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h) A Concretude da Relação

No documento Ação e Situação (páginas 78-83)

Se até aqui nos detivemos a explicitar as diferentes dimensões do ser — em-si, para-si e para- outrem — assim como as nossas reações frente ao outro, vínculos do meu corpo com o corpo de outrem — o medo, o orgulho e a vergonha, e o reconhecimento da minha escravidão —, convém agora deixarmos esta existência como corpo em situação, assim como as suas reações para com a alteridade, e procurar conexões concretas com o outro e a sua presença.

Em primeiro lugar, convém demarcar um ponto importante: vimos já que quando o outro me olha ele apreende o segredo do meu ser: o sentido do meu ser está fora de mim e ele sabe o que eu sou. Ao ser olhado, sou aprisionado numa ausência da minha subjetividade. No entanto, neste momento em que outro, na sua liberdade, é o alicerce do meu ser em-si, tenho a capacidade de recuperar esta liberdade. Torno-me assim o perseguidor-perseguido (Sartre. 1993, p. 367) ou projeto de objetivação do outro que primeiramente me objetivava. Sartre resume esta ideia de forma muito simples: «Sou prova de outrem: eis o facto original.» (Sartre. 1993, p. 367).143 Percebemos então que o ser para-si pode ser em presença de outro

sem ser essa presença, num círculo de relação, do qual não saímos. Procurando evadir-se desse ser em presença, o para-si tenta colher para si a liberdade do outro, sempre em relação. Mas isto vale tanto para mim como para o outro: enquanto eu tento libertar-me dessa presença que sou, com o outro como superior que objetiva, o mesmo se passa com o outro, que tenta libertar-se também, procurando subjugar-me. O ser para-outrem tem, como vimos, um sentido original de conflito. Mas Sartre explica este movimento:

141 «Il nous paraît alors que l'autre accomplit pour nous une fonction dont nous sommes incapables, et

qui pourtant nous incombe: nous voir comme nous sommes.» (Sartre. 1943, p. 394).

142 «Le corps est l'instrument que je suis.» (Sartre. 1993, p. 399).

Não se trata, para mim, de apagar a minha objetividade objetivando o outro, o que corresponderia a libertar-me do meu ser para-outrem, mas, muito pelo contrário, é enquanto outro-olhante que eu quero assimilar o mim a outro, e este projeto de assimilação comporta um reconhecimento acrescido do meu ser-olhado. (Sartre. 1993,

p. 369).144

Não escapamos, portanto, deste círculo intersubjetivo, do olhador-olhado, que não só me revela o outro, como me revela a mim próprio, uma vez que me identifico com o meu ser- olhado. O projeto de unidade com outrem é, por isso, irrealizável e conflituoso: experimento- me como objeto para outrem e procuro assimilá-lo através dessa experiência. Contudo, esse outrem apreende-me como objeto e não tenta assimilar-me a ele, uma vez que trancende a minha transcendência e age sobre a minha liberdade, mas poupando-se ao percurso inverso. Projetos de mim mesmo na presença de outrem colocam-me numa ligação direta com a liberdade desse outrem. Por isso relações como o amor são um conflito, uma vez que o amor é o conjunto dos projetos pelos quais se pretende realizar o seu valor próprio. Ainda que a liberdade de outrem seja fundamento do meu ser, porque existo a partir dela, também é nela que estou em perigo, uma vez que me faz ser, me confere e retira valores.

O amante quer ser amado, quer cativar a consciência do outro. Sartre explica-o da seguinte forma:

Esta noção de "propriedade" pela qual se explica tão amiúde o amor não pode, efetivamente, ser primeva. Porque havia eu de querer apropriar-me de outrem se não fosse precisamente enquanto outrem me faz ser? Mas isto implica, justamente, um certo modo de apropriação: é da liberdade do outro enquanto tal que pretendemos apoderar-nos. (Sartre. 1993, p. 370).145

Portanto, o amante pretende, com o juramento de amor, que a liberdade do outro se determine a si mesma de forma a tornar-se amor. Uma liberdade a brincar ao determinismo. Para além disso, o amante pretende ser para o amado tudo no mundo. Coloca-se assim ao lado do mundo: um objeto que envolve todos os outros objetos. Um objeto no qual a liberdade do outro se perde. No entanto, o objeto que o outro deve fazê-lo ser é um objeto- transcendência, um fim absoluto. Assumindo o meu ser-para-outrem, é certo que me assumo como valor, neste caso de relação amorosa, assumo-me como valor absoluto, não podendo ser desvalorizado. Querer ser amado é, por isso, querer estar para além de todos os restantes valores. Não sou algo no mundo entre todos os restantes algos: o mundo revela-se a partir de

144 «Il ne s'agit pas pour moi d'effacer mon objectivité en objectivant l'autre, ce qui correspondrait à me délivrer de mon être-pour-autrui, mais, bien au contraire, c'est en tant qu'autre-regardant que je veux

m'assimiler l'autre et ce projet d'assimilation comporte une reconnaissance accrue de mon être- regardé.» (Sartre. 1943, p. 405).

145 «Cette notion de "proprieté" par quoi on explique si souvent l'amour ne saurait être première, en

effet. Pourquoi voudrais-je m'approprier autrui si ce n'était justement en tant qu'autrui me fait être? Mais cela implique justement un certain mode d'appropriation: c'est de la liberté de l'autre en tant que telle que nous voulons nous emparer.» (Sartre. 1943, p. 407).

mim. Sartre acentua o conflito, dizendo: «O amado não pode querer amar. O amante deve então seduzir o amado; e o seu amor não se distingue deste empreendimento de sedução.» (Sartre. 1993, p. 375).146 No amor, não há uma recusa de objetividade, pelo contrário:

acentuo-a e luto para ser sempre um objeto, mas um objeto fascinante, o objeto que dá sentido a todos os restantes.

Não esqueçamos que o olhar não pode ser olhado, uma vez que nesse preciso instante em que olho para o olhar este se desvanece, passando a ser apenas olhos. E nesse momento possuo o outro que se sabe visto e que reconhece a minha liberdade e a sua objetividade. Esta pode ser uma solução da relação com o outro: escolho-me como olhador do olhar do outro, construindo a minha subjetividade destruindo a do outro. Este "olhar o olhar" é a atitude que Sartre chama de indiferença para com outrem (Sartre. 1993, p. 383). É uma cegueira face aos outros, nem sequer imagino que possam olhar-me, fecho-me num solipsismo. É a nossa atitude face ao revisor de bilhetes ou ao empregado de café, por exemplo. São indivíduos- funções e o meu olhar confronta o olhar deles.

Estes são apenas pequenos exemplos de relações do meu ser-com-outrem, que pretendem sublinhar esta problemática da alteridade e, mais concretamente, do olhar. No entanto, até aqui não houve espaço para um "nós", o mit-sein, o ser-com que se torna um pronome pessoal; este "nós" é sujeito e é compreendido como um plural do "eu". E se é compreendido como um plural do "eu", então pressupõe-se que é de sujeitos que falamos quando falamos de um "nós". Neste "nós" que é sujeito não há espaço para que alguém dentro desse "nós" seja objeto. Falamos de uma pluralidade de subjetividades. E chegamos neste momento ao ponto decisivo desta nossa primeira parte, que se queria de explanação. Sartre dá-nos um exemplo deste "nós". Um exemplo que nos interessa sobremaneira:

A melhor exemplificação do nós pode ser-nos fornecida pelo espectador de uma representação teatral, cuja consciência se esgota a apreender o espetáculo imaginário, a prever os acontecimentos por meio de esquemas antecipadores, a erigir seres imaginários em herói, cativa, etc., e que não obstante, no próprio surgimento que o faz ter consciência do espetáculo, se constitui teticamente como consciência (de) ser co-espectador do espetáculo. (Sartre. 1993, p. 414).147

É em momentos como este que se dá a experiência do nós-sujeito. Sartre dá também o exemplo de um incidente na rua que de repente une todos os sujeitos num "nós". mas é este exemplo do teatro que nos interessa para dar conta da nossa problemática da alteridade: o teatro reúne as condições necessárias para solucionar o conflito da objetividade. Mais adiante

146 «L'aimé ne saurait vouloir aimer. L'amant doit donc séduire l'aimé; et son amour ne se distingue pas

de cette entreprise de séduction.» (Sartre. 1943, p. 411).

147 «La meilleure exemplification du nous peut nous être fournie par le spectateur d'une répresentation

théâtrale, dont la conscience s'épuise à saisir le spectacle imaginaire, à prévoir les événements par des schèmes anticipateurs, à poser des êtres imaginaires comme le héros, le traîte, la captive, etc., et qui pourtant, dans le surgissement même qui le fait conscience du spectacle, se constitue non- thétiquement comme conscience (d') être co-spectateur du spectacle.» (Sartre. 1943, p. 454).

voltaremos a este ponto, sublinhando por ora apenas a capacidade do ser-para-o-outro fundar o ser-com-o-outro.

Findamos aqui a primeira parte deste trabalho. De seguida, abordaremos o teatro sartriano, para numa terceira parte se conjugarem estes princípios ontológicos com a interpretação da sua dramaturgia. Para já, começaremos por fazer um percurso quer da relação primordial entre filosofia e literatura, quer do teatro de uma forma abrangente, para depois incidirmos na teatralidade sartriana, dando a conhecer cada uma das peças que nos propomos trabalhar na terceira e última parte.

No documento Ação e Situação (páginas 78-83)