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2.2) Sartre: um Percurso de Liberdade

No documento Ação e Situação (páginas 118-120)

O teatro de Sartre gira em torno de duas noções fundamentais: liberdade e responsabilidade. Podemos dizer que também toda a sua obra literária e filosófica o faz, e que o teatro pouco mais é que o reflexo dessas problemáticas levadas a uma narrativa de movimento, que sempre procurou colocar em cena. A preocupação com estes conceitos não surgiu sem que algo o justificasse. Sartre, na sua autobiografia romanceada, As Palavras, dá-nos conta ao longo de várias páginas da sua educação estreitamente ligada à religião e da presença quotidiana de um Espírito, e da sua totalidade, próxima da hegeliana:

O mesmo sopro modelava as obras de Deus e as grandes obras humanas; o mesmo arco-íris brilhava na espuma das cascatas, cintilava entre as linhas de Flaubert, luzia nos claros-escuros de Rembrant: era o Espírito. O Espírito falava dos homens a Deus, aos homens dava testemunho de Deus. Na Beleza, meu avô via a presença carnal da Verdade e a fonte das mais nobres elevações. Em certas circunstâncias excecionais — quando uma tempestade rebentava na montanha, quando Victor Hugo estava inspirado, podia-se atingir o Ponto Sublime em que o Verdadeiro, o Belo e o Bem se confundiam. (Sartre. As Palavras, p. 52).194

À medida que crescia, crescia também o seu ateísmo a par da certeza de uma realização subjetiva livre e responsável. Revisitamos a seguinte citação de Sartre, em L’Être et le Néant:

194 Un même souffle modelait les ouvrages de Dieu et les grandes oeuvres humaines; un même arc-en-

ciel brillait dans l'écume des cascades, miroitait entre les lignes de Flaubert, luisait dans les clairs- obscurs de Rembrandt: c'était l'Esprit. L'Esprit parlait à Dieu des Hommes, aux hommes il témoignait de Dieu. Dans la Beuaté, mon grand-père voyait la présence charnelle de la Verité et la source des élévations les plus nobles.En certaines circunstances exceptionnelles — quand un orage éclatait dans la montagne, quand Victor Hugo était inspiré — on pouvait atteindre au Point Sublime où le Vrai, le Beau, le Bien se confondaient.» (Sartre. 1964, p. 46).

Estou desamparado no mundo (…) no sentido em que me encontro subitamente sozinho e sem ajuda, empenhado num mundo cuja inteira responsabilidade carrego (…). (Sartre. 1993, p. 547).195

Assim, esta realização e responsabilidade permanentes, que em Sartre só encontram sentido numa negação da divindade, são colocadas numa prática teatral, a lembrar o próprio teatro grego. A liberdade e a responsabilidade têm então de ser colocadas em cena.

Para Artaud, o futuro do teatro — e de certa forma o futuro em geral — não se inaugura de outra forma que não pela anáfora, que remonta à véspera de um nascimento. A teatralidade deve atravessar e restaurar lado a lado "existência" e "carne". Então poderemos dizer do teatro o que se diz do corpo. (Derrida, 1967, p.

341).196

A anáfora, figura de estilo de repetição de uma palavra ou expressão no início de uma ou mais frases, contém em grego o sentido de transportar para trás (ana: para trás, phorá: ação de levar, transportar).197 Também pode, no cinema e no teatro, chamar-se anáfora à repetição

de imagens. O mais comum é a repetição do cenário, com oscilações de luz, para transmitir a ideia da passagem dos dias. Julgamos ir ao encontro deste sentido a expressão de Artaud. Só com estas passagens sucessivas poderemos atravessar e restaurar quer a existência, de um modo geral, quer o corpo, de um modo particular. E assim se explica o teatro da crueldade, neste autor que Derrida percorre.

O teatro nasce no seu próprio desaparecimento e a descendência desse movimento tem um nome, é o homem. O teatro da crueldade deve nascer, separando a morte desde o nascimento e apagando o nome do homem. (Derrida, 1967, p. 342).198

Artaud rejeita a representação comum, numa quase destruição para renascer um novo conceito. Esta não representação é explicada da seguinte forma: «O teatro da crueldade não é uma representação. É a própria vida no que ela tem de irrepresentável. A vida é a origem irrepresentável da representação.» (Derrida, 1967, p. 343).199 Com isto Artaud renega a ideia

aristotélica de que a representação é a imitação de uma ação. A arte não é, para ele, imitação da vida e tem, por isso, de ser destruída.

195 «Je suis délaissé dans le monde (…) au sens où je me trouve soudain seul et sans aide, engagé dans

un monde dont je porte l'entière responsabilité (…).» (Sartre. 1943. 600).

196 «Pour Artaud, l'avenir du théâtre — donc l'avenir en général — ne s'ouvre que par l'anaphore qui

remonte à la veille d'une naissance. La théâtralité doit traverser et restaurer de part en part l'"existence" et la "chair". On dira donc du théâtre ce qu'on dit du corps.». (Derrida. 1967, p. 341).

197 Cf, Houaiss, Entrada Anáfora, Tomo I, p. 260.

198 «Le théâtre est né dans sa propre disparition et le rejeton de ce mouvement a un nom, c'est

l'homme. Le théâtre de la cruauté doit nâitre en séparant la mort de la naissance et en effaçant le nom de l'homme.». (Derrida. 1967, p. 342).

199 «Le théâtre de la cruauté n'est pas une représentation. C'est la vie elle-même en ce qu'elle a

A arte teatral deve ter o lugar primordial e privilegiado desta destruição da imitação: mais do que qualquer outra foi marcada pelo trabalho de representação total, em que a afirmação da vida permite dividir e cavar através de negação. (Derrida, 1967, p.

344).200

Não é do nosso interesse explorar o teatro da crueldade de Artaud. Julgamos, no entanto, importante sublinhar esta negação da representação, este peso na necessidade de destruição mimética, tão aclamada desde os primórdios do teatro. Destruir a mimese é destruir, a um só tempo, toda a construção subjetiva e social.

No documento Ação e Situação (páginas 118-120)