• Nenhum resultado encontrado

d) A Chuva a Lembrar Vida

No documento Ação e Situação (páginas 140-142)

Só no dia seguinte os interrogadores dão conta da morte de François, já frio e com marcas de

251 «Il's ne m'ont pas touché. Personne ne m'a touché. J'étais de pierre et je n'ai pas senti leurs mains. Je

les regardais de face et je pensais: il ne se passe rien. (Avec paison.) Il ne s'est rien passé. À la fin je leur faisais peur. (Un temps.) François, si tu parles, ils m'auront violée pour de bon. ils diront: "Nous avons fini par les avoir!" Ils sourriront à leurs souvenirs. Ils diront: "Avec la môme on a bien rigolé." Il faut leur faire honte (…). (Sartre. 2005, p. 180).

252 «Rien ne compte entre ces quatre murs. Il fallait qu'il meure: c'est tout.» (Sartre. 2005, p. 184). 253 «Jean: Tu as raison, je ne peux pas vous rejoindre: vous êtes ensemble et je suis seul. Je ne

bougerais plus, je ne vous parlerai plus, j'irai me cacher dans l'ombre et vous oublierez que j'existe. Je suppose que c'est mon lot dans cette histoire et que je dois l'accepter comme vous acceptez le vôtre. (Un temps.) Tout à l'heur une idée m'est venue: Pierre a été tué près de la grotte de Servaz où nous avions des armes. S'ils me lâchent, j'irai chercher son corps, je mettrai quelques papiers dans sa veste et je le trainerai dans la grotte. Comptez quatre heures après l'interrogatoire, révélez-leur cette cachette. Ils y trouveront Pierre et croiront que c'est moi.» (Sartre. 2005, p. 187).

dedos no pescoço. Nesse momento, Landrieu, o chefe, olha para o quadro de Pétain pendurado na parede e dirige-se-lhe:

Bem vês isto, bem vês, mas lavas daí as tuas mãos. Sacrificas-te, dás-te à França, mas quanto aos pequenos pormenores estás-te nas tintas. Tu entraste na história. Mas nós, nós vivemos na merda. Porcaria. (Atira-lhe o copo de vinho à cara.) (Sartre. 1974, p.

142).254

Já antes tinha sido Landrieu a questionar-se o que fariam eles na situação dos interrogados. E será ele, também, aquele que promete que, caso eles falem e denunciem o paradeiro do seu chefe, lhes salvará a vida, apesar dos seus colegas se oporem. Como poderão suportar que eles vivam e tragam consigo, o resto da vida, as memórias deles e do que lhes infligiram? Mas Landrieu mantém a palavra: a vida deles dependerá das informações que lhes derem.

Nos quinze minutos que lhes são dados para decidirem o seu futuro, Canoris é da opinião que deve revelar a falsa pista que Jean lhes falara, e assim poderem salvar-se. Discutem enquanto comentam o tempo, lá fora: parece que vai chover. A possibilidade de vida e a possibilidade de chuva na mesma precipitação. Quinze minutos para decidir tudo. Henri quer morrer porque só assim a morte que infligiu ao pequeno François fica justificada. Aliás, ele atormenta-se pois acredita que o matou por orgulho. Canoris determinado assegura-lhe que se decidir morrer já a sua sentença fica ditada: foi realmente por orgulho que matou François. Mas e se decidir pela vida: «Canoris: Então nada ficou definitivo: é sobre a tua vida inteira que julgaremos cada um dos teus actos. (…).» (Sartre. 1974, p. 156.255 Henri coloca a decisão de todos sobre Lucie. E ela decide que não falará nada, nem mesmo uma pista falsa. É preciso morrer: «Tomei todo o mal sobre os meus ombros. É necessário que me suprimam assim como a este mal que trago comigo.» (Sartre. 1974, p. 158).256 E não importa que seja

uma pista falsa que lhes seja dada, pois haverá o mesmo brilho de triunfo nos seus olhos. Eles ganharão.

E no meio desta discussão finalmente a chuva começa a cair. Lucie ganha nova vivacidade, vai à janela e afirma como já não se lembrava de nada, julgando que só o sol existia. Esta mudança atmosférica gera a grande mudança em Lucie. Perde a aspereza que carregava, começa a tremer e a por em causa a decisão de morrer. A decisão é tomada, com a ajuda da chuva a molhar a terra, em sinal de recomeço. E os quinze minutos passaram.

Dada a falsa pista, os milicianos fazem sair os prisioneiros e um dos interrogadores, Clochet, sai com eles, voltando pouco depois. Comentam triunfalmente que os apanharam, que lhes

254 «Tu vois ça, tu vois ça mais tu t'en laves les mains. Tu te sacrifices; tu te donnes à la France, les

petits détails tu t'en fous. Tu es entré dans l'histoire, toi. Et nous, nous sommes dans la merde. Saloperie! (Il lui jette son verre de vin à la figure.).» (Sartre. 2005, p. 192).

255 «Canoris: Alors rien n'est arrêté: c'est sur ta vie entière qu'on jugera chacun de tes actes. (…).»

(Sartre. 2005, p. 197).

tinham tirado a arrogância de há pouco. Landrieu vai reafirmar que lhes poupará a vida quando se ouve um tiro. Clochet esconde o riso com as mãos, perante o olhar dos outros. Sim, fora ele a dar a ordem, achara mais humano. E de seguida ouvem-se mais dois tiros. Dali em diante, só eles terão a memória do que se passou ali. Em 1960, Sartre fala desta peça com maior distanciamento mas também com grandes críticas à sua obra:

É uma peça perdida. (…) Eu encenava pessoas cujo destino estava claramente perdido. Há duas possibilidades para o teatro: o sofrimento e a fuga. As cartas já estavam na mesa. é uma peça muito sombria, sem surpresas. Teria sido melhor fazer um romance ou um filme. (Sartre. 1992, p. 286).257

O certo é que foi justamente em 1947, ano de estreia dos Mortos sem Sepultura, que foi publicado Les Jeux sont Faits, Os Dados estão Lançados. Contudo, esta não é, a nosso ver, uma peça perdida, mas uma peça que nos coloca num hipotético limite que reivindica a escolha derradeira. Uma escolha que sublinha a liberdade individual, mesmo — e sobretudo — quando as cartas já estão na mesa. Há sempre a possibilidade de fazer all-in, ou de não ir a jogo. Estas personagens apostaram tudo para ganhar, para que a memória e a vergonha dos interrogadores perdurassem. Ainda assim foram mortos, mas a interpretação de que perderam não é assim tão linear. Aliás, foram mortos justamente porque os interrogadores se sentiram perder.

No documento Ação e Situação (páginas 140-142)