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A segurança jurídica e a presunção de legalidade dos atos administrativos

CAPÍTULO 1 – A SEGURANÇA JURÍDICA COMO FATOR DE LEGITIMIDADE NO

1.5 A segurança jurídica e a presunção de legalidade dos atos administrativos

De forma quase uníssona, doutrina e jurisprudência admitem a presunção de legalidade como uma das características centrais do ato administrativo, por meio da qual ele

“é aceito, ab initio, como regular diante da ordem jurídica”198. Também chamado de

197 TORRES, Ricardo Lobo. O princípio da proteção da confiança do contribuinte. Revista fórum de direito tributário. n. 6, Belo Horizonte, nov.-dez., 2003, p. 9-20. PORTO, Éderson Garin. O princípio da proteção da confiança e a boa-fé objetiva no direito público. Revista da AJURIS, n. 102, jun. 2006, p.127-142.

198 ARAÚJO, Florivaldo Dutra. Motivação e controle do ato administrativo. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 43.

presunção de legitimidade, por alcançar o conteúdo do ato e não apenas sua forma199, ou de presunção de legitimidade e veracidade200, o instituto seria relevante para garantir que os atos possam ser produzidos unilateralmente e, ainda assim, vincular terceiros. Trata-se de presunção relativa que os autores fundamentam no próprio princípio da legalidade.

A presunção garante que o ato continue produzindo efeitos enquanto eventual causa de extinção ou de modificação não for declarada. Não é por outra razão que atos nulos e anuláveis, embora não o devessem, acabam produzindo efeitos201. Em caso de litígio, equivale a uma inversão do ônus da prova, de modo que não cabe à Administração Pública provar que o ato é legítimo, mas ao terceiro.

Essa posição, contudo, não é compartilhada por Florivaldo de Araújo Dutra. O autor entende que, “ao contrário do que afirma, em uníssono, a doutrina administrativista, os atos

administrativos possuem, fora as exceções indicadas em leis específicas, a presunção hominis de legalidade”. Diferentemente da presunção relativa, que pode ser ilidida por prova

inequívoca, aquela é “baseada nas circunstâncias aparentes que os envolvem e que são

percebidas pelo senso comum, com base no que normalmente ocorre [...] e pode ser destruída por indícios capazes de deixar transparecer possíveis vícios”202.

A jurisprudência acolhe a “presunção de legitimidade do ato administrativo” como uma de suas características que viabiliza a autoexecutoriedade e inverte o ônus da prova em favor da Administração. Com fundamento nessa regra, o STF manteve decisão que anulou concessões de anistia porque os terceiros afetados não teriam cuidado de comprovar “indícios

de irregularidade nos processos originários”203. Nota-se que o judiciário inverteu o ônus da prova em favor da Administração, para que a alteração da situação jurídica favorável aos

199 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 344. PESTANA, Márcio. Direito administrativo brasileiro. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 227.

200 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 189: “A presunção de legitimidade diz respeito à conformidade do ato com a lei; em decorrência desse atributo, presumem-se, até prova em contrário, que os atos administrativos foram emitidos com observância da lei. A presunção de veracidade diz respeito aos fatos; em decorrência desse atributo, presumem-se verdadeiros os fatos alegados pela Administração. Assim ocorre com relação às certidões, atestados, declarações, informações por ela

fornecidos, todos dotados de fé pública”.

201 GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 74.

202 ARAÚJO, Florivaldo Dutra. Motivação e controle do ato administrativo. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 51.

203 STF. 1ª Turma. RMS 25662. Rel. Min. Carlos Britto. DJ 28.9.2007. “EMENTA: RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDORES DA EXTINTA SIDERBRÁS. ANISTIA. LEI Nº 8.878/94. PORTARIA Nº 387/94. PEDIDO DE REINTEGRAÇÃO NO SERVIÇO PÚLICO. O Conselho de Coordenação e Controle das Empresas Estatais anulou várias decisões concessivas de anistia, com base no Decreto nº 1.499/95. E o fez, na forma da Súmula 473/STF, pela comprovação de indícios de irregularidade nos processos originários. Mais tarde, o art. 11 do Decreto nº 3.363/2000 ratificou os atos praticados pelo citado Conselho de Coordenação e Controle das Empresas Estatais. Presunção de legitimidade desses atos que não foi infirmada

administrados fosse mantida. Em outro precedente, a presunção de veracidade serviu como um dos fundamentos que afastou a inconstitucionalidade de certa norma instituidora de serventias extrajudiciais, por entender o STF que “o ato administrativo e o ato legislativo

gozam de presunção de veracidade e no processo objetivo [...] não estariam os órgãos de governo envolvidos no seu fazimento obrigados a demonstrar a necessidade da mesma

[criação de serventias]204.

O STJ possui mais de uma centena de julgados que se sustentam a partir da premissa, bem sedimentada, de que os atos administrativos (concretos e normativos) presumem-se legítimos. Nos julgados, fica clara a premissa da Corte de que cabe aos administrados lidar com esse postulado e o RMS 33.825 é significativo, no ponto. No caso, questionava-se a legalidade de determinada cláusula editalícia e, embora se tenha reconhecido que “poder-se-

ia alegar que a cláusula editalícia é obscura”, o Tribunal decidiu que “vale a interpretação do edital de acordo com a presunção de legitimidade dos atos administrativos [...] sendo possível inferir do conteúdo da cláusula editalícia o tema proposto, dentro de suas possibilidades gramaticais, devem ser mantidos o edital e a posição da banca examinadora”205.

Embora a divergência entre presunção relativa juris tantum e hominis repercuta na distribuição do ônus da prova processual, não impacta na percepção do administrado que sofre os efeitos dos atos administrativos concretos ou normativos. Independentemente do resultado processual dessa presunção e da verossimilhança da prova que se tenha que produzir na hipótese de contestação do ato, não se pode negar que a presunção de legalidade dos atos administrativos impacta na relação que os administrados estabelecem com o Poder Público. Essa regra prédefinida reflete diretamente em todos os aspectos que compõem a segurança jurídica (cognoscibilidade, confiabilidade e calculabilidade). Basta ver que um ato sujeito a qualquer hipótese de extinção “pode produzir efeitos, se os particulares aparentemente o

204 STF. Pleno. ADI 1935/RO. Rel. Min. Carlos Velloso. DJ 29.8.2002. “EMENTA: CONSTITUCIONAL. SERVENTIAS JUDICIAIS E EXTRAJUDICIAIS CRIAÇÃO. MATÉRIA DE ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA. C.F., art. 96, II, b e d. NECESSIDADE DE CRIAÇÃO DE SERVENTIAS: PRESUNÇÃO DE VERIDICIDADE DOS ATOS ADMINISTRATIVO E LEGISLATIVO. I. - Serventias judiciais e extrajudiciais: matéria de organização judiciária: iniciativa reservada ao Tribunal de Justiça. C.F., art. 96, II, b e d. II. - Necessidade de criação de serventias extrajudiciais: presunção de legitimidade e veridicidade do ato administrativo e do ato legislativo. Ressalva quanto à desarrazoabilidade da lei, que, desarrazoada, é inconstitucional. C.F., art. 5º, LIV. III. -

ADIn julgada improcedente.”

205 STJ. 2. Turma. RMS. 33825 SC. Rel. Mauro Campbell Marques. DJe 14.6.2011.“7. Poder-se-ia alegar que a cláusula editalícia é obscura, mas, aqui, vale a interpretação do edital de acordo com a presunção de legitimidade dos atos administrativos, de maneira que a ilegalidade ocorreria apenas se fosse plenamente incompatível com o item 12 do Anexo II do edital a exigência de uma redação sobre Lei de Responsabilidade Fiscal. Ao contrário, sendo possível inferir do conteúdo da cláusula editalícia o tema proposto, dentro de suas possibilidades

enxergam conforme o direito, ou se, vislumbrando-o ilegal, não tem força de resistência diante da coação estatal”206. E enquanto o controle não age, assim o é.

Se, por um lado, nas questões litigiosas, a Administração Pública se beneficia da inversão do ônus da prova, por outro, faz com que o administrado trabalhe com a perspectiva de que os atos administrativos estão sempre de acordo com as normas jurídicas. Esse contexto interfere diretamente na relação de boa-fé que os administrados estabelecem com o Poder Público, na medida em que adotam o pressuposto da legalidade e definem suas ações a partir da confiança legítima depositada nessa atuação. É incomum que terceiros busquem confirmar a legalidade de um ato administrativo, especialmente quando este lhe é favorável.

Essa construção, contudo, tem alimentado um sistema perverso: os administrados são submetidos a um regime que lhes incute confiança na atuação administrativa, mas, em caso de modificação ou de extinção dos atos administrativos, independentemente das razões que as fundamentam (como falhas ou obscuridade da própria Administração), repassa-se ao administrado o ônus de lidar com as consequências. A resposta que se dá a esse modelo reside na fórmula genérica de que essas mudanças buscam alcançar o interesse público que deve se sobrepor aos interesses privados. Desse modo, os administrados devem lidar com todas as hipóteses de extinção e de modificação dos atos administrativos.

Nota-se que, embora o administrado parta da presunção de que os atos administrativos são constitucionais e legais, as alterações das relações jurídico-administrativas (em concreto) e dos regulamentos (em abstrato) não consideram essa realidade. Esse modelo sistêmico e abstrato sobrecarrega a posição do administrado e deixa às cegas o terceiro, que sofre os efeitos de eventual modificação no cenário do regime jurídico-administrativo. No caso dos atos administrativos em sentido estrito (ou concretos), parte-se da premissa de que a extinção ou modificação do ato administrativo restaura o interesse público, sem, contudo, ponderar-se sobre aspectos do caso, de modo a atribuir esse ônus sempre ao administrado. No caso dos atos administrativos normativos, parte-se da premissa de que a modificação do regime jurídico é própria da democracia e de que a generalidade do ato seria capaz de garantir a distribuição dos ônus da alteração207.

Em suma, seja no juízo de aplicação do ato administrativo, seja no de construção do ato regulamentar, o regime jurídico administrativo foi pensado com o pressuposto geral de que o administrado deve ser capaz de suportar suas alterações. É certo que há barreiras

206 ARAÚJO, Florivaldo Dutra. Motivação e controle do ato administrativo. 2ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 49.

impostas pela Constituição e pela lei que limitam a atuação do poder público nesse sentido208. Contudo, todo o sistema foi pensado a partir de soluções binárias e que, especialmente no campo normativo, favorecem a ampla discricionariedade da Administração. Assim, ainda que o administrado desconheça a norma (lei ou regulamento), não consiga acessar os elementos que pudessem prepará-lo para a mudança e em nada seja responsável pela prática do ato, está sujeito a uma solução objetiva.

Ainda assim, a partir do pressuposto adotado no presente trabalho, compreende-se que essa noção de interesse público não é capaz de suportar a complexidade da sociedade pós- moderna. Não se questiona que, em todas as hipóteses que atraem a presunção de legalidade do ato administrativo, o objetivo maior a ser alcançado seja o bem comum. Observa-se, contudo, que a fórmula para essa conclusão não pode ser pressuposta e que somente pode ser alcançada se forem consideradas as condições específicas que cercam a tomada de decisão.

Assim, cabe avaliar como instrumentalizar a concretização da segurança jurídica na extinção e na modificação dos atos administrativos, considerando que, de fato, a presunção de legitimidade interfere na confiança que os administrados depositam na ação estatal, com a complexidade das circunstâncias envolvidas em cada hipótese.

CAPÍTULO 2 – DELIMITAÇÃO DO ATO ADMINISTRATIVO COMO OBJETO DE

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