• Nenhum resultado encontrado

2.2) Ser e Fazer — A Liberdade

No documento Ação e Situação (páginas 44-46)

Convém então procurar descrever a liberdade. Sartre afirma que deve dizer-se da liberdade o mesmo que Heidegger disse a respeito do Dasein.54 Assim, na liberdade a existência precede e

comanda a essência. Mas como é que se passa da liberdade existência para a liberdade ação? Existir preceder a essência não é, de forma alguma, uma afirmação neutra a respeito da ação. Se a essência procede da existência, compreendemos que não se nasce essência, faz-se essência, num fazer, num agir que é biografia e História. E neste agir falamos de liberdade: a liberdade transforma-se em ato e por norma alcançamo-la através do ato que ela realiza. A liberdade é então liberdade de um ser que age, um ser atuante: ela faz-se ato e é aí que a encontramos.

Sendo indefinível e inominável, a liberdade é, ainda assim, descritível, ainda que com algumas dificuldades. Porque a minha liberdade é uma singularidade, visando a existência do sujeito e não a essência do conceito em si. Assim, a liberdade particular — minha — não é comum aos outros, tal como o é a consciência. Diz-nos Sartre:

Sou, efetivamente, um existente que aprende a sua liberdade pelos seus atos; mas sou também um existente cuja existência individual e única se temporaliza como liberdade. (Sartre. 1993, p. 439).55

A liberdade não tem outro sustento senão o que se faz. Não há positividade mas negatividade, uma vez que não tem nada a suportá-la. No entanto, a singularidade também não é um dado de partida mas sim algo que se dá no tempo precisamente como liberdade. Ela não é apenas singular, ela é singularidade. A liberdade é, então, o estofo do meu ser (Sartre. 1993, p. 439)56, a textura, ainda que a liberdade esteja permanentemente em questão no ser, uma vez

que o próprio ser está também ele permanentemente em questão, como um caminho constante, ou o próprio Dasein heideggeriano, um ser no mundo cuja essência reside na sua existência. A liberdade é, podemos dizer, a nadificação do em-si que o para-si opera de forma

54 «That kind of being towards which Dasein can comport itself in one way or another, and always

comports itself somehow, we call existence [Existenz]. (…) So far as existence is the determining character of Dasein, the ontologic analytic of this entity always requires that existentiality be considered beforehand. By “existetiality” we understand the state of being that is constitutive for those entities that exist.« (Heidegger. 2008, pp. 32-33).

55 «Je suis, en effet, un existant qui apprend sa liberté par ses actes; mais je suis aussi un existant dont

l'existence individuelle et unique se temporalise comme liberté.» (Sartre. 1943, p. 483).

a escapar do seu próprio ser, constituindo sempre algo diferente do que dele se pode afirmar. É portanto a consciência, o para-si que, na sua carência de ser, na relação do ser consigo mesmo, nos confere a liberdade, através da missão de constantemente se realizar, se construir. Um projeto constante.

Mas a grande questão que se coloca aqui é que estou condenado a existir sempre para além da minha essência, assim como para além dos móbeis e motivos do meu ato. Quer isto dizer que estou condenado a ser livre, frase usada quer n’O Ser e o Nada (Sartre. 1993, p. 440), quer n’O Existencialismo é um Humanismo (Sartre. 1962, p. 228), quer ainda nos Cadernos para uma Moral (Sartre. 1983, p. 447). Desdobrada, esta frase quase parece controversa já que, por um lado, nega a impossibilidade de não ser livre e nega-se, por isso, a liberdade de não ser livre. Não existe outro limite à liberdade senão a própria liberdade. Não somos livres para deixar de ser livres. No entanto, sendo livres, como poderemos estar condenados, ainda que a essa mesma liberdade? Não lhe poderemos de forma alguma renunciar? Contrariar livremente o facto de sermos livres? Não podemos, por isso se fala de condenação. Mas esta impossibilidade não marca uma dificuldade a uma total liberdade, pelo contrário: acentua-a. Sartre afirma que «O homem é livre porque não é si, mas presença a si. O ser que é o que é não pode ser livre.» (Sartre. 1993, p. 441).57 Assim, ser é escolher-se e, então, «(…) a liberdade não é um ser: ela é o ser do homem, quer dizer, o seu nada de ser.» (Sartre. 1993, p. 441).58

A liberdade permanece sempre ilesa, uma vez que está em situação. É, aliás, em situação que ela se firma. Não há liberdade que não esteja em situação e não há situação a não ser pela liberdade. A liberdade não é, por isso, formal e abstracta; ela faz-se, está em situação, constrói-se. Diz-nos Jeannette Colombel:

A noção de situação pressupõe facticidade, uma necessidade de facto, no coração da qual cada liberdade é exercida: o meu lugar, o meu passado, a minha vizinhança, o meu próximo, a minha morte — mesmo que sempre venha de outro lugar — são os limites, consciente ou não, de onde surgem as minhas possibilidades de escolha no coração de uma situação que não escolhi e onde qualquer um pode fazer qualquer coisa, a qualquer hora, em qualquer lugar (...). (Colombel. 1985).59

Sendo que não há outra liberdade a não ser em situação, e uma vez que esta relação constitui a realidade humana, então o pensamento e a ação são as duas faces da mesma realidade humana.

57 «L'homme est libre parce qu'il n'est pas soi mais présence à soi. L'être qui est ce qu'il est ne saurait

être libre.» (Sartre. 1943, p. 485).

58 «(…) la liberté n'est pas un être: elle est l'être de l'homme, c'est à-dire son néant d'être.» (Sartre.

1943, p. 485).

59 «La notion de situation suppose la facticité, nécessité de fait, au coeur de laquelle s'exerce chaque

liberté: ma place, mon passé, mes entours, mon prochain, ma mort — même si elle vient toujours d'ailleurs — sont des limites, conscientes ou non, dont naissent mes possibilités de choix au coeur même d'une situation que je n'ai pas choisie et où n'importe qui ne peut faire n'importe quoi, n'importe quand, n'importe où (…).» (Colombel. 1985, p. 408).

No documento Ação e Situação (páginas 44-46)