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1.2) A Literatura para Sartre

No documento Ação e Situação (páginas 95-97)

Compreendemos que esta escrita clara e neutra também faz parte dos objetivos narrativos de Sartre. E também ele defende o silêncio, quer na sua forma verbal quer na sua forma escrita. Diz-nos nas Situações II: «Este silêncio é um momento de linguagem; estar calado não é ser mudo, é recusar falar; portanto, é falar ainda.» (Sartre, 1968, p. 72).160 Podemos com esta frase relembrar Merseault, de Camus, mas podemos também pensar em Electra, d' As Moscas ou em Frantz, d'Os Sequestrados d'Altona, as personagens mais gritantes no seu silêncio. Mas podemos também pensar em cada uma das suas obras, dramáticas ou não, e no narrador sempre incisivo no presente que descreve.

Mas mais do que a preocupação pelo estilo ou pela forma, Sartre tem uma preocupação maior: não escapar á sua função. Diz-nos: «(…) a função do escritor é fazer com que ninguém possa ignorar o mundo e que ninguém se possa dizer inocente.» (Sartre, 1968, p. 71).161 E

Sartre abraça esta forte convicção: a de todos temos responsabilidade perante o mundo e que mesmo a passividade é já agir, assim como o silêncio é já falar. Exprime exatamente isto da seguinte forma: «Mesmo que fôssemos mudos e quedos como pedras, até a nossa passividade

160 «Ce silence est un moment du langage; se taire ce n'est pas être muet, c'est refuser de parler, donc

parler encore.». (Sartre, 1999, p. 71)

161 «(…) la fonction de l'écrivain est de faire en sorte que nul ne puisse ignorer le monde et que nul ne

seria uma ação. (…) O escritor está em situação na sua época: cada palavra tem repercussões, e também cada silêncio.» (Sartre, 1968, p. 13).162 É este o compromisso da sua literatura:

estar em consonância com a sua época e fazer das suas palavras e dos seus silêncios gritos de tomada de posição. Mesmo a abstenção numa determinada matéria, a não abordagem de um certo tema nas suas obras é já uma tomada de posição, uma atitude tomada de forma comprometida. Porque, para Sartre, o homem é o ser que modifica as coisas: «[O Homem] (…) é também o ser que não pode ver uma situação sem a modificar, porque o seu olhar congela, destrói ou esculpe, ou, como faz a eternidade, modifica o objeto em si mesmo.» (Sartre, 1968, p. 70).163 Compete-lhe a ele recriar, portanto. Tomar em suas mãos — e no seu olhar, como o próprio vincou — tudo o que pertence ao mundo e moldá-lo, dar-lhe nova consistência, atribuir-lhe novo significado. E isto tudo tem a ver com o comprometimento de que falávamos acima. O homem é o meio pelo qual o mundo se dá a conhecer, o meio pelo qual tudo se manifesta. Porque é a realidade que lhes dá um novo sentido, numa nova criação, à medida de um deus da palavra. Portanto, é através da palavra que o mundo é revelado e, de uma certa forma, transformado quer pelas palavras do autor quer pela forma como elas serão lidas pelo leitor: «Portanto, escrever é revelar o mundo e, ao mesmo tempo, propô-lo como uma tarefa à generosidade do leitor.» (Sartre, 1968, p. 104).164

Podemos concluir, então, que o autor se encontra em situação, que mantém uma estreita relação com a sua época, que quer revelar de forma livre e comprometida a um leitor o mais universal possível. Percebemos a idealidade deste objetivo, que também ele percebeu: o autor sabe que encontra nos leitores liberdades mascaradas e, por isso, não disponíveis ao total sentido do texto; por outro lado, também a liberdade do autor não se revela tão pura assim, tendo por isso justamente de a trabalhar através da escrita.165 A escrita é, então,

tarefa para a liberdade do autor e do leitor. E é desta forma que a sociedade é revelada a si mesma e toma consciência de si. Ser-se visto, tal como o dissemos na primeira parte, não é agradável, intimida, gera desconforto:

Se a sociedade se vê, e principalmente se se vê vista, há, devido a este facto, contestação dos valores estabelecidos e do regime: o escritor apresenta-lhe a sua imagem, intima-a a assumi-la ou a modificar-se. E, de qualquer maneira, ela modifica-se: perde o equilíbrio que é mantido pela ignorância, oscila entre a vergonha e o cinismo, pratica a má-fé; assim, o escritor dá á sociedade uma consciência infeliz, estando por isso em perpétuo antagonismo com as forças conservadoras que mantém o equilíbrio que ele tende a romper. (Sartre, 1968, p. 123).166

162 «Serion-nous muets et cois comme des cailloux, notre passivité même serait une action. (…) L'écrivan

est en situation dan son époque: chaque parole a des retentissements. Chaque silence aussi.» (Sartre, 1999, pp. 12-13).

163 «Et c'est aussi l'être qui ne peut même voir une situation sans la changer, car son regard fige,

détruit, ou sculpte, ou, comme fait l'etérnité, change l'objet en lui même.» (Sartre, 1999, p. 70).

164 «Écrire, c'est donc à la fois dévoiler le monde et le proposer comme une tâche à la générosité du

lecteur.» (Sartre, 1999, p. 103).

165 «En fait l'écrivain sait qu'il parle pour des libertés enlisées, masquées, indisponibles; et sa liberté

même n'est pas si pure, il faut qu'il la nettoie; el écrit aussi pour la nettoyer.» (Sartre, 1999, p. 110).

166 «Si la societé se voit et surtout si elle se voi vue, il y a, par le fait même, contestation des valeurs

A escrita tem, pois, o dever de aclarar a sociedade, de a fazer refletir-se, revelar-se e equilibrar-se, a par de fazer o mesmo com o leitor, num processo de libertação do próprio escritor. Ser testemunha e dar testemunho, portanto.

Convém sublinhar, no entanto, para não perdermos o foco deste percurso, que Sartre não deu como título a este artigo nada como "O que é a Escrita?", mas sim "O que é a Literatura?"167, o

que revela a extensão destas suas palavras, que não se tornam restritas a uma linguagem científica mas, pelo contrário, invade toda a literatura de uma responsabilidade comprometida. Não é também ao acaso que, nas Situações II onde se insere este artigo, o subtítulo do volume seja justamente Littérature et Engagement: não se trata apenas de uma descrição definidora de literatura, mas também, e acima de tudo, o instaurar de uma responsabilidade literária — quer para o escritor quer para o leitor — comprometida, engajada, com os outros e o mundo. O escritor está, portanto, em situação, tal como todos os homens, mas tem de tomar este estar situado como uma tarefa de tomar a realidade e a explicar, fundamentada. Explica Sartre:

Em resumo, o autor está em situação, como todos os outros homens. Mas os seus escritos, como todo o projeto humano, encerram e, simultaneamente, precisam e ultrapassam essa situação; explicam-na mesmo e fundamentam-na, tal como a ideia de círculo explica e fundamenta a ideia de rotação de um segmento. Estar situado é um carácter essencial e necessário à liberdade. (Sartre, 1968, p. 179).168

A obra literária é, podemos dizer, o despertar e o por em prática da liberdade. Revelá-la e, mais do que isso, apelar à liberdade do outro agente necessário ao processo de escrita: o leitor. O autor testemunha a liberdade e desvenda a liberdade do outro, que o lê, estimulando-a. Percebemos aqui a importância atribuída por Sartre à literatura. Mas entendemo-la ainda melhor na forma como termina este artigo, dotando a literatura de uma força transformadora que abarca não só a sociedade mas o próprio homem:

Nada nos garante que a literatura seja imortal; a sua oportunidade, atualmente, a sua única oportunidade é a oportunidade da Europa, do socialismo, da democracia, da paz. É preciso jogá-la; se a perdemos; nós, escritores, pior para nós. Mas também, pior para a sociedade. Pela literatura (…) a coletividade passa à reflexão e à mediação, adquire uma consciência infeliz, uma imagem sem equilíbrio de si própria que procura sem cessar modificar e melhorar. Mas, no fim de contas, a arte de escrever não é protegida pelos decretos imutáveis da Providência; é o que os homens

No documento Ação e Situação (páginas 95-97)