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b) O Outro — a problemática do conceito

No documento Ação e Situação (páginas 39-43)

Sartre inicia o seu capítulo intitulado “O Escolho do Solipsismo” (Sartre. 1993, p. 236)45 com

uma questão, já por si de caráter retórico, que levanta o problema do estudo do outro, pouco levado a cabo até aí: «No meio do real, de facto, o que há de mais real do que outrem?» (Sartre. 1993, p. 236).46 Ressalva assim que esta problemática nunca tenha interessado

demasiado os realistas, uma vez que o outro é dado, uma substância pensante tal como eu.

42 «(…) j'ai honte de moi tel que j'apparais à autrui.» (Sartre. 1943, p. 260). 43 «Je reconnais que je suis comme autrui me voit.» (Sartre. 1943, p. 260).

44 «(…) la honte est un frisson immédiat qui me parcourt de la tête aux pieds sans aucune préparation

discursive.» (Sartre. 1943, p. 260).

45 "L'Écueil du Solipsisme". (Sartre. 1943, p. 261).

No entanto, há um ponto que importa focar: estas substâncias pensantes comunicam-se por intermédio do mundo: são ambos corpos mundanos, coisas do mundo, e é através deste que as consciências destes corpos se comunicam, são esses corpos os intermediários dessa comunicação. Esta comunicação reside numa relação de exterioridade indiferente, quer pela distância que os separa, quer pela própria espessura dos corpos — ainda que não houvesse distância entre eles — até alcançar o âmago que seria a alma. O que realmente importa dizer aqui é que o realismo não abre espaço para uma intuição do outro. Não basta dizer que ele é revelado e que pertence a uma totalidade que é a realidade humana, pois isso é o mesmo que recusar que ele é um outro e assumir que é apenas um corpo, tal como uma pedra ou uma caneta. Ele não é um corpo, mas sim o corpo, o corpo singular do outro.

Mas se para os realistas a existência do outro é certa, Sartre desmonta esta afirmação apresentando-a como um sofisma:

De facto, é preciso inverter os termos desta afirmação e reconhecer que, se outrem só nos é acessível pelo conhecimento que dele temo, e se este conhecimento é apenas conjetural, a existência de outrem é simplesmente conjetural e o papel da reflexão crítica consiste em determinar o seu grau exato de probabilidade. (Sartre. 1993, p.

238).47

Assim, com este breve argumento, Sartre inverte o realismo em idealismo que, por seu turno, também não se revela suficiente no estudo do outro. O outro apresenta-se, podemos dizer, como a negação radical da minha experiência, uma vez que esse outro é aquele para quem eu deixo de ser sujeito para passar a objeto. Desta forma, como sujeito de conhecimento, o que tento é inverter a situação e procurar determinar como objeto — para assim o conhecer — o próprio sujeito que anula o meu caráter de sujeito e me reduz, ele sim, a objeto. Explica Sartre:

Ele é concebido como real e no entanto não posso conceber a sua relação real comigo, construo-o como objeto e no e entanto ele não é patenteado pela intuição, coloco-o como sujeito e no entanto é a título de objeto dos meus pensamentos que o considero. Só restam, pois, duas soluções ao idealista: ou desembaraçar-se inteiramente do conceito de outro e provar que ele é inútil à constituição da minha experiência; ou então afirmar a existência real de outrem, quer dizer, estatuir uma comunicação real e extra-empírica entre as consciências. (Sartre. 1993, p. 242).48

47 «En fait, il faut renverser les termes de cette affirmation et reconnaître que, si autrui ne nous est

acessible que par la connaissance que nous en avons et si cette connaissance est seulement conjecturale, l'existance d'autrui est seulement conjecturale et c'est le rôle de la réflexion critique que de déterminer son degré exact de probabilité.» (Sartre. 1943, p. 263).

48 «Il est conçu comme réel et pourtant je ne puis concevoir son rapport réel avec moi, je le construis

comme objet et pourtant il n'est pas livré par l'intuition, je le pose comme sujet et pourtant c'est à titre d'objet de mes pensées que je le considère. Il ne reste donc que deux solutions pour l'idéaliste: ou bien se débarrasser entièrement du concept de l'autre et prouver qu'il est inutile à la constituition de mon expérience; ou bien affirmer l'existence réelle et extra-empirique entre les consciences.» (Sartre. 1943, p. 267).

A primeira solução presente neste argumento, que dá por nome de solipsismo, Sartre fá-la imediatamente cair por terra afirmando que é uma pura hipótese metafísica a partir do momento em que é formulada como a afirmação da minha solidão ontológica, pois é justamente esta a denominação de solipsismo. Isto seria transcender o campo da minha experiência e dizer, de forma gratuita, que fora de mim nada existe. Na segunda solução, ainda que não negando no campo da minha experiência a presença do Outro como objeto que pretendo apreender, seria de todo impossível uma comunicação extra-empírica entre as consciências, na medida em que uma seria objeto para a outra, caindo num ser-em-si contínuo, o que desembocaria no que Sartre chama de «(…) uma espécie de epoché respeitante à existência de sistemas de representações organizadas por um sujeito e situadas fora da minha experiência.» (Sartre. 1993, 243).49

É desta forma que Sartre abandona quer a posição realista quer a idealista face ao problema do conhecimento do outro. Mas convém ressaltar que a noção de outro não é puramente instrumental:

A existência de um sistema de significações e de experiências radicalmente distinto do meu é o quadro fixo em direção ao qual no seu próprio curso diversas séries de fenómenos. E este quadro, por princípio exterior à minha experiência, enche-se a pouco e pouco. (Sartre. 1993, p. 241).50

Este outro, então, não é o outro-instrumento que me faz perceber a minha experiência; mas, a minha experiência serve também para constituir o outro enquanto outro: o difícil sistema de representações às quais não chego, o objeto concreto. Aqui sublinha-se que o outro não é somente aquele que me vê, mas também aquele que eu vejo e que, na tentativa infértil de alcance, transformo em objeto: através das minhas experiências, encaro o outro, os seus sentimentos, as suas ideias. Mas ainda aqui, posicionando-me como sujeito que apreende, considero-o na minha pele de objeto, uma vez que, dando-me conta de um outro, é já objeto que sou perante essa presença, ou a sua possibilidade.

É a partir daqui que pretendemos fundamentar a abordagem ao outro por parte de Sartre, assim como as relações que daí resultam. Pretendemos neste capítulo fazer um itinerário entre as várias estruturas ontológicas no pensamento sartriano para que, a partir de agora, a problemática da relação com o outro e, mais tarde, esta problemática refletida na dramaturgia, possam desenrolar-se de forma mais constituída. No próximo capítulo tomaremos como objeto de estudo os elementos para uma teoria da ação, tais como a

49 «(…) une sorte de εποχή touchant l'existence de systèmes de représentations organisées par un sujet et situés en

dehors de mon expérience.» (Sartre. 1943, p. 268).

50 «L'existence d'un système de significations et d'expériences radicalement distinct du mien est le cadre

fixe vers lequel indiquent dans leur éculement même des séries diverses de phénomènes. Et ce cadre, par principe extérieur à mon expérience, se remplit peu a peu.» (Sartre. 1943, p. 266).

liberdade ou a responsabilidade, para que mais adiante possamos responder à problemática da alteridade que nos inculcou a necessidade deste trabalho.

Capítulo 2

Elementos para uma Teoria da Intersubjetividade

n’ O Ser e o Nada de Jean-Paul Sartre

Querendo encontrar neste trabalho uma relação entre a filosofia da alteridade de Sartre e a sua dramaturgia, impõe-se-nos, depois de analisadas as principais componentes da sua fenomenologia, procurar os elementos essenciais a uma teoria da ação. Isto porque, uma vez que o nosso propósito se concretiza junto do teatro de situações, convém não esquecer que é no plano da ação que a dramaturgia satriana se realiza. Mas é também no plano da ação que a noção de liberdade, tão cara a Sartre, melhor se expõe, se joga e se concretiza.

O que pretendemos neste capítulo é fazer o caminho até à problemática do olhar. Mas para isto, para melhor alcançarmos a questão da alteridade tão difícil de resolver em Sartre, importa compreender questões como a ação, a liberdade e a angústia e responsabilidade que dela advêm, a escolha ou a vontade. São dimensões importantíssimas na compreensão da ação sartriana do ser para-outrem. São elas que nos vão dotar de utensílios para que possamos, num último momento, estabelecer uma comparação basilar entre a fenomenologia do olhar de Sartre e o seu teatro de situações. Porque, reiteramos, a dramaturgia do autor vinca bem a relevância atribuída às situações quotidianas ou — e sobretudo — de relação intricada entre as personagens. O desconhecimento que queremos enfrentar neste segundo ponto é a relação entre dois verbos que Sartre utiliza como título do primeiro capítulo da última parte d' O Ser e o Nada, e que tomamos emprestado neste momento: Ser e Fazer. Porque darmo-nos à desocultação do ser (à aleteia, à verdade) implica um certo recuo perante o que se pretende desocultar, para que possa haver manifestação, mas implica também uma abertura de si, em liberdade, para promover essa revelação. De facto, a liberdade faz parte da própria estrutura do homem e cabe-lhe a si a capacidade de reverter a néantisation de que fala Sartre. Através da ação, do pôr em prática toda a sua liberdade através de escolhas responsáveis e tantas vezes angustiadas.

Ser e Fazer é, portanto, o mote para este segundo capítulo, que desembocará depois na tão importante problemática do olhar e da objetivação.

No documento Ação e Situação (páginas 39-43)