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3.1) Les Mouches (1943)

No documento Ação e Situação (páginas 123-125)

Analisar a obra Les Mouches impõe-nos uma análise paralela do Mito Clássico de Orestes e Electra, que Sartre retoma, usando o ambiente da tragédia dos Átridas com o intuito de sublinhar a liberdade e de acusar quer o Régime de Vichy quer a Alemanha nazi205. Importa

lembrar que esta peça foi encenada pela primeira vez em 1943, no mesmo ano em que publicou O Ser e o Nada, o que nos leva a confirmar a correspondência entre as temáticas patentes em ambas as obras. É de referir que a peça foi posta em cena no Théâtre de la Cité, em plena ocupação de Paris, teatro esse considerado Deutschfreundlich, que acolhia frequentemente, por isso, tropas alemãs. Contudo, importa também lembrar Bariona ou O Jogo da Dor e da Esperança, conto natalício escrito em finais de 1940, quando Sartre era prisioneiro de guerra em Stalag, e posto em cena justamente aí, por si e pelos seus companheiros.206 Durante muito tempo, este texto não se encontrou e Sartre proibiu a sua

publicação e encenação, justificando-o com a pouca qualidade dramatúrgica do texto. No entanto, importa lembrar esta peça, o seu tempo, a mesma resistência ao regime de Vichy. Fala-nos de uma aldeia da Judeia sob ocupação romana. Fala-nos de como o chefe da aldeia, Bariona, se insurge e incita uma resistência singular: deixarem de procriar.207 Ironicamente,

sua mulher está grávida. Mas, na aldeia vizinha, Belém, nasce também um bebé, num presépio. Entre a violência e a proteção, Bariona decide-se pela segunda.208 Esta história

natalícia é, tal como As Moscas, apenas uma analogia à ocupação nazi e à resistência209, em

narrativas que se camuflam por trás da mitologia que lhes empresta rosto. As Moscas será, portanto, a sua segunda primeira peça, uma vez que Bariona foi durante muito tempo renegada. Começou a ser escrita no Verão de 1941.210 No entanto, a obra foi bastante mal

acolhida, com salas vazias e representações interrompidas, devendo-se este fracasso muito menos à produção do que à sua filosofia, com personagens pouco claras para o público parisiense dos anos da guerra.

205 « (…) pour attaquer l’ordre moral, pour refuser les remords dont Vichy et l’Allemagne

essayaient de nous infester, pour parler de a libertá.» (Beauvoir. 1960, p. 510).

206 «En aquella sociedade en miniatura, la parálisis social de Sartre empieza a desvanecer-se. En la

Navidad de 1940, bajo la presión de las circunstancias, se convierte en autor dramático. En seis semanas redacta totalmente la obra, elige a los actores, les hace ensayar e aprenderse el texto, crea la escenografia, fabrica los decorados y los trajes. Despliega estas múltiples actividades a toda velocidade, metiéndose en ellas por completo (…). Muy seguro de sí mismo, anuncia con orgullo el tema: la liberdad y la intriga, un mistério de Navidad.» (Cohen-Solal. 2005, pp. 212, 213).

207 «Nous ne feront plus d’enfants. J’ai dit. (…) Plus d’enfants. Nous n’aurons plus commerce avec nos

femmes. Nous ne voulons plus perpétuer la vie ni prolonguer les souffrances de notre race. Nous n’engendrerons plus, nous consommerons notre vie dans la méditation du mal, de l’injustice et de la souffrance.» (Sartre. 2005, p. 1131).

208 «Comme nous le faisait remarquer le père Feller, le thème principal est celui de la natalité et non de

la nativité, et Sartre rejoint ici, curieusement, la propagande officielle du gouvernement français en faveur des naissances dans les années 1930. On se demande, cependant, comment cette défense de la natalité a pu être perçue par les prisonniers du camp, privés de femmes depuis au moins six mois et destinées pour la plupart au celibato jusqu’à la fin de la guerre.» (Ireland, J. , Rybalka, M. (2005). Bariona, Appendices, Sartre, Théâtre Complet, Gallimard. Paris: 2005, p. 1563).

209 «Quando Bariona diz aos seus: “desejais que os vossos filhos morram como os vossos irmãos e os

vossos pais, entre duas fileiras de arame farpado, com as tripas expostas ao sol?”, pensamos inevitavelmente, se não naquilo que já se sabe nessa altura sobre os campos de concentração, pelo menos, na situação presente, naquele campo específico de prisioneiros.» (Lévy. 2000, p. 390)

210 «Empezó a escribir la obra en la arena de la playa de Porquerolles, en el verano de 1941, y prosiguió

luego en las menos acogedoras mesas de los albergues jurásicos, cuando volvia a Paris en bicicleta.» (Cohen-Solal. 2005, p. 247).

Julgamos estar preparados neste momento para um resumo detalhado da obra As Moscas, recuando à Oresteia de Ésquilo sempre que se apresente necessário estabelecer um paralelismo. Embora sabendo que também Sófocles e Eurípedes trabalharam este mito, parece-nos o mais completo e apropriado, até pela escolha da cidade, Argos, que também Sartre escolheu, ao contrário de Sófocles, que narrou o mito em Micenas, e de Eurípdes, que o circunscreve nos confins da Argólida211. Esta cidade de Argos representa a França sob o

governo de Philippe Pétain, o chefe de estado durante o regime de Vichy que instaura uma ditadura provisória e disfarçada. Este mito é então reescrito, mas com a singularidade de o dotar de pensamento filosófico — tratando-se por isso do que se chama uma pièce à thèse — e de o inserir no momento histórico corrente. Na Introdução Geral da Oresteia, Manuel de Oliveira Pulquério diz-nos:

Lirismo e drama raramente realizam uma simbiose tão perfeita no afrontamento das grandes questões morais e religiosas que se põem ao homem num mundo sempre em crise. Crise que, na visão augusta do Poeta, atinge os próprios deuses, empenhados, também eles, na realização mais perfeita da justiça, porque da justiça essencialmente se trata neste drama de proporções cósmicas. (…) É o direito dos deuses antigos contra o direito dos novos deuses. (Pulquério. 2008, p. 11).

E é tal como nos diz Pulquério: um mundo sempre em crise, onde as questões morais perduram para lá do tempo e das religiões e onde a justiça precisa constantemente de ser realizada. É nesta intemporalidade e neste ambiente de crise valorativa que Sartre vai encontrar espaço para as suas preocupações, numa atualidade disfarçada de clássico.

No documento Ação e Situação (páginas 123-125)