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d) Missão Comprida

No documento Ação e Situação (páginas 149-152)

No mesmo dia chegam duas visitas para reunirem com Hoederer: Karsky, secretário do Pentágono, e o Príncipe Paulo, filho do Regente. É altura da reunião para discutir a aliança entre as diferentes forças de poder: o Partido Proletário, os liberais e os conservadores. Um membro de cada fação ali naquele escritório, e Hugo a observá-los. O consenso não é fácil. Hoederer, representante do Partido Proletário, impõe condições que deixa os outros numa condição menos confortável, sobretudo no que respeita à representação desse novo comité. Karsky é o mais tempestuoso, desde o início. O Princípe, como é sempre designado, é mais ponderado. O grande problema, relembramos, é a possibilidade da chegada do exército soviético a este país chamado Ilíria. Nessa altura, o ideal seria todos estarem juntos para conseguirem governar.

A dada altura, Hugo, até ali calado, não se contém e bruscamente diz a Hoederer que não tem esse direito, que eles vão contaminar todo o trabalho realizado até ao momento, que se vão insinuar por toda a parte. A discussão é acesa, Hugo grita e Hoederer manda-o calar. Quando o Príncipe sugere que os guarda-costas de Hoederer o retirem da sala, é Hoederer quem diz que ele sairá por seu próprio pé e aproxima-se dele. Nesse mesmo instante, Hugo, com a mão na algibeira onde tem o revólver, continua a gritar: «Não faz caso do que lhe digo? Não faz caso do que lhe digo?» (Sartre. 1972, p. 97).269 E neste momento, em que esperamos

que Hugo cumpra a sua missão, ouve-se uma forte detonação que arranca os caixilhos das janelas e faz voar os vidros em estilhaços. Hoederer mantém a sua presença de espírito, grita para que todos se atirem para o chão e é ele próprio que agarra em Hugo e o deita também no chão.

Na cena seguinte já estão no escritório os guarda-costas de Hoederer e também Jessica, para saber se todos estão bem. Hugo virado para a janela fala consigo mesmo: «Safados! Grandes

268 «Hoederer: (…) Je suppose que tu es à moitié victime, à moitié complice, comme tout le monde.»

(Sartre. 2005, p. 299).

safados!» (Sartre. 1972, p. 97).270 Percebemos que ele desconfia dos autores da detonação. E

enquanto Hoederer, o Príncipe e Karsky vão para o quarto do anfitrião, a fim de conversarem enquanto Ricardo faz o curativo a este último, que apanhou com estilhaços, Hugo, Jessica, Jorge e Slick permanecem no escritório. Hugo está nervoso, continua a murmurar “safados” e começa a beber. Slick e Jorge tentam tranquilizá-lo, mas Hugo parece refletir ainda nas pessoas que conheceu na reunião que tão mal terminara. A ética e a política, sempre relacionadas nos pensamentos de Hugo, que procura ainda a virtude no meio dos seus nervos e da sua fragilidade:

Hugo: Não faltava mais nada: toda a gente está calma, toda a gente está contente. O outro sangrava como um porco, mas limpava a cara a sorrir, e dizia: “Não é nada.”. São os maiores filhos da mãe que há na Terra, e têm coragem, aquela pontinha de coragem que lhes era precisa, para não serem inteiramente desprezíveis. (Com tristeza.) É um quebra-cabeças. (Bebe.) As virtudes e os vícios não estão repartidos equitativamente. (Sartre. 1972, p. 99).271

E Hugo começa a beber cada vez mais, a falar da coragem e da valentia, dos seus nervos e a dar indícios de que conhece os meandros daquela história melhor do que parece, enquanto Jessica tenta a todo o custo justificar cada frase de Hugo, com o álcool, com os problemas conjugais. E quando Hugo vai já contar que está encarregue de uma missão de confiança Jessica intercede, dizendo que está à espera de uma criança e é dessa missão parental que Hugo fala. Mas Hugo continua nos seus quase monólogos, preso aos valores e à representação. Chega a pedir a morte aos guarda-costas de Hoederer:

Hugo: Deem-me um tiro, digo-lhes eu. É o vosso ofício. Ora ouçam: um pai de família nunca é um verdadeiro pai de família. Um assassino nunca é inteiramente um assassino. Andam a representar, percebem vocês? Ao passo que um morto é realmente um morto. Ser ou não ser, hein? Estão a ver o que eu quero dizer: não há nada que eu possa ser senão um morto com seis pés de terra em cima. Tudo o resto, digo-lhes eu, é comédia. (Detém-se bruscamente.) E isto também é comédia. Tudo isto! Tudo o que lhes estou a dizer. Julgam vocês, se calhar, que eu sou um desesperado? Nada disso: represento a comédia do desespero, o que é diferente. Haverá maneira de sair disto?

(Sartre. 1972, p. 102).272

270 «Les salauds! Les salauds!» (Sartre. 2005, p. 310).

271 «Hugo: Tu vois: tout le monde est calme, tout le monde est content. Il saignait comme un cochon, il

s’essuyat la joue en souriant, il disait: “Ce n’est rien.”. Ils ont du courage. Ce sont les plus grands fils de putain de la terre et ils ont du courage, juste ce qu’il faut pour t’êmpecher de les mépriser jusqu’au bout. (Tristement.) C’est un casse-tête. (Il boit.) Les vertus et les vices ne sont pas équitablement repartis.» (Sartre. 2005, p. 312).

272 «Hugo: Tirez sur moi, je vous dis. C’est votre métier. Écoutez donc: un père de famille, c’est jamais

un vrai père de famille. Un assassin, c’est en fait tout en fait un assassin. Ils jouent, vous comprenez. Tandis qu’un mort, c’est un mort pour de vrai. Être ou ne pas être, hein? Vous voyez ce que je veux dire. Il n’y a rien que je puisse être sinon un mort avec six pieds de terre par-dessus la tête. Tout ça, je vous l edis, c’est de la comédie. (Il s’arrête brusquement.) Et ça aussi c’est de la comédie. Tout ça! Tout ce que je vous dis là. Vous croyez peut-être que je suis désespéré? Pas de tout: je joue la comédie du désespoir. Est-ce qu’on peut en sortir?» (Sartre. 2005, p. 314).

Esta consciência assustada da representação é uma constante na personagem de Hugo. Pelo contrário, a sua mulher Jessica mantém sempre a sua postura de jogadora, fazendo por menosprezar tudo o que Hugo diz, não lhe dando qualquer relevância.

No momento seguinte, já os dois sozinhos nos seus aposentos, é Olga quem se revela, escondida atrás dos cortinados. Foi ela quem atirou o petardo e pôs em risco não só a vida de Hoederer e daqueles com quem discutia a aliança, mas também de Hugo. Não parece incomodada com a situação. O Partido considera Hugo um traidor, por estar há oito dias para cumprir a sua missão. Terá até à noite do dia seguinte para a executar, caso contrário outro será designado para o efeito. E dessa forma, dá-lhe a entender que também ele morrerá, pela sua traição. Depois disto sai e Hugo fica a pensar na confiança que não resiste a oito dias de espera e no abstrato de um assassínio:

Hugo: É a mesma coisa; matar e morrer é a mesma coisa: tão sozinho se está num caso como no outro. Ele é que tem sorte, o Hoederer: morrerá apenas uma vez. E eu, de há dez dias para cá, ando todos os minutos a matá-lo. (Sartre. 1972, p. 113).273

Pouco depois aparece justamente Hoederer no quarto. Jessica acaba por os convencer a falarem sobre o que os separa ideologicamente. E Hoederer acaba por explicar a Hugo o seu ponto de vista, de que todos os meios são bons desde que sejam eficazes, de que Hugo preza demais a sua pureza e que nunca seria capaz de sujar as mãos. A pureza que é um pretexto para a imobilidade. E explica-lhe que a aliança é a única forma de poupar vidas humanas, acusando Hugo de gostar mais dos princípios do que dos homens. E vemos no diálogo que abaixo reproduzimos um pequeno retrato das convicções de cada um:

Hugo: Entrei para o Partido porque a causa que ele defende é justa e, quando deixar de o ser, sairei. Quanto aos homens, não me interessa o que são, mas o que poderão vir a ser.

Hoederer: E a mim interessam-me como são. Com todas as suas torpezas e todos os seus vícios. Comovem-me as suas vozes e as suas mãos quentes que agarram e a sua pele, a mais nua de todas as peles, e o seu olhar inquieto e a luta desesperada que travam, cada um por sua vez, contra a morte e contra a angústia. Para mim tem importância um homem a mais ou a menos no mundo. Todas as vidas são preciosas. Mas a ti, bem te conheço, meu menino: és um destruidor. Detestas os homens porque te detestas a ti próprio; a tua pureza parece-se com a morte, e a Revolução com que sonhas não é a nossa: tu não queres modificar o mundo, queres é acabar com ele.

(Sartre. 1972, p. 128).274

273 «Hugo: C’est la même chose; touer, mourir, c’est la même chose: on est aussi seul. Il a de la veine,

lui, il ne mourra qu’une fois. Moi, voilà dix jours que j ele tue, à chaque minute.» (Sartre. 2005, p. 322).

274 «Hugo: Je suis entré au Parti parce que sa cause est juste et j’en sortirai quando elle cessera de

l’être. Quant aux hommes, ce n’est pas ce qu’ils sont qui m’interesse mais ce qu’ils pourront devenir. Hoederer: Et moi, j eles aime pour ce qu’ils sont. Avec toutes leurs saloperies et tous leur vices. J’aime leur voix et leurs mains chaudes qui prennent et leur peau, la plus nue de toutes les peaux, et leur regard inquiete t la lutte desesperée qu’ils mènent chacun à son tour contre la morte t contre l’angoisse. Pour moi, ça compte un homme de plus ou de moins dans le monde. C’est précieux. Toi, je te connais bien mon petit, tu es un destructeur. Les hommes, tu les détestes parce que tu te détestes

Neste momento da discussão Hugo encoleriza-se e Hoederer tenta acalmá-lo, que a culpa não é dele e todos os intelectuais são assim. Um intelectual nunca será um revolucionário mas, quanto muito, um assassino. E neste momento, em que parece que Hugo vai, finalmente, cumprir a sua missão, entram os guarda-costas de Hoederer, que estranharam a sua ausência e o procuraram. Todos saem, num clima calmo, deixando Jessica e Hugo a conversar.

Jessica tenta chamar Hugo à razão: os argumentos de Hoederer são válidos, ele próprio parecia convencido enquanto o ouvia. Mas Hugo nega e garante terminar o seu trabalho na manhã seguinte.

Mas na manhã seguinte Jessica antecipa-se e vai falar com Hoederer. Explica-lhe que Hugo o pretende matar, apenas para cumprir ordens, mas que no fundo não tem vontade, simpatiza com ele e apenas cumpre ordens. Sugere que o desarmem quando chegar. Hoederer nega essa possibilidade, quer convencê-lo de que a sua decisão é a mais acertada. Quando são avisados da chegada de Hugo Jessica salta pela janela e ficam apenas os dois, que começam a trabalhar, trabalho que Hoederer sistematicamente interrompe falando do atentado do dia anterior, ou da possibilidade de Hugo lhe apontar um revólver e nesse instante se questionar a si próprio se não seria realmente ele a ter razão. O próprio Hugo, embora negando, se debate com a impossibilidade de carregar no gatilho. Enquanto Hoederer lhe serve um café, de costas, Hugo bem tenta mas algo o detém. E Hoederer descobre-o nessa luta. Descobre-lhe o revólver. O próprio Hugo acaba por afirmar que lhe tem estima, que não conseguiria atirar. E pede-lhe licença para sair por instantes para refletir em toda a situação.

E quando Hugo sai, Jessica entra pela janela, de onde assistiu a toda a cena. Durante a conversa, mais romanceada, acabam por beijar-se e é nesse momento que Hugo entra e, finalmente, cumpre a sua missão, embora com um pretexto diferente daquele que ali o levara. E depois dos três tiros, é o próprio Hoederer que lhe salva a pele, pedindo que não lhe façam mal uma vez que atirou por ciúmes, afirmando até que era amante da mulher dele. E assim termina toda esta analepse e voltamos ao quarto de Olga, dois anos depois de toda esta situação.

No documento Ação e Situação (páginas 149-152)