• Nenhum resultado encontrado

b) A Angústia e a Responsabilidade — Consciência de Liberdade

No documento Ação e Situação (páginas 46-49)

De facto, se a consciência não é mais que a experiência de que vai sendo consciência e, ao mesmo tempo, ela não é nenhuma das que coisas de que é essa vivência, então não tem nenhuma substância, não é uma realidade tangível e, por isso, por não ser nada, não há nada que a possa determinar.61 Esta consciência da indeterminação da consciência é chamada por

Sartre de angústia, sugerindo a permanente possibilidade das determinações de uma consciência serem revertidas, voltarem atrás e deixarem de ser.

60 «(…) dans la quasi-généralité des actes quotidiens, je suis engagé, j'ai parié et je découvre mes

possibles en les réalisant et dans l'acte même de les réaliser comme des exigences, des urgences, des utensilités.» (Sartre. 1943, p. 71).

61 Importa assinalar aqui o conceito de intenção vazia — a consciência, consciente de si como vazia da

matéria que visa, designa a sua matéria como inexistente ou ausente: «En un mot, une intention videest une conscience de négation qui se transcende vers un objet qu'elle pose comme absent ou non existant.» (Sartre. 1943, p. 62).

A indeterminação da consciência é angustiante, pelo facto de se saber livre e responsável perante a sua vida e, por consequência, perante todos os homens:

(…) o homem é angústia. Significa isso: o homem ligado por um compromisso e que se dá conta que não é apenas aquele que escolhe ser, mas de que é também um legislador pronto a escolher, ao mesmo tempo que a si próprio, a humanidade inteira, não poderia escapar ao sentimento da sua total e profunda responsabilidade. (Sartre.

1962, p. 187).62

É justamente por este compromisso intrínseco à angústia que ao falarmos dela não falamos de inação, mas justamente de ação. A filosofia existencialista de Sartre opõe-se ao quietismo: se a existência precede a essência, o homem não é mais do que o que se constrói, ele é o seu projeto e a sua realização: «(…) o homem não é senão o seu projeto, só existe na medida em que se realiza, não é portanto nada mais do que o conjunto dos seus atos, nada mais do que a sua vida.» (Sartre, 1962, p. 207).63 O homem define-se, então, pela ação, ele é o que se faz, não é mais do que a sua vida e, por isso mesmo, é liberdade.64 Esta estrutura permanente do ser humano, a liberdade, pode transportar consigo algumas preocupações a um nível ético. Sartre, dando o exemplo do despertador a quem eu confiro o poder de exigir o meu levantar, continua o raciocínio:

De igual modo, aquilo a que se poderia chamar a moralidade quotidiana é excludente da angústia ética. Há angústia ética quando me considero na minha relação original com os valores. (…) O valor tira o seu valor da sua exigência e não a sua exigência do seu ser. (Sartre. 1993, p. 65).65

Fica aqui claro que Sartre não admite escalas de valores pré-definidas. Para Sartre o valor «(…) só pode desvelar-se a uma liberdade ativa que o faz existir como valor pelo simples facto de o reconhecer como tal.» (Sartre. 1993, p. 65).66 Mas, por se revelarem a uma liberdade, não podem deixar de ser postos em questão, a sua inversão não pode deixar de fazer parte da minha possibilidade permanente. Existe, assim, também uma angústia perante os valores, que é a angústia da sua idealidade. No entanto, o autor acredita estar, de facto, comprometido num mundo de valores e esse comprometimento, assim como o carácter de urgência do mundo e das minhas ações, acabam por fazer os valores erguer-se, apontando que, se me

62 «(…) l'homme est angoisse. Cela signifie ceci: l'homme qui s'engage et qui se rend compte

qu'il est non seulement celui qu'il choisit d'être, mais encore un législateur choisissant en même temps que soi l'humanité entière, ne saurait échapper au sentiment de sa totale et profonde responsabilité.» (Sartre. 1946, p. 28).

63 «(…) l'homme n'est que son projet, il n'existe que dans la mesure où il est réalisé, il n'est donc rien de

plus que l'ensemble de ses actes, rien de plus que sa vie.» (Sartre. 1946, p. 56).

64 «La liberté c'est l'être humain mettant son passé hors de jeu en sécrétant son propre néant.» (Sartre.

1943, p. 63).

65 «De la même façon, ce qu'on pourrait appeler la moralité quotidienne est exclusive de l'angoisse

éthique. Il y a angoisse éthique lorsque je me considère dans mon rapport originel aux valeurs. (…) La valeur tire son être de son exigence et non son exigence de son être.» (Sartre. 1943, p. 73).

66 «(…) elle ne peut se dévoiler, au contraire, qu'à une liberté active qui la fait exister comme valeur du

sinto indignado, reconheço o contravalor baixeza e, se sinto admiração, reconheço então o valor grandeza. Os valores estão, diz-nos Sartre, «(…) disseminados no meu caminho como milhentas pequenas exigências reais, semelhantes aos letreiros que proíbem de pisar a relva.» (Sartre. 1993, p. 66).67 Estes cartazes proibitivos, ou mesmo os despertadores, polícias ou

códigos civis são, então, parapeitos de proteção contra a angústia. Na verdade, sou eu que lhes confiro sentido, sou eu que me proíbo de pisar a relva ou, pelo contrário, por ela caminho. A angústia da indeterminação mostra justamente que sou totalmente livre e confiro sentido ao mundo. É justamente esta liberdade que confere um fundamento aos valores enquanto exigências de uma moral quotidiana: sou eu, no exercício da minha liberdade, que escolho aderir ou recusar um determinado valor, porque só assim, em situação, consigo entrever verdadeiramente o seu sentido. Justifica-se assim, então, a rejeição de uma escala de valores pré-estabelecidos: é o homem, que tem como condição a sua liberdade, que confere, em situação e com concretude, fundamento a valores que, até aí, não passavam de meras possibilidades. Se sou eu que confiro sentido ao toque do despertador pela manhã, da mesma forma sou eu que confiro sentido a um determinado valor e numa determinada circunstância.68

Se o homem está condenado a ser livre, esta condenação implica o peso de todo o mundo sobre si mesmo. É responsável por si, mas também pelo que o rodeia.69 Sartre afirma que não há acidentes numa vida. Sendo mobilizado numa guerra, essa guerra, se a escolher, torna-se a minha guerra e faço-a minha e à minha imagem, ela é tão minha como se tivesse sido eu a declará-la. Pior: ainda que escolha livrar-me desta responsabilidade, não o posso. Sou responsável por tudo, e também pela minha responsabilidade. Diz-nos Sartre:

Estou desamparado no mundo (…) no sentido em que me encontro subitamente sozinho e sem ajuda, empenhado num mundo cuja inteira responsável carrego, sem poder, faça o que fizer, arrancar-me, ainda que por um instante, a esta responsabilidade, pois sou responsável pelo meu próprio desejo de fugir às responsabilidades; fazer-me passivo no mundo, recusar agir sobre as coisas e sobre os outros, é ainda escolher-me (…). (Sartre. 1993, p. 547).70

Liberdade, responsabilidade e, podemos dizer também, temporalidade, andarão sempre ligadas. Escolhendo-me a cada instante, escolho-me a mim e ao mundo que me rodeia, constituindo o sentido temporal da escolha feita e tendo de lidar com ele.

67 «(…) les valeurs sont semées sur ma route comme mille petites exigences réelles semblables aux

écriteaux qui interdisent de marcher sur le gazon.» (Sartre. 1943, pp. 73-74).

68 «L’homme agit toujours à partir de sa situation: sa manière d’agir renvoie toujours au choix qu’il fait

de lui-même.» (Munster. 2007, p. 18).

69 «Nous prenons le mot de "responsabilité" en son sens banal de "conscience (d') être l'auteur

incontestable d'un événement ou d'un objet”.» (Sartre. 1943, p. 598).

70 «Je suis délaissé dans le monde (…) au sens où je me trouve soudain seul et sans aide, engagé dans un

monde dont je porte l'entière responsabilité, sans pouvoir, quoi que je fasse, m'arracher, fût-ce un instant, a cette responsabilité, car de mon désir même de fuir les responsabilités; je suis responsable; me faire passif dans le monde, refuser d'agir sur les choses et sur les autres, c'est encore me choisir (…).» (Sartre. 1943, p. 600).

Esta responsabilidade é um conceito bastante vincado em Sartre, a par da liberdade, e sobretudo como desfecho desta, a ter em conta em toda a ação.

No documento Ação e Situação (páginas 46-49)