• Nenhum resultado encontrado

c) O Tribunal de Crustáceos

No documento Ação e Situação (páginas 158-163)

Frantz, sequestrado do mundo e da própria família, foge dos olhares dos outros, mas prepara- se para depor num julgamento à humanidade inteira:

Frantz: (…) A testemunha do homem... (rindo:) E que tem isso? Quem havia de ser a testemunha do Homem? Vejamos, minha senhora, até uma criança é capaz de adivinhar... É o próprio Homem. O réu depõe sobre si mesmo. Reconheço que há aqui um círculo vicioso. (Com uma altivez sombria:) Eu sou o Homem, Johanna; sou todo o homem e sou o homem todo, sou o Século (brusca humildade burlesca:), como toda e qualquer pessoa. (Sartre, 1973, p. 134).294

Réu, portanto, e testemunha ao mesmo tempo. Assim, Frantz prostra-se diante de um tribunal futuro, com audiência marcada para o dia 20 de Maio de 3059295, constituído

exclusivamente por caranguejos, pois do Homem já nada restará, a quem reconhece todos os direitos, exceto o de o condenar a si, visto que é ele a testemunha de defesa que a História escolheu. Por isso grava bobinas com o seu testemunho. Podíamos falar de um protagonista onde a guerra deixou marcas de loucura, mas Frantz não é um personagem louco: é um personagem estreitamente ligado à consciência e à vergonha e culpa que emana da sua situação. Frantz é uma personagem responsável, a mais responsável de toda a obra; porque todos são culpados, mas Frantz é único que sabe que o é, que o assume conscientemente. Dostoievki diz-nos, no seu Crime e Castigo:

293 «Frantz: (…) Vous m'avez fait Prince, mon père. Et savez-vous ce qui m'a fait Roi?

Le Père: Hitler.

Frantz: Oui. Par la honte. Après cet... incident, le pouvoir est devenu ma vocation.» (Sartre. 2005, p. 982).

294 «Frantz: (…) Le témoin de l'Homme... (Riant.) Et qui voulez-vous que ce soit? Voyons, madame, c'est

l'Homme, un enfant le devinerait. L'accusé témoigne pour lui-même. Je reconnais qu'il y a cercle vicieux. (Avec une fierté sombre.). Je suis l'Homme, Johanna; je suis tout homme et tout l'Homme, je suis le Siècle (brusque humilité bouffonne), comme n'importe qui. (Sartre. 2005, p. 960).

(…) se faço a mim próprio a pergunta: uma pessoa é um piolho?, isso significa que ele não é um piolho para mim, só é piolho para aquele a quem esta pergunta nem passa pela cabeça e que vai em frente, sem fazer perguntas... (Dostoievki, 2008, p. 393).

Frantz também faz a si mesmo todas as perguntas que adjetivam a humanidade inteira; na tentativa de deixar de as considerar piolhos, ou culpadas. Afinal, ele é a testemunha de defesa de toda a humanidade, vincada aqui no povo alemão:

Frantz: (…) Nós odiávamos o Hitler, outros amavam-no. Onde está a diferença? Tu forneceste-lhe barcos de guerra, eu forneci-lhe cadáveres. Que mais teríamos feito se o tivéssemos adorado? Anda, diz.

O Pai: Então toda a gente é culpada?

Frantz: Não, santo Deus! Ninguém! (…) Todos inocentes diante do inimigo. Todos. O pai, eu, o Goering e os outros. (Sartre, 1973, p. 35).296

Contudo, apesar deste testemunho de inocência, Frantz sente-se culpado; sente, aliás, a culpa de toda a humanidade sobre os seus ombros.297 O rabino que tentou resgatar morto à

sua frente na adolescência, a mulher que havia perdido as pernas e que o acusou de não ter lutado o suficiente de modo a ganhar a guerra, e sobretudo os prisioneiros de Smolensko que torturou para os fazer falar: é diante destes que o olharam que Frantz é culpado. É diante da família, também, de quem foge, portanto.

Como, então, podemos conseguir senti-nos inocentes ainda que perante um tribunal de caranguejos? A sentença está dada desde o nascimento: todos culpados. Como consegue Frantz libertar-se desta culpa que o persegue mesmo dentro do seu sequestro?

d) A Sentença

Johanna: Os seus olhos parecem a objetiva da máquina de filmar. Pare com isso. É como se estivesse morto. (Sartre, 1973, p. 97).298

296 «Frantz: (…) Hitler, nous le haissions, d'autres l'aimaient: où est la différence? Tu lui as fourni des

bateaux de guerre et je lui ai fourni des cadavres. Dis, qu'aurions-nous faire de plus , si nous l'avions adoré?

Le Père: Alors? Tout le monde est coupable?

Frantz: Nom de Dieu, non! Personne. (…) Tous innocents devant l'ennemi. Tous: vous, moi, Goering et les autres.» (Sartre. 2005, p. 882).

297 «Johanna: (…) Et voilà, Samson? (Riant de plus belle.) Samson! Samson! (Cessant de rire.) Je le voyais

autrement.

Frantz, formidable: C'est moi. Je porte les siècles; si je me redresse, ils s'écrouleront.» (Sartre. 2005, p. 951).

A obra termina com o suicídio de Frantz e de seu pai; dois culpados que se condenam um ao outro.299 Eles não foram em busca da sua morte, isso não seria possível na medida em que o

para-si constrói um sentido para o mundo em que vivo, como consciência humana de possuir conhecimento de si e do mundo, sem ter por isso uma essência definida. Foram, portanto, em busca da morte do outro neles próprios:

Frantz (…) A sua imagem fugitiva vai-se pulverizar ao mesmo tempo que as outras que nunca lhe saíram da cabeça. O pai terá sido a minha causa e o meu destino até ao fim.

(Sartre, 1973, p. 174).300

Frantz foi, ao longo de toda a obra, o paradigma do herói trágico, que não consegue conter-se na sua medida e comete a hybris, algo que exorbitou os limites da sua humanidade, tendo de ser condenado por isso para que haja uma purificação, sem a necessidade de sacrifício de um bode. Este protagonista aparece justamente como o pharmacon, o bode expiatório que surge para libertar os males da sociedade num momento catártico. Não falamos aqui de uma culpa individual, mas sim da culpa de toda a humanidade porque, como nos diz na sua melhor gravação (a de 17 de Dezembro de 53), num discurso hobbesiano:

(…) o século teria sido bom, se o homem não tivesse sido acossado pelo seu inimigo cruel, imemorial, pela espécie carnívora que tinha jurado a sua perda, pela besta sem pêlo e maligna — pelo homem. (Sartre, 1973, p. 178).301

Assim também ele, besta sem pêlos e maligna, se converteu no bode que é necessário sacrificar(-se) para que a humanidade seja absolvida.

O resumo de cada uma das obras que nos propomos trabalhar está realizado. Na terceira e última parte deste trabalho de investigação queremos estabelecer um elo entre as duas que a antecedem. É tempo de imiscuir a fenomenologia sartriana, com todas as suas problemáticas, na dramaturgia escolhida e no seu mise en situation. Procuraremos assim uma elucidação fenomenológica do teatro de situações, de forma a compreender as vivências intencionais nos contextos dramatúrgicos em causa. O nosso propósito é estabelecer pontes e intersecções, para assim alcançar uma nova compreensão da relação intersubjetiva. Para isso faremos uma

299 «Frantz: (…) Vous ne serez pas mon juge.

Le Père: Qui parle de cela?

Frantz: Votre regard. (Un temps.) Deux criminels: l'un condamne l'autre au nom de principes qu'ils ont tous deux violés; comment appelez-vous cette farce?

Le Père, tranquille et neutre: La Justice.» (Sartre. 2005, p. 980).

300 «Frantz: (…) Votre image se pulvérisera avec toutes celles qui ne sont jamais sorties de votre tête.

Vous aurez été ma cause et mon destin jusqu'au bout.» (Sartre. 2005, p. 990).

301 «(…) le siècle eût été bon si l'homme n'eût été guetté par son enemi cruel, immémorial, par l'espèce

carnassière qui avait juré sa perte, par la bête sans poil et maligne, par l'homme.» (Sartre. 2005, p. 993).

passagem analéptica até à primeira parte, mas tendo já todo o contributo da dramaturgia, do segundo ponto, que acabámos de percorrer. Procuraremos, então, partir da dramaturgia, mas integrando-a já com as questões de intersubjetividade, espacialidade, temporalidade e ação, num balanço final que procura um equilíbrio e uma resposta à problemática do ser-para- outrem. Notemos que quando falamos de espacialidade falamos de uma espacialidade intersubjetiva, assim como no que respeita à temporalidade. É sempre de intersubjetividade que falamos nestre trabalho, pois foi justamente esse o nosso desiderato. Por isso a noção de intersubjetividade é uma noção que abarca todas as restantes e que, por isso mesmo, muitas vezes acaba por não ser referida por servir de pano de pano de fundo e suporte às demais. No entanto, é esta intersubjetividade que procuramos explicar, com a expectativa de que, no mise en scène, se encontre uma resolução à sua problemática.

No documento Ação e Situação (páginas 158-163)