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c) Temporalidade e Dialética

No documento Ação e Situação (páginas 34-38)

A respeito desta fissura, deste nada no âmago da consciência, Sartre diz-nos que o ser para-si não é: «Mas o nada (néant) que surge no cerne da consciência não é. Ele é sido.» (Sartre. 1993, p. 103).25 E acrescenta: «O ser da consciência, enquanto consciência, é o de existir à

distância de si como presença a si, e essa distância nula que o ser transporta no seu ser é o Nada.» (Sartre. 1993, p. 103).26 Se o ser para-si é o ser da consciência, e uma vez que esta

nunca coincide consigo mesmo — como adiante trataremos melhor — nunca pode existir uma identificação da consciência consigo mesma. Isto é, ela foge-nos constantemente, nunca sendo consciência do instante presente. Por isso ela movimenta-se constantemente, procurando suprir o nada presente que é, a sua falta de si e a não coincidência consigo mesma quando se procura e reflete no momento atual. Sartre explicita melhor esta ideia, da seguinte forma:

O nada é o questionamento do ser pelo ser, ou seja, justamente a consciência ou para- si. (…) O nada é a possibilidade inerente ao ser e a sua única possibilidade. Mesmo assim, esta possibilidade original só aparece no ato absoluto que a realiza. O nada, sendo nada de ser, só pode vir ao ser pelo próprio ser. (Sartre. 1993, p. 104).27

Chegámos, sem dúvida, ao cerne do conceito sartriano de ser-para-si. A constituição deste ser é justamente um nada presente a si, do qual tenta fugir constantemente. É nesta perceção do nada que se reconhece a verdadeira distinção entre o em-si e o que constitui o ser-para-si no seu âmago. É por isto que Sartre afirma que o nada é a única possibilidade do ser: é com esta fuga da consciência, este devir, que o ser se procura e constitui. Mas constitui-se como realidade humana, extraordinariamente, por não passar do seu projeto de nada original. A realidade humana é este ser que é o fundamento do nada no ser. «No entanto», diz-nos Sartre, «o para-si é. Ele é, dir-se-á, ainda que a título de ser que não é o que é e é o que não é.» (Sartre. 1993, p. 104).28 É, como acontecimento; é, enquanto lançado no mundo; é,

enquanto situação; é, sobretudo, enquanto presença, uma presença a si: a sua presença no mundo.

Sartre assemelha esta captação do ser por si mesmo como não sendo o seu próprio fundamento ao cogito reflexivo de Descartes. É uma intuição da nossa contingência: existimos, mas porque duvidamos. E porque duvidamos sabemos desta existência, uma existência imperfeita, que nos conduz à ideia de perfeição. Este nada do ser, podemos

25 «Mais le néant qui surgit au coeur de la conscience n’est pas. Il est été.» (Sartre. 1943, p. 114). 26 «L’être de la conscience, en tant que conscience, c’est d’exister à distance de soi comme présence à

soi et cette distance nulle que l’être porte dans son être, c’est le Néant.» (Sartre. 1943, p. 114).

27 «Le néant est la mise en question de l’être par l’être, c’est-à-dire justement la conscience ou pour-

soi. (…) Le néant est la possibilité propre de l’être et son unique possibilite. Encore cette possibilité originelle n’apparaît-elle que dans l’acte absolu qui la réalise. Le néant étant néant d’être ne peut venir à l’être que par l’être lui-même.» (Sartre. 1943, p. 115).

28 «Portanto, le pour-soi est. Il est, dira-t-on, fût-ce à titre d’être qui n’est pas ce qu’il est et qui est ce

concluir, é um acontecer de si, um devir de busca do seu íntimo. Este ser da consciência é na rua raiz em-si, para se nadificar em para-si numa permanente possibilidade. Esta possibilidade é a estrutura ontológica do real: a possibilidade que o ser é, que tem-de-ser. Podemos dizer, aqui, que o ser é e não pode nada mais além de ser, porque é possibilidade constante de ser. Contrastando com a inércia do em-si, o ser para-si revela-o defrontando-se com o mundo num processo sempre dinâmico. O ser para-si tem um papel importantíssimo justamente por isso: revela o ser em-si, descomprime-o; mas sobretudo, fundamenta-se a si mesmo. Tudo isto numa relação com o ser em-si e com o mundo, num tempo que se prolonga, sem fim.

«É “no tempo” que o para-si é os seus próprios possíveis segundo o modo do “não ser”; é no tempo que os meus possíveis aparecem no horizonte do mundo que eles fazem meu.» (Sartre. 1993, p. 128).29 O sentido da sua transcendência explica-se, então, através da sua

temporalidade. Qual é o ser de cada tempo? Retrocedendo, através da memória, o ser do passado não pode ser outro que não o em-si. Por outras palavras: ele é, no fundo, um para-si recapturado pelo em-si e invadido por ele. «A passagem ao passado é modificação de ser.» (Sartre. 1993, p. 141).30 O para-si que existiu no passado tornou-se o próprio passado que o

para-si do presente tem de ter sido. Por outro lado, se ao falarmos do ser para-si falámos de presença a si, então o tempo próprio do ser para-si é justamente este presente a que ele é presença. Mas, versando no lado oposto ao tempo passado, tempo do em-si; no tempo presente o ser é o para-si, que é presença ao ser em-si. Mas se, como diz Sartre, «(…) o para- si é o ser pelo qual o presente entra no mundo; de facto, os seres do mundo são co-presentes, enquanto um mesmo para-si lhes é simultaneamente presente a todos.» (Sartre. 1993, p. 142).31 Compreendemos então que é através do para-si que o ser do em-si participa do

presente.

Mas se antes tínhamos dito que o para-si é o ser da consciência — que exploraremos adiante — , então este seu ser está fora de si, é fugidio, escapa-se no tempo, fora de si, atrás e adiante. Enquanto é presente, o para-si já não é aquilo que é, uma vez que a consciência da consciência se escapa, mas também não é o que ainda não é. Remetemo-nos aqui ao futuro. No que respeita ao futuro, a pergunta que se impõe é qual o tipo de ser que possui o porvir. Diz-nos Sartre que

Se, aliás, o para-si estivesse delimitado no seu presente, como poderia ele representar-se o porvir? Como teria o conhecimento ou o pressentimento dele?

29 «C’est “dans le temps” que le pour-soi est ses propres possibles sur le mode du “n’être pas”; c’est

dans le temps que mes possibles apparaissent à l’horizon du monde qu’ils font mien.» (Sartre. 1943, p. 141).

30 «Le passage au passé est modification d’être.» (Sartre. 1943, p. 155).

31 «(…) le pour-soi est l’être par qui le présent entre dans le monde; les êtres du monde sont

coprésents, en effet, en tant qu’une même pour-soi leur est à la fois présent à tous.» (Sartre. 1943, p. 157).

Nenhuma ideia forjada poderia fornecer-lhe um equivalente do porvir. (Sartre. 1993.

p. 145).32

O para-si não se fecha, portanto, no presente. O futuro é um tenho-de-ser ainda que possa não vir a sê-lo. Repetimos que a presença do para-si é fuga e que esta fuga denota falta: para ser si mesmo, o para-si terá de suprir uma falta. Esta falta é o Possível: «O futuro é o ser determinante que o para-si tem de ser para além do ser.» (Sartre. 1993, p. 146).33 Há um

futuro, então, porque o para-si tem de vir a ser o seu ser, ao invés de o ser simplesmente no presente. É assim que se capta como inacabado em relação a si mesmo infindavelmente. É, então, o que o faz ser como um projeto de si, como um ainda-não. Encontra-se assim uma distância:

(…) um tal ser não pode ser para si senão na perspetiva de um ainda-não, pois ele apreende-se a si mesmo como um nada, ou seja, como um ser cujo complemento de ser está à distância de si. À distância, quer dizer, para além do ser. Assim, tudo que para-si é para além do ser é o futuro. (Sartre. 1993, pp. 146, 147).34

Sartre explica da seguinte forma: ao dizer “eu serei feliz”, estou nada mais do que a aludir a um para-si presente que será feliz no futuro, com tudo aquilo que é no então presente e que arrasta consigo do passado que já foi, mas se condensa no ser. Se o para-si, já o dissemos, só pode existir fora de si, junto ao ser, então não podemos dizer que o futuro é presença de para-si mas que, certamente, é um para-si futuro, um ser que está — ainda — Para-além do ser: é a presença do para-si a um ser situado Para-além do ser. Mas é também o que aguarda o para-si que é no presente. E Sartre distingue, mais uma vez, em-si de para-si no que respeita à temporalidade futura com um exemplo muito simples: ao olhar para a lua, esta não é, nem contém em si, nenhum tipo de futuro. Mesmo quando olho para a lua em quarto crescente, é apenas a realidade humana que lhe confere futuro de lua cheia.35

Chegamos agora ao ponto que nos interessa neste estudo de temporalidade e dialética: o passado é o ser que sou fora de mim, sem nenhuma possibilidade de o não ser. Quanto ao futuro, só pode sê-lo, uma vez que constitui o sentido do para-si presente como projeto de

32 «Si d’ailleurs le pour-soi était borné dans son présent, comment pourrait-il se représenter l’avenir?

Comment en aurait-il la connaissance ou le pressentiment? Aucune idée forgée ne saurait lui en fournir un équivalent.» (Sartre. 1943, p. 160).

33 «Le futur c'est l'être déterminant que le pour-soi a à l'être par delà l'être.» (Sartre. 1943, p. 161). 34 «(…) un tel être ne peut être pour soi que dans la perspective d'un pas-encore car il se saisit lui-même

comme un néant, c'est-à-dire comme un être dont le complemént d'être est à distance de soi. A distande, c'est-a-dire par delà l'être. Ainsi tout ce que le pour-soi est par delà l'être est le futur.» (Sartre. 1943, pp. 161-162).

35 «Notons d'abord que l'en-soi ne peut être futur ni contenir une part de futur. La pleine lune n'est

futur, quand je regard ce croissant, que "dans le monde" qui se dévoile à la réalité humaine: c'est par la réalité humaine que le futur arrive dans le monde.» (Sartre. 1943, p. 159).

possibilidade. O futuro faz então um pré-esboço36 dos limites sobre os quais o para-si se

construirá ser na Presença de si. O futuro é, então, o que o ser seria caso não fosse livre. É o esboço que pode, contudo, ser alterado ou desfeito. O futuro não tem, por isso, nenhum ser enquanto futuro, uma vez que não passa de uma possibilidade.

A temporalidade é, portanto, a dimensão e a disposição da mudança. Sem esta não há temporalidade: o tempo é exatamente o oposto do contínuo e permanente. Percebemos então que este tempo da consciência que nos foge funciona como um fermento que se propõe dar forma. Concluímos este ponto com uma citação de Sartre que sintetiza esta dialética da temporalidade:

Esta totalidade que corre atrás de si e ao mesmo tempo se recusa, que não pode encontrar em si mesma nenhum termo à sua ultrapassagem, porquanto é a sua própria ultrapassagem e se ultrapassa em direção a si mesma, não poderia, em caso algum, existir nos limites de um instante. Nunca há instante em que se possa afirmar que o para-si é, porque, justamente, o para-si nunca é. E a temporalidade, pelo contrário, temporaliza-se toda ela como recusa do instante. (Sartre. 1993, p. 168).37

Entendemos então que o tempo vem ao mundo através do para-si. O em-si, justamente porque é em-si, não dispõe de temporalidade: ele é, simplesmente. O para-si é, ao contrário, a própria temporalidade, embora não tenha consciência dessa temporalidade a não ser num plano reflexivo, que já não é o espontâneo do instante em que é. Esta forma de apreender o tempo, que se vai revelando, como uma forma quase finita, dependente de um para-si, aparecendo disperso, revela justamente a distância que separa o ser de si mesmo. É nos recuos e avanços, nas memórias e projeções, que o ser se revela a si mesmo, num tempo específico de possibilidades. Diz-nos Sartre que o tempo aparece «por trajetórias» e acrescenta logo depois: «(…) o lapso de tempo desvanece-se, o tempo revela-se como iridescência de nada à superfície de um ser rigorosamente atemporal.» (Sartre. 1993, p. 228).38 Esta revelação do tempo é, em simultâneo, revelação do mundo e da identidade ela própria. Porque se encontro e projeto o meu ser no tempo, importa reconhecer que o ser está por toda a parte: o mundo é humano e o ser está à minha volta, rodeia-me e sinto esse peso: a mesa, a árvore, a janela, são seres e mais nada para além disso. Captando esse ser capto- me também a mim próprio, uma vez que sou de imediato remetido ao plano da consciência. Nesta dialética do conhecimento, convém introduzir outro modo de existência que não o ser em-si ou o ser para-si, já tratados. Chegamos aqui ao âmago deste trabalho: o ser para-

36 «Le futur ne fait que préesquisser le cadre dans lequel le pour-soi se fera être comme fuite

présentifiante à l'être vers un autre futur.» (Sartre. 1943, p. 164).

37 «Cette totalité qui court après soi et se refuse à la fois, qui ne saurait trouver en elle-même aucun

terme à son dépassement, parce qu'elle est son propre dépassement et qu'elle se dépasse vers elle- même, ne saurait, en aucun cas, exister dans les limites d'un isntant. Il n'y a jamais d'instant où l'on puisse affirmer que le pour-soi est, parce que, précisement, le pour-soi n'est jamais. Et la temporalité, au contraire, se temporalise tout entière comme refus de l'instant.» (Sartre. 1943, p. 185).

38 «(…) le lapse de temps s'évanouit, le temps se révèle comme chatoiement de néant à la surface d'un

outrem que, veremos, se revelará de uma problemática relevância. Porque, diz-nos Sartre, «(…) a realidade humana deve ser no seu ser, de um único e mesmo surgimento, para-si-para- outrem.» (Sartre. 1993, p. 231).39 Escrutinemos, primeiro, o que é este ser para-outrem, para

que depois possamos demorar-nos nesta relação.

No documento Ação e Situação (páginas 34-38)