O EXERCÍCIO DE CARGOS, EMPREGOS E FUNÇÕES POR PARENTES, CÔNJUGES E COMPANHEIROS DE MAGISTRADOS E DE SERVIDORES INVESTIDOS EM CARGOS DE DIREÇÃO E ASSESSORAMENTO, NO ÂMBITO DOS ÓRGÃOS DO PODER JUDICIÁRIO E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS". PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. 1. Os condicionamentos impostos pela Resolução nº 07/05, do CNJ, não atentam contra a liberdade de prover e desprover cargos em comissão e funções de confiança. As restrições constantes do ato resolutivo são, no rigor dos termos, as mesmas já impostas pela Constituição de 1988, dedutíveis dos republicanos princípios da impessoalidade, da eficiência, da igualdade e da moralidade. 2. Improcedência das alegações de desrespeito ao princípio da separação dos Poderes e ao princípio federativo. O CNJ não é órgão estranho ao Poder Judiciário (art. 92, CF) e não está a submeter esse Poder à autoridade de nenhum dos outros dois. O Poder Judiciário tem uma singular compostura de âmbito nacional, perfeitamente compatibilizada com o caráter estadualizado de uma parte dele. Ademais, o art. 125 da Lei Magna defere aos Estados a competência de organizar a sua própria Justiça, mas não é menos certo que esse mesmo art. 125, caput, junge essa organização aos princípios "estabelecidos" por ela, Carta Maior, neles incluídos os constantes do art. 37, cabeça. 3. Ação julgada procedente para: a) emprestar interpretação conforme à Constituição para deduzir a função de chefia do substantivo "direção" nos incisos II, III, IV, V do artigo 2° do ato normativo em foco; b) declarar a constitucionalidade da Resolução nº 07/2005, do Conselho Nacional de Justiça.

260 Esse também é o posicionamento atual do Superior Tribunal de Justiça: MS 14017/DF, Rel. Min. Herman Benjamin, DJe 01.7.2009:

5. No Direito Constitucional contemporâneo, inexiste espaço para a tese de que determinado ato administrativo normativo fere o Princípio da Legalidade, tão-só porque encontra fundamento direto na Constituição Federal. Ao contrário dos modelos constitucionais retórico-individualistas do passado, despreocupados com a implementação de seus mandamentos, no Estado Social brasileiro instaurado em 1988, a Constituição deixa em muitos aspectos de ser refém da lei, e é esta que, sem exceção, só vai aonde, quando e como o texto constitucional autorizar. 6. A empresa defende uma concepção ultrapassada de legalidade, incompatível com o modelo jurídico do Estado Social, pois parece desconhecer que as normas constitucionais também têm status de normas jurídicas, delas se podendo extrair efeitos diretos, sem que para tanto seja necessária a edição de norma integradora. 7. A Constituição é a norma jurídica por excelência, por ser dotada de superlegalidade. No Estado Social, seu texto estabelece amiúde direitos e obrigações de aplicação instantânea e direta, que dispensam a mediação do legislador infraconstitucional. Mesmo que assim não fosse, há regramento infraconstitucional sobre a matéria, diferentemente do que afirma a impetrante. 8. A Portaria MTE 540/2004

Essas as espécies que serão objeto de análise no presente estudo. Muito embora os atos administrativos de efeitos concretos estejam situados no juízo de aplicação das normas e, portanto, atraiam forma de concreção em perspectiva diversa dos atos regulamentares, ambos estão ligados ao mesmo pressuposto de segurança que demanda a avaliação cogente de um regime de transição. Assim como os atos administrativos concretos, os atos normativos são produzidos pela Administração Pública e interferem na situação jurídica de terceiros. Muito embora decorram do Poder Regulamentar, esses atos também se submetem ao regime jurídico administrativo e interferem na legitimidade da atuação estatal, pressupostos que os unem e que justificam sua inclusão no presente trabalho.

Todavia, é preciso considerar que enquanto os atos administrativos de efeitos concretos se submetem a um intrincado regime de alterações e proteções, o ato regulamentar se sujeita a regra quase objetiva: “são, por natureza, revogáveis a qualquer tempo e em

qualquer circunstância, desde que a Administração respeite seus efeitos produzidos até o momento da invalidação”. E compreende-se que assim o seja, porque “estes atos (gerais ou regulamentares) têm missão normativa assemelhada à lei, não objetivando situações pessoais. Por isso mesmo, não geral, normalmente, direito subjetivos individuais à sua manutenção, razão pela qual os particulares não podem opor-se a sua revogação”261.

Assim, para que se possa definir a perspectiva atual de modificação e extinção desses atos é preciso delimitar o sistema que vem sendo construído.

concretiza os princípios constitucionais da Dignidade da Pessoa Humana (art. 1º, III, da CF), da Valorização do Trabalho (art. 1º, IV, da CF), bem como prestigia os objetivos de construir uma sociedade livre, justa e solidária, de erradicar a pobreza, de reduzir as desigualdades sociais e regionais e de promover o bem de todos (art. 3º, I, III e IV, da CF). Em acréscimo, foi editada em conformidade com a regra do art. 21, XXIV, da CF, que prescreve ser da competência da União "organizar, manter e executar a inspeção do trabalho." Por fim, não se pode olvidar que materializa o comando do art. 186, III e IV, da CF, segundo o qual a função social da propriedade rural é cumprida quando, além de outros requisitos, observa as disposições que regulam as relações de trabalho e promove o bem-estar dos trabalhadores. 9. Some-se a essas normas o disposto no art. 87, parágrafo único, I e II, da Constituição de 1988, pelo qual compete ao Ministro de Estado, entre outras atribuições estabelecidas na Constituição e na lei, exercer a orientação, coordenação e supervisão dos órgãos e entidades da administração federal na área de sua competência e "expedir instruções para a execução das leis, decretos e regulamentos".

CAPÍTULO 3 - O MODELO TRADICIONAL DE EXTINÇÃO E MODIFICAÇÃO DO

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