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a) Kean e o Teatro como Ato Atuante

No documento Ação e Situação (páginas 191-195)

Uma das peças de teatro de Sartre que ainda não referimos é uma adaptação de Alexandre Dumas. Kean, uma peça em cinco atos, representada pela primeira vez em 1953 no Teatro Sarah-Bernhardt, fala-nos do teatro dentro do teatro. O ato a fazer-se ato. Kean é o ator mais famoso de Londres. De toda a Inglaterra. É, para lá disso, um Don Juan, o que vai determinar toda a progressão do enredo. Julgamos que a peça Kean e a personagem que lhe dá nome nos podem trazer algumas respostas ao nosso trabalho. Logo de início, por exemplo, quando Helena, a condessa de Koefeld, conversa com a sua amiga Amy:

Helena: Kean? Mas existe algum Kean? O homem que eu vi ontem era Hamlet em pessoa. (Sartre. 1961, p. 14).350

Seguimos esta pista como a possibilidade de resolução da nossa problemática intersubjetiva através da teatralidade: Kean é menos Kean do que as personagens que encarna. Consegue, por isso, afastar-se da objetivação, uma vez que encontramos uma barreira na sua frente, a protegê-lo: cada uma das personagens que veste. Não vamos por isso entrar nos pormenores da trama, um romance cheio de infidelidades e confidências, com ajudas imprevistas nos momentos mais delicados. Basta sabermos que Kean, se é agora o melhor ator de Inglaterra, começou como saltimbanco, na mais profunda pobreza e que nunca ganhou apego aos bens materiais, vivendo numa riqueza mascarada e esbanjadora, boémia, coberto de dívidas que o seu amigo príncipe de Gales ajuda a dissipar. E que, se todos os seus amores foram até aqui passageiros, se descobre profundamente apaixonado de Helena, a condessa que já referimos; enquanto Ana se mostra, por seu turno, apaixonada por ele, ao ponto de abrir mão de tudo,

350 «Éléna: Kean? Est-ce-qu'il y a un Kean? L'homme que j'ai vu hier était Hamlet en personne.» (Sartre.

até da sua posição na sociedade, contracenando com ele, fugindo até. Esta é a trama, bastante solta, da peça. O suficiente para que compreendamos as tiradas de Kean, assim como os seus acessos de fúria ou enfraquecimento.

Interessa-nos, sobretudo, analisar algumas das suas tiradas, sempre imbuídas do teatro e da representação. Diz, por exemplo, ao conde de Koefeld, marido de Helena, a meio de um grande discurso:

Kean: (…) Hoje, é o seu embaixador que me oprime com um olhar que eu julgo não poder sustentar. Ah! Mas mantê-lo-ei, mantê-lo-ei: e sabeis porquê? Porque estou imunizado. Nós, os atores, quando afirmamos em cena o nosso desprezo, é necessário que o nosso desprezo seja percetível aos outros. (…) Muitas vezes pergunto a mim próprio se os sentimentos verdadeiros não serão, muito simplesmente, sentimentos mal representados. (Sartre. 1961, p. 29).351

É esta "imunidade" que Kean refere que julgamos encontrar no teatro: um olhar revestido de personagem que não se deixa, por isso, objetivar, uma vez que é falso. Como um ato de má- fé elevado: Kean, enquanto ator, deixa de ser Kean. É por isso imune ao olhar de outrem, porque quem o acolhe não é ele mesmo, mas Hamlet, ou Otelo, ou Falstaff, ou Macbeth. E quando o príncipe o troça quando descobre que irá contracenar nessa noite Romeu e Julieta com uma atriz já bastante velha, Kean diz-lhe que é a si próprio que compete persuadir o público de que ela só tem dezasseis anos: «Fazendo com que me olhem só a mim; deste modo, o público só a pode ver através dos meus olhos.» (Sartre. 1961, p. 52).352 São portanto

os olhos de Romeu que o público verá, e será a partir desses olhos que toda a peça se espelhará. Mais importante do que esta capacidade de fazer incidir em si a forma como a peça é encarada, é o que Kean afirma um pouco adiante:

Sou o homem que todas as noites se faz desaparecer a si próprio. (Sartre. 1961, p.

64).353

Se tínhamos encontrado em Sartre a morte como única solução de escapar a uma intersubjetividade aniquiladora do si mesmo enquanto sujeito, descobrimos em Kean a capacidade de, em cima do palco e com centenas de espectadores centrados em si, se demarcar da objetivação sartriana. E mesmo os espectadores, quem poderiam eles objetivar?

351 «Kean: (…) aujourd'hui, c'est son ambassadeur qui m'accable d'un regard que je ne doit pas pouvoir

soutenir. Ah! je le soutiendrai, monsieur, je le soutiendrai tout de même: et savez-vous pourquoi? C'est ce que je suis mithridatisé: nous autres, acteurs, quand nous nous assurons sur scène de notre mépris, il faut que ce mépris soit perceptible à mille autres personnes. (…) Et quelques fois je me demande si les sentiments vrais ne sont pas tout simplement des sentiments mal joués.» (Sartre. 2005, p. 563).

352 «Je m'arrangerai pour qu'ils ne regardent que moi; ils la verront par mes yeux.» (Sartre. 2005, p.

577).

Kean ou Romeu? Os contornos da realidade e da ilusão estendem-se: aquele que se vê não existe e aquele que existe está ausente.

Ao longo do desenrolar da trama, porém, percebemos que cada vez mais Kean se debate com a sua identidade:

Não se representa para ganhar a vida. Representa-se para se mentir, para se mentir, para se ser o que se não pode ser e não ser o que se é. Representa-se para não nos conhecermos e para nos conhecermos demasiadamente. Representam-se heróis porque somos cobardes e santos porque somos maus; representam-se assassinos porque se morre do desejo de matar o próximo, representa-se porque se é mentiroso de nascença. Representa-se porque se ama e se detesta a verdade. Representa-se porque ficaríamos doidos se não representássemos. Representar! Eu próprio saberei quando represento? (Sartre. 1961, p. 74).354

Ficamos com esta súbita tirada mais conscientes da mescla que acaba por haver entre representação e verdade. E a partir deste ponto Kean torna-se cada vez mais perturbado. Dirá mais tarde ao seu criado e companheiro Salomão:

A glória! O génio! A arte! A arte! Desta vez, meu velho Salomão, compreendi! Sabes o que sou? A vítima de Shakespeare, arrebento-me para que ele reviva, o velho vampiro! (…) a arte é voraz! Não vedes como ela me devora até ao osso! Disse-vos que compreendi tudo: tenho uma profissão de tolo, tiro as castanhas do lume para Shakespeare! Shakespeare que vá para o diabo; já que criou as suas peças que as represente. (Sartre. 1961, pp. 110-111).355

É esta a grande assimilação de Kean: ele é instrumento através do qual a arte acontece. Shakespeare usa-se dele para se fazer vivo. Kean é, portanto, apenas uma encarnação. Esta descoberta torna-o ainda mais tempestuoso. Na sua última atuação deixá-lo-á bem assente, sobretudo quando se dirigir ao público dizendo que eles não amam senão o que é falso (Sartre. 1961, p. 151). E é sublinhando isto que se despedirá, em revolta, do seu público:

Senhores e senhoras, boa noite. Romeu, Lear e Macbeth guardam de vós uma boa recordação; eu vou juntar-me a eles e dir-lhes-ei excelentes coisas a vosso respeito. Regresso ao mundo imaginário onde me aguardam as minhas cóleras soberbas. (…) Não há ninguém em cena. Ninguém. Ou talvez um ator preparado para fazer de Kean no papel de Otelo. Atenção, sempre vos confesso uma coisa: eu não existo

354 «On ne joue pas pour gagner sa vie. On joue pour mentir, pour se mentir, pour être ce qu'on est. On

joue pour ne pas se connaître et parce qu'on se connaît trop. On joue les héros parce qu'on est lâche et les saints parce qu'on est méchant; on joue les assassins parce qu'on meurt d'envie de tuer son prochain, on joue parce qu'on est menteur de naissance. On joue, parce qu'on aime la vérité et parce qu'on la détéste. On joue parce qu'on deviendrait fou si on ne jouait pas. Jouer! Est-ce que je sais, moi, quand je joue?» (Sartre. 2005, p. 592).

355 «La gloire! Le génie! L'Art! L'Art! Cette fois-ci, mon vieux Saloman, j'ai compris! Sais-tu ce que je

suis? La victime de Sakespeare: je me crève pour qu'il revive, le vieux vampire! (…) l'Art est vorace: vous ne voyez donc pas qu'il me bouffe tout cru! Je vous dis que j'ai tout compris: je fais un métier de dupe, je tire les marrons du feu pour Shakespeare! Au diable Shakespeare: puisqu'il a fait ses pièces, qu'il les joue.» (Sartre. 2005. p. 613).

verdadeiramente, finjo existir. Para vos agradar, minhas senhoras e meus senhores, para vos agradar. (…) (Sartre. 1961, pp. 151-152).356

Digamos que foi quando se apercebeu que não conseguia controlar o rumo da sua vida tal como controlava o desenrolar das suas personagens que Kean se desassossegou e se sentiu utilizado pelo grande dramaturgo que passou a reviver em si. Ou talvez tenha sido quando sentiu o êxito de cada personagem que encarnava. Começou a duvidar que realmente o considerassem um homem. E começou também ele a considerar a hipótese de o não ser. A representação sobrepõe-se à existência. Mas, se se sobrepõe à vida, sobrepõe-se também à morte. É portanto uma forma de superação — ainda que também ela conturbada — da dificuldade da relação com os outros. Mas transportar o palco para o dia-a-dia seria viver sem a autenticidade que Sartre tanto defendia, uma vez que tratar-se-ia de um ato contínuo de má-fé, de representação de um papel que não lhe pertence na totalidade. Seria o encarnar de um outro eu. Kean pretende livrar-se disso, romper com todos os gestos que diz ter aprendido das personagens e que o povoam, prontos para todas as ocasiões e idades.

Ora! Esta noite. Estive a refletir. O artista no palco encarna a figura do outro. Fui Kean, que se fez passar por Hamlet, a astúcia, que se fez passar por Fortimbras, a sinceridade. (Sartre. 1961, p. 159).357

Kean quer agora regressar ao seu eu, e ser Edmond, noutro lugar onde não seja reconhecido pelos gestos que gastou. Ainda assim, num momento de sensatez, reconhece que a sua humanidade não foi posta em causa pelas personagens que tanto interpretou. Ele próprio o diz, falado do príncipe de Gales, que o imitava em tudo, até no amor:

Ele chama-me reflexo, mas no fundo, considera-me um homem; ele teria dado tudo para ser eu. (Sartre. 1961, p. 181).358

E se Kean assume que o príncipe o considera um homem e se satisfaz por isso, é porque ele próprio, embora tenha sugerido o contrário, não perdeu a sua identidade.

O final da peça, ao contrário de todas as peças de teatro sartrianas, é de uma alegria e leveza sem par. Kean parte de Inglaterra, rumo a Nova Iorque, apenas com o seu companheiro

356 «Messieurs dames, bonsoir. Roméo, Lear et Macbeth se rappellent à votre bon souvenir: moi je vais

les rejoindre et je leur dirai bien des choses de votre part. Je retourne dans l'imaginaire où m'attendent mes superbes colères. (…) il n'y a personne en scène. Personne. On peut-être un acteur en train de jouer Kean dans le rôle d'Othello. Tenez, je vais vous faire un aveu: je n'existe pas vraiment, je fais semblant. Pour vous plaire, messieurs, mesdames, pour vous plaire.» (Sartre. 2005, pp. 640-641).

357 «Oh! cette nuit, j'ai réfléchi. Pour souer, il faut se prendre pour un autre. Je me prenais pour Kean,

qui se prennait pour Hamlet, qui se prenait pour Fortimbras.» (Sartre. 2005, p. 644).

358 «Il me traite de reflet mais, dans le fond, il me prend pour un homme; il aurait tout donné pour être

Salomão e a sua futura esposa e atriz Ana. É uma peça sem mortes e sem culpas a não ser as representadas em cima do palco. É uma peça de balanços, onde a arte de representar e a capacidade de viver se pesam e se auxiliam.

No documento Ação e Situação (páginas 191-195)