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f) A saída de si rumo ao ser para-outrem

No documento Ação e Situação (páginas 70-76)

Também Fernando Pessoa, através do seu heterónimo Bernardo Soares, traduz o problema da alteridade, no caso particular da relação amorosa, mas que podemos expandir a todas as relações do ser-para-o-outro. Diz ele, no Livro do Desassossego:

123 «Mais la fierté — ou vanité — est un sentiment sans équilibre et de mauvais fois: je tente, dans la

vanité, d'agir sur autrui en tant que je suis objet; cette beauté ou cette force ou cet esprit qu'il me confère en tant qu'il me constitue en objet, je prétends en user, par un choc en retour, por l'affecter passivement d'un sentiment d'admiration, ou d'amour.» (Sartre. 1943, p. 330).

124 «En constituant autrui comme objet, je me constitue comme image au coeur d'autrui-objet; de là la

désillusion de la vanité: cette image que j'ai voulu saisir, pour la récoupérer et la fondre à mon être, je ne m'y reconnais plus, je dois bon gré mal gré l'imputer à autrui comme une de ses propriétés subjectives (…).» (Sartre. 1943, p. 330).

A fadiga de ser amado, de ser amado deveras! A fadiga de sermos o objeto do fardo das emoções alheias. Converter quem quisera ver-se livre, sempre livre, no moço de fretes da responsabilidade de corresponder, da decência de se não afastar, para que se não suponha que se é príncipe nas emoções e se renega o máximo que uma alma humana pode dar. A fadiga [de] se nos tornar a existência uma coisa dependente em absoluto de uma relação com um sentimento de outrem. (Bernardo Soares. 1998, pp.

332-333).

A fadiga que, segundo ele, supera o tédio, assume proporções maiores nesta problemática sartriana da relação intersubjetiva. No entanto, são comuns esta percepção da objetivação, e da consequente fuga da liberdade, numa conversão a um “moço de fretes” com a responsabilidade da correspondência. Há uma perda de subjetividade. O Outro é aquele pelo qual me transformo em não ser. Impõe-se, assim, a tentativa de conservar a nossa subjetividade rumo a um outro que será, então, objeto.

Este outro-objeto que acaba por se manifestar através destas reações enunciadas no ponto anterior, é-me revelado na sua objetividade não de uma forma puramente abstrata, mas sim com significações particulares que o adjetivam. Ao mesmo tempo que me apreendo, moldo o outro-objeto no mundo. Isto porque só existo e só tenho consciência do meu ser estando comprometido:

Outrem, enquanto é sujeito, acha-se igualmente empenhado na sua imagem. Mas, pelo contrário, enquanto o apreendo como objeto, é esta imagem mundana que me salta à vista: outrem torna-se o instrumento que se define pela sua relação com todos os outros instrumentos, ele é uma ordem dos meus utensílios que está encravada na ordem que eu imponho a estes utensílios; captar outrem é captar esta ordem-enclave e referi-la a uma ausência central ou “interioridade”; é definir esta ausência como escoamento cristalizado dos objetos do meu mundo em direção a um objeto definido do meu universo. (Sartre. 1993, pp. 301-302).125

Captando o outro, o comprometimento da relação torna-se um comprometimento-objeto. O outro, enquanto apenas ser que olha, mantendo a sua subjetividade, está comprometido na sua imagem. No momento em que é também ser que é visto, já objeto, chego a ele a partir do mundo inteiro e torna-se instrumento que se define em relação — uma relação que é a mesma de objetos como pregos e martelo, cinzel e mármore, que só pode ser compreendido a partir do seu fim. O outro dá-se assim na sua totalidade e como totalidade, é um objeto apreendido no seu todo.

125 «Autrui, en tant qu'il est sujet, se trouve pareillement engagé dans son image. Mais en tant que je le

saisis comme objet, au contraire, c'est cette image mondaine qui me saute aux yeux: autrui devient l'instrument qui se définit par son rapport avec tous les autres instruments, il est un ordre de mes utensiles qui est enclavé dans l'ordre que j'impose à ces utensiles: saisir autrui, c'est saisir cette ordre- enclave et le rapporter à une absence centrale ou "intériorité"; c'est définir cette absence comme écoulement figé des objets de mon monde vers un objet défini de mon univers.» (Sartre. 1943, pp. 331- 332).

A grande diferença entre este outro enquanto é sujeito e enquanto é objeto é o simples facto de que o outro-sujeito não pode ser conhecido, torna-se impenetrável. O cuidado constante é manter este outro como objeto, para que eu não experimente a fuga do mundo para fora de mim, para que não me aliene.

O outro que me objetiva faz com que eu esteja fora de mim. Chama a isto Sartre de ek-stase, no sentido literal do termo alemão: êxtase ou sair de si. O autor enuncia três momentos deste ek-stase do Para-si. O primeiro representa a sua nadificação, o desprendimento do que ele é enquanto Para-si. O segundo é um ek-stase reflexivo. Significa isto que é o desprendimento desse mesmo desprendimento, numa nadificação reflexiva: eu sou este ser que nega a sua subjetividade. Este ek-stase reflexivo prepara o caminho do terceiro, mais radical: o ser-para- outrem. Aqui, há uma inversão negativa neste ser reflexivo. Se, por um lado, nego que um ser-para-si seja o outro, estando comprometido neste ser que tem-de-ser, objetivamente; não posso negar uma negação inversa. Isto é, nesta interioridade de negação, nem eu nem o outro podemos dar-nos um ao outro de fora. É então preciso que haja um ser eu-outro, num esforço, ainda que vão, de o ser-para-si recuperar o seu ser-em-si, o ter-de-ser de uma forma pura e simples, porque ao nível dos objetos. Assim, e através dos seus esforços de ser consciência de si, este si-objeto experimenta-se como tendo-sido por e para uma consciência que não a dele. Nasce assim o ser-para-outro. Isto porque sou o objeto que quero captar e que capto como existente para um outro que me olha e, por isso, me objetifica. Perdeu-se assim a totalidade do ser para se constituir uma nova dimensão do ser: o ser-para-outro. Em jeito de conclusão deste ponto, percebemos que a existência do outro é experimentada pela minha objetividade e que, como resposta à alienação do meu ser frente ao olhar do outro, a reação é a tentativa de apreender o outro como objeto, para que possa assim subsistir a minha subjetividade. Desta forma, o outro pode existir na sua relação conosco de duas formas distintas: como objeto, se o conheço e atuo sobre ele, ou como sujeito, se o experimento com a evidência do seu olhar e, não podendo conhecê-lo, me deixo a mim conhecer. Nesta relação intersubjetiva em que há sempre um ser que é objeto, este objeto manifesta-se como corpo. É este corpo que vamos expor de seguida, os seus problemas e as suas relações com a consciência.

g) O Corpo

Sartre inicia esta temática a afirmar que o grande problema subjacente ao corpo e às suas relações com a consciência é que consideramos o corpo como algo dotado de leis próprias e que pode ser definido do lado de fora, mas a consciência é tida como uma intuição e, por isso, íntima. No entanto, o nosso corpo nunca o vimos. Definimo-lo desse lado de fora porque conhecemos outros corpos por descrições, dissecações de cadáveres, análises laboratoriais e tratados de fisiologia. Concluo assim que o meu corpo é semelhante aos demais analisados.

Mas, mesmo que tenha sido sujeito a cirurgias, o que conheço do meu corpo é um conhecimento nascido da experiência dos outros: «(…) partir das experiências que os médicos puderam fazer com o meu corpo é partir do meu corpo no meio do mundo e tal como ele é para outrem. O meu corpo, tal como ele é para mim, não me aparece no meio do mundo» (Sartre. 1993, p. 312).126 Exemplifica ainda que posso ver as minhas vértebras a partir de uma

radioscopia. Ainda assim, eu estou, precisamente, do outro lado: o lado de fora, do mundo. Captava o corpo nesse momento como um outro qualquer objeto: «(…) ele era muito mais a minha propriedade do que o meu ser.» (Sartre. 1993, p. 312).127

E mesmo quando vejo e toco as mãos, as pernas ou qualquer outra parte tangível e visível do meu corpo, afirma Sartre que, ainda neste caso, sou outro em relação ao meu olho, porque não consigo ver esse olho enquanto ele vê, apenas o apreendo como órgão sensível. Também vejo a minha mão tocar os objetos, mas enquanto ela os toca, eu não a conheço no seu ato de os tocar. Nesse momento não vejo a minha mão de forma diferente de como vejo qualquer outro objeto à minha frente: ela revela-me os objetos e não ela própria. Há, nesse momento, uma distância entre mim e a minha mão, uma distância tal como a que estabeleço com todos os objetos. Ainda quando toco a perna com o dedo, sinto a perna a ser tocada, mas diz Sartre que esse fenómeno chamado de “dupla sensação" não tem existência real: no momento em que toco a perna ou quando a vejo transcendo-a com uma finalidade, qualquer que seja (vestir umas calças, mudar um curativo). Essa finalidade é a pura possibilidade (de vestir-me ou curar-me) pela qual transcendo essa mesma perna, não havendo, assim, essa dupla sensação. Surge desta forma a perna como coisa e não como possibilidade.

Querendo refletir sobre a natureza do corpo, importa ter isto em conta e não confundir os níveis ontológicos: o corpo deve ser examinado sucessivamente em dois níveis de ser diferentes, enquanto ser-para-si e também ser-para-outrem:

É no seu todo que o para-si deve ser corpo e no seu todo; que ele deve ser consciência: não poderia estar unido a um corpo. De igual modo, o ser-para-outrem é corpo no seu todo: não há aqui “fenómenos psíquicos” a unir ao corpo; nada há atrás do corpo. Mas o corpo é todo ele “psíquico”. (Sartre. 1993, p. 314).128

Sartre apresenta assim estes dois modos de ser do corpo. Mas entendemos que, para além deste corpo como ser-para-si e do corpo como ser-para-outrem há também uma terceira dimensão, que acaba por conglomerar estas duas e que é justamente a que pretendemos

126 «(…) partir des éxperiences que les médecins ont pu faire sur mon corps, c'est partir de mon corps au milieu du monde et tel qu'il est pour autrui. Mon corps tel qu'il est pour moi ne m'apparait pas au milieu

du monde.» (Sartre. 1943, p. 342).

127 «(…) il était beaucoup plus ma proprieté que mon être.» (Sartre. 1943, p. 343).

128 «C'est tout entier que l'être-pour-soi doit être corps et tout entier qu'il doit être conscience: il ne

saurait être uni à un corps. Pareillement l'être-pour-autrui est corps tout entier; il n'y a pas là de "phénomènes psychiques" à unir au corps; il n'y a rien derrière le corps. Mais le corps est tout entier "psychique".» (Sartre. 1943, pp. 314-315).

trabalhar, neste capítulo da espacialidade: o corpo que existe para mim mas que o outro conhece, ou, de outra forma: existo conhecido pelo outro. Afirma Cassiano Reimão acerca desta tríade:

Tripla dimensão ontológica que dá conta, por sua vez, da unidade fenomenológica do corpo próprio que se nos manifesta como não objetivo para si, do papel que desempenha o corpo na relação perceptiva, assim como, em último lugar, dará conta também do papel que o corpo desempenha no âmbito da relação intersubjetiva.

(Reimão. 2005, p. 167).

Sartre sublinha que não existe um em-si e um para-si apartados, eles não são, cada um deles, um todo fechado e desprendido do outro. Não existe o nosso ser no mundo e, por outro, fora deste, uma consciência. O para-si existe na sua relação com o mundo e é o surgimento no mundo do para-si que faz existir, em simultâneo, o mundo como totalidade das coisas e os sentidos com os quais se apresentam as qualidades das coisas, na sua forma objetiva. «O que é fundamental é a minha relação ao mundo, e esta relação define simultaneamente o mundo e os sentidos (…).» (Sartre. 1993, p. 327).129O sentido é, então, o nosso ser-no-mundo no

momento em que o somos sob a forma de ser-no-meio-do-mundo.

Nesta relação que estabeleço com o mundo e que dá sentido quer a esse mundo com o qual me relaciono quer aos meus próprios sentidos, torna-se, pois, impossível demarcar sensação e ação. Daqui surge o grande problema da ação. Sartre analisa este problema com base em dois exemplos: no primeiro, o ato de pegar na caneta e a molhar no tinteiro. No segundo, o momento em que olho Pedro e constato que ele também age. Incorremos aqui no erro de interpretar a ação a partir da ação do outro. Porque nesse momento em que molho a caneta no tinteiro mas vejo Pedro aproximar-se da mesa, a única ação que posso conhecer no exato momento em que decorre é a de Pedro. Posso captar todos os seus gestos e todas as suas posições:

O corpo de outrem aparece-me por conseguinte, aqui, como um instrumento no meio de outros instrumentos. Não só como uma ferramenta para fazer ferramentas, mas também como uma ferramenta para manejar ferramentas, em suma, como uma máquina-ferramenta. (Sartre. 1993, p. 328).130

Captando o outro, capto-o como instrumento e assim, uso-o como instrumento. É este o grande problema da teoria da ação: captar o outro como instrumento e fazer uso dele como

129 «Ce qui est fondamental, c'est mon rapport au monde et ce rapport définit à la fois le monde et le

sens (…).» (Sartre. 1943, p. 359).

130 «Le corps de l'autre m'apparaît donc ici comme un instrument au milieu d'autres instruments. Non

point seulement comme un outil à faire des outils, mais encore comme un outil à manier des outils, en un mot comme une machine-outil.» (Sartre. 1943, p. 360).

tal, com apelos ou ordens, mas tomando precauções perante esta «ferramenta de um manejo particularmente perigoso e delicado»(Sartre. 1993, p. 329).131

O que convém sublinhar é este mundo que, através do ser-Para-si, se desvela na indicação de todas as ações a fazer, sendo que essas ações levam a outras de forma contínua. O mundo é, então, o esboço de todas as ações ou, simplesmente é a possibilidade de realização dessas ações. Sartre sintetiza isto da seguinte forma, tomando emprestada a expressão de Paul Valéry: «O mundo desvela-se como um “côncavo sempre futuro”, porque somos sempre futuros a nós mesmos.» (Sartre. 1993, p. 330).132

A percepção, por seu turno, ainda que só aconteça no lugar onde o objeto é percebido, suprimindo a distância, ela estende essa mesma distância, já que se transcende constantemente: «O corpo não é um écrã entre as coisas e nós (…).»(Sartre. 1993, p. 333).133

A sensação e a ação reúnem-se numa unidade na sua forma de ser-no-mundo.

Este corpo, sendo o transcendido, corresponde ao passado, ainda que toque, levemente o presente: o corpo, tomado aqui na sua dimensão de ser-para-si, assume os mesmos contornos da consciência, fugindo-lhe o presente mas sendo ponto de vista e ponto de partida:

Em cada projeto do para-si, em cada percepção, o corpo é aí, ele é o Passado imediato enquanto ainda aflora o Presente que lhe foge. Tal significa que ele é, simultaneamente, ponto de vista e ponto de partida: um ponto de vista, um ponto de partida que eu sou e que ultrapasso ao mesmo tempo em direção ao que tenho de ser.

(Sartre. 1993, p. 334).134

É esta transcendência perpétua que recupera o para-si, na nadificação constante de não ser o meu corpo na medida em que não sou o que sou. Mas também, a par desta transcendência, o corpo é tido como um obstáculo a superar: um obstáculo que sou para mim mesmo e que tenho de exceder.

Importa referir, ainda, que o corpo não pertence aos objetos que conheço e utilizo no mundo. O corpo é para mim, por não ser apreensível. Ainda assim, ele revela-se à consciência. A consciência do corpo confunde-se com a afetividade original: Sartre exemplifica dizendo que todo o ódio é ódio contra alguém, toda a raiva revela a captação de alguém como odioso ou injusto (Sartre. 1993, p. 338), sendo que afeto e corpo estão intimamente relacionados. Mas

131 «(…) un outil d'un maniement particulièrement dangereux et délicat.» (Sartre. 1943, p. 360).

132 «Le monde se dévoile comme un "creux toujours futur", parce que nous sommes toujours futurs à

nous-mêmes.» (Sartre. 1943, p. 362).

133 «Le corps n'est pas un écran entre les choses et nous (…).» (Sartre. 1943, p. 365).

134 «Dans chaque projet du pour-soi, dans chaque perception, le corps est là, il est le Passé immédiat en

tant qu'il affleure encore au Présent qui le fuit. Cela signifie qu'il est à la fois point de vue et point de départ: un point de vue, un point de départ que je suis et que je dépasse à la fois vers que j'ai à être.» (Sartre. 1943, p. 366).

também a dor, física ou não, ou até a apreensão de um gosto insípido que o autor chama de Náusea, toda essa afetividade sinestésica nos desvela o corpo e a consciência deste.

No documento Ação e Situação (páginas 70-76)