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a) O Mundo que me foge até ao Outro

No documento Ação e Situação (páginas 55-64)

Assim, convém explorar esta espacialidade em que o outro aparece à minha percepção, para que assim este ser do outro possa ser revelado. Sartre expõe-nos a seguinte situação: estou num jardim público onde, não longe do local onde me encontro há um relvado. Ao longo desse relvado bancos e um homem passa diante desses bancos. O cenário está descrito, o espaço é fácil a cada leitor de imaginar. Mas Sartre continua: «Vejo este homem, apreendo-o como um objeto e ao mesmo tempo como um homem. O que significa isto? O que pretendo dizer quando afirmo deste objeto que é um homem?» (Sartre. 1993, p. 266).83 Havíamos já tratado

a objetividade que se opera junto do outro. Mas Sartre aqui afirma algo muito importante: o outro que vejo neste parque não é apenas mais uma categoria, tal como o banco ou o relvado que posso descrever e situar, longe ou perto de determinada árvore, a exercer determinada pressão ou sombra sobre a relva, a esconder parte de uma estátua. Esta figura humana não é apenas mais uma categoria que me ajuda a agrupar espaço-temporalmente as coisas, as situações. Caso não passasse disto, este outro seria um objeto como os demais, que poderia excluir sem abortar a relação dos demais objetos que se encontram naquele jardim, sem os mudar sensivelmente.

Mas por meio deste outro, percebido como homem, inaugura-se uma nova relação:

82 «En un mot, pour qu'autrui soit objet probable et non un rêve d'objet, il faut que son objetité ne

renvoie pas à une solitude originelle et hors de mon atteinte, mais à une liaison fondamentale où autrui se manifeste autrement que par la connaissance que j'en prends.» (Sartre. 1943, p. 292).

83 «Je vois cet homme, je le saisis comme un objet à la fois et comme un homme. Qu'est-ce que cela

O perceber como homem, (…) é captar uma relação não aditiva da cadeira a ele, é registar uma organização sem distância das coisas do meu universo em volta deste objeto privilegiado. É claro que o relvado se mantém a 2,20 metros dele; mas está igualmente ligado a ele, como relvado, numa relação que transcende a distância e simultaneamente a contém. (Sartre. 1993, p. 266).84

Com este outro, que capto como homem ao mesmo tempo que o capto como objeto, a grande diferença entre eles e os demais objetos, meros objetos, é este vínculo. Os termos de distância, homem e mundo, seja ele relvado ou banco, já não são indiferentes ou intermutáveis. A distância estende-se entre eles, a partir desse homem, é ele que torna esta distância uma distância sem partes, porque vinculada. Se o vejo dirigir-se ao relvado, se o vejo aproximar-se dele e fazer já parte desse relvado que vejo, é a partir deste homem que se forma uma relação unívoca, sem partes e sem distância. Esta espacialidade, estabelecida no interior desta relação nova entre o outro e o mundo que se apresenta, não é a minha espacialidade, os objetos não estão agrupados na minha direção, escapa-me a sua orientação. Contudo, percebo que esta relação sem distância e sem partes do outro com o mundo, não é a relação que procuro entre o outro e eu. Primeiramente, porque estou excluído nessa relação que implica apenas o homem e as coisas do mundo. Por outro lado, porque ainda é objeto de conhecimento e análise: o homem aproxima-se do relvado, senta-se ou não no banco, pisa ou não a relva. Por último, esta é uma relação que podemos chamar de provável: é meramente provável que este homem seja um homem mas, ainda assim, é apenas provável que esse homem veja o relvado ou os bancos no momento eu que eu o apreendo. Sem a necessidade de uma deficiência visual, pode simplesmente estar distraído, sem tomar consciência do meio que o envolve.

No entanto, esta nova relação entre o objeto-homem e o objeto-relvado surge-me como um todo, inteira, manifesta-se no mundo como objeto que posso conhecer. Mas, irónica e simultaneamente, continua a ser uma relação que me escapa totalmente, já que o objeto- homem é o termo fundamental desta relação: é por ele que esta relação acontece e é a ele que se dirige. Não posso estar no centro desta relação e compreendê-la. Estabelecendo distâncias entre as coisas, na relação objeto-homem e objeto-relvado, por exemplo, acaba por se tornar uma negação da distância, uma distância que me foge. Esta relação desintegra- se das relações que apreendo entre os objetos do meu universo. É aqui que denomino a aparição desse objeto no meu universo como um objeto-homem, neste elemento de desintegração do meu meio. Sartre conclui este argumento da seguinte forma:

Outrem é, antes de tudo, a fuga permanente das coisas em direção a um termo que eu apreendo como objeto a uma certa distância de mim e que, simultaneamente, me

84 «Le percevoir comme homme (…) c'est enrégistrer une organisation sans distance des choses de mon

univers autour de cet objet privilégié. Certes, la pelouse demeure à 2,20 m de lui; mais elle est aussi liée à lui, comme pelouse, dans une relation qui transcende la distance et la contient à la fois.» (Sartre. 1943, p. 293).

escapa enquanto ele desdobra à sua volta as suas próprias distâncias. (Sartre. 1993, p.

267).85

Embora haja, portanto, uma captação do outro, esta captação desagrega-se através de novas distâncias que, não sendo criadas por mim, me escapam ao entendimento. E é uma desagregação que avança: são relações sem distância que criam a própria distância. A uma distância de mim o outro desdobra as suas distâncias, prolonga-as. Porque não é só a relação entre o outro e a relva que me escapa: se há essa relação entre a relva e o outro, também há, necessariamente, uma relação entre o outro e os bancos desse jardim, entre o outro e a estátua, entre o outro e as árvores, entre o outro e todo um espaço ao seu redor sem relação comigo, mas constituído com o meu espaço, também. É um reagrupamento que vejo mas ao qual não pertenço. Indo mais longe, as próprias qualidades dos objetos se encontram em relação direta com este outro, que assumo como homem. Nesta relação que me escapa, sinto que o próprio mundo me foge também:

Capto a relação do verde a outrem como um laço objetivo, mas não posso captar o verde como ele aparece a outrem. Assim, de repente, apareceu um objeto que me roubou o mundo. Tudo está no seu lugar, tudo existe para mim, mas tudo é percorrido por uma fuga invisível e estática em relação em direção a um objeto novo. O aparecimento de outrem no mundo corresponde então a um deslizamento petrificado de todo o universo, a uma descentração do mundo que mina por baixo a centralização que eu opero ao mesmo tempo. (Sartre. 1993, p. 330).86

As qualidades dos objetos estão em relação direta com este Outro que é um homem, ganhando esses objetos uma nova dimensão, para mim inalcançável, quase um animismo literário, que confere propriedades humanas a coisas inanimadas. Ali, aquele verde da relva é já um verde qualificado, um verde diferente para aquele outro que com ele se relaciona. Podemos dizer que toda a realidade se mantém igual, mas também que ganha, despercebidamente, uma nova dimensão. Esta relação com os objetos que já não a apreendo apenas como minha, trouxe uma nova espacialidade: o Outro descentralizou o mundo em que me movo.

Mas havíamos já dito que o outro é objeto para mim, na medida em que se apresenta a uma realidade que posso captar, pertencendo à distância que me acolhe, ao meu redor, que possui também os seus limites espaciais. Sartre descreve-o a vinte passos de si, a virar-lhe as costas,

85 «Autrui, c'est d'abord la fuite permanente des choses vers un terme que je saisis à la fois comme

objet à une certaine distance de moi, et qui m'échappe en tant qu'il déplié autour de lui ses propres distances.» (Sartre. 1943, p. 294).

86 «Je saisis la rélation du vert à autrui comme un rapport objectif, mais je ne puis saisir le vert comme

il apparaît à autrui. Ainsi tout à coup un objet est apparu qui m'a volé le monde. Tout est en place, tout existe toujours pour moi, mais tout est parcouru par une fuite invisible et figée vers un objet nouveau. L'apparition d'autrui dans le monde correspond donc à une glissement figé de tout l'univers, à une décentration du monde qui mine par en dessous la centralisation que j'opère dans le même temps.» (Sartre. 1943, pp. 294-295).

a dois metros e vinte centímetros do relvado e a seis metros da estátua. É dentro destes limites do universo do outro que o meu universo está desintegrado, é nesse espaço que o mundo parece que é «(…) furado por um orifício de despejamento, no meio do seu ser, e se escoa perpetuamente por este orifício.» (Sartre. 1993, p. 267).87 Através de mim e pelo meio

do meu ser inúmeras novas distâncias me escapam. Não há uma evasão do mundo, tudo está ligado ao objeto, esse objeto renova o mundo para além das minhas distâncias, por isso se fale de desintegração do universo.

No entanto, posso perfeitamente estreitar esta desintegração. Se vejo um homem que caminha e lê, ele representa uma desintegração do universo meramente virtual, uma vez que não excede a distância, não cria novas relações com os objetos ao seu redor. Os seus sentidos não criam um deslizamento do universo até si, não transbordam o seu ser até aos objetos. Sartre conclui que este homem se fechou em si mesmo. Mas, fechando-se em si mesmo, sem se relacionar com a realidade ao seu dispor, sem desintegrar o espaço que é meu, este homem tornou-se um objeto pleno para captar. Ele é aqui um homem que caminha como poderia ser uma pedra que rebola, “homem-lendo” torna-se tão objeto como “chuva-fina”, usando o exemplo do autor. Olhando para este homem o que apreendo é uma Gestalt fechada, uma forma sem possibilidade de perscrutar: «(…) a leitura compõe a qualidade essencial e que, quanto ao resto, cega e surda, se deixa conhecer e perceber como uma pura e simples coisa têmporo-espacial, e dá a impressão de estar com o resto do mundo na pura relação de exterioridade indiferente.» (Sartre. 1993, p. 268).88 Até mesmo a qualidade

homem-lendo, dando-nos uma relação entre o homem que vejo e o livro que ele segura nas mãos, é uma forma maciça, é certo, mas com a possibilidade de o ser apenas na sua aparência. O homem pode simplesmente estar a refletir, sem ler, a lembrar uma qualquer passagem do livro ou da sua própria vida. A única coisa realmente maciça, neste homem, é o seu ser. O seu ser no meio do meu universo. Retomamos, uma vez mais, ao solo em que o outro é objeto.

b) A Objetividade

Percebemos já que o outro, captado por mim, torna-se um objeto do mundo que por ele se deixa definir e encontrar. Torna-se um outro-objeto e define-se no mundo simplesmente como o objeto que vê o que eu vejo, que se move por entre o mesmo mundo que eu capto. Mas nesta situação em que me deparo perante o outro como o sujeito que o apreende, inscreve-se uma outra possibilidade: a permanente possibilidade de eu, sujeito que capta o mundo e o outro, ser também visto por um outro-sujeito, reconduzindo-me a objeto. Dito de

87 « (…) il est percé d'un trou de vidange, au millieu de son être, et qu'il s'écoule perpétuellement par ce

trou.» (Sartre. 1943, p. 295).

88 «(…) la lecture forme la qualité essentielle et qui, pour le reste, aveugle et sourde, se laisse

connaître et percevoir comme une pure et simple chose temporo-spatiale et qui semble avec le reste du monde dans la pure relation d'extériorité indifférente.» (Sartre. 1943, p. 295)

outra forma: se ao olhar o outro lhe extraio as características e atitudes que se apresentam na rua relação com o mundo, tomando-o como um objeto que quero conhecer, não posso negar a facilidade com que, fazendo parte desse mesmo mundo por mim apreendido, estou constantemente perante a possibilidade de, não só ver, como também ser visto. Neste momento o outro que me perscruta — ou que o pode fazer — eleva a sua subjetividade perante mim que, nesse momento em que posso ser visto, me torno objeto enquanto mais uma coisa no mundo a ser apreendida. É certo que esta captação do meu ser se situa no campo da possibilidade mas é nesta possibilidade que eu próprio me revelo: «(…) tal como outrem é para mim-sujeito um objeto provável, não posso de igual modo descobrir-me em vias de me tornar objeto provável senão para um sujeito certo.» (Sartre. 1993, p. 268).89

Aqui compreendemos que, nesta revelação, o meu universo não se torna objeto para um outro-objeto. Enquanto tomo o outro como um objeto provável a mim, encontro-me numa posição de sujeito; mas, descobrir-me tornando-me um objeto provável só pode ser feito tomando o outro como um sujeito certo, convertendo-o e retirando-o da objetividade que possuía enquanto era conhecido por mim, então sujeito. Esclarece Sartre este ponto da seguinte forma: «(…) a minha própria objetividade não poderia decorrer para mim da objetividade do mundo, porquanto, precisamente, eu sou aquele por quem há um mundo; quer dizer, aquele que, por princípio, não poderia ser o objeto para si mesmo.» (Sartre. 1993, p. 268).90 Portanto, esta relação de ser-visto-pelo-outro, é a responsável pela constante

conversão de sujeito em objeto e vice-versa.

Em resumo, aquilo a que se refere minha apreensão de outrem no mundo como sendo provavelmente um homem é a minha possibilidade permanente de ser-visto-por-ele ou seja, a possibilidade permanente de um sujeito que me vê se substituir ao objeto visto por mim. O “ser-visto-por-outrem” é a verdade do “ver-outrem". (Sartre. 1993,

p. 269).91

Percebemos aqui que, para Sartre, o homem se define na sua relação com o mundo e com o outro. Tornando-me objeto perante o sujeito que me apreende, o homem conhece-se: no exato momento em que percebo o olhar do outro, tomo consciência de ser visto. E essa consciência, que é consciência do mundo, consciência irrefletida que me faz perceber a minha existência ao mesmo nível dos objetos do mundo, essa é a consciência que me faz descobrir a mim mesmo. Sartre fala desta consciência como uma hemorragia interna, um escoamento do meu mundo rumo ao outro. O outro é, então, no seu âmago, aquele que me

89 «(…) de même qu'autrui est pour moi-sujet un objet probable, de même je ne puis me découvrir en

train de devenir objet probable que pour un un sujet certain.» (Sartre. 1943, p. 296).

90 «(…) mon objetivité ne saurait elle-même découler pour moi de l'objetivité du monde puisque,

précisément, je suis celui par qu'il y a un monde; c'est-à-dire celui qui, par principe, ne saurait être l'objet pour soi-même.» (Sartre. 1943, p. 296).

91 «En un mot, ce à quoi se réfère mon appréhension d'autrui dans le monde comme étant probablement

un homme, c'est à ma possibilité permanente d'être-vu-par-lui, c'est-à-dire à la possibilité permanente pour un sujet qui me voit de se substituer à l'objet vu par moi. l'"être-vu-par-autrui" est la vérité du "voir-autrui".» (Sartre. 1943, p. 296).

olha. Importa, pois, explicitar aqui toda a fenomenologia sartriana do olhar, uma vez que é ela a base de compreensão da relação de alteridade, e que é esta constante conversão em sujeito e objeto que a torna tão problemática para este autor.

c) O Olhar

Sartre inicia a sua fenomenologia do olhar com o exemplo de um assalto. Vamos tomá-lo emprestado como ponto de partida, para demonstrar que o que realmente declara um olhar é a reunião de dois globos oculares rumo a mim. Os assaltantes, durante a sua ofensiva, tomam como olhar a evitar não dois olhos mas toda a casa e a zona envolvente. Aqui não se pode falar de olhar, é apenas provável que haja alguém a espreitar os assaltantes, mas podemos dizer que esta casa e a zona que a envolve representa o olho como suporte para esse olhar. Mas este olho representativo de probabilidade nunca remete verdadeiramente à presumível testemunha. Não existe então uma convergência de dois pares de globos oculares, mas apenas a manifestação da permanente possibilidade de ser visto por um sujeito que escape à objetividade daquela casa. Sartre transforma este exemplo na seguinte conclusão:

(…) o olhar não é uma qualidade entre outras do objeto que exerce as funções de olho, nem a forma total deste objeto, nem uma relação “mundana” que se estabelece entre este objeto e eu. Muito pelo contrário, em vez de perceber o olhar sobre os objetos que o manifestam, a minha apreensão de um olhar voltado para mim aparece sobre fundo de destruição dos olhos “que me olham”: se eu capto o olhar, deixo de perceber os olhos (…) (Sartre. 1993. pp. 269-270).92

O outro é então, não o olho, ou a possibilidade de ser visto, mas justamente aquele que me olha. E o autor reforça, logo de seguida: «O olhar de outrem esconde os seus olhos, parece ir à frente deles.» (Sartre. 1993, p. 270).93 Percebendo que sou olhado, deixo de perceber os olhos, não podem esses olhos ser já objetos sequer de apreciação, não sei a cor ou o grau de beleza que possuem, sei apenas que me olham: criou-se assim uma distância espacial que podemos chamar de ilusão, esta de que o olhar se adianta aos próprios olhos que veem. Os olhos ganham uma nova distância em relação ao lugar onde me situo, uma vez que sinto o olhar do outro sem qualquer distância em cima de mim mas que, paradoxalmente, me mantém à distância. Percebendo o olhar do outro, a perceção que tenho desses olhos que me olham decompõe-se e passa a um segundo plano. Perceber é olhar; captar o olhar do outro é tomar a consciência de que sou visto. Não posso, ao mesmo tempo, perceber — olhando — e captar o olhar do outro. «O olhar que os olhos manifestam, seja qual for a natureza deles, é

92 «(…) le regard n'est ni une qualité parmi d'autres de l'objet qui fait fonction d'oeil, ni la forme totale

de cet objet, ni un rapport "mondain" qui s'établit entre cet object et moi. Bien au contraire, loin de percevoir le regard sur les objets qui le manifestent, mon appréhension d'un regard tourné vers moi paraît sur fond de destruction des yeux qui "me regardent"; si j'appréhende le regard, je cesse de percevoir les yeux (…).» (Sartre. 1943, p. 297).

puro reenvio a mim mesmo.» (Sartre. 1993, p. 270).94 É neste ponto que a espacialidade

adquire o seu maior significado e uma nova dimensão: o olhar acaba por ser um intermediário entre eu e mim mesmo, mostra a minha exposição assim como a vulnerabilidade constante. Posso ser visto, ocupo um lugar e não lhe posso escapar. O olhar do outro acentua este espaço que ocupo e do qual não posso prescindir. Mas se o olhar é este intermediário entre dois eus que comungam, o que é então e o que ignifica ser visto?

O mais difundido exemplo sobre a questão do olhar n’O Ser e o Nada é o do olhar pelo buraco da fechadura ou encostar o ouvido à porta, a fim de adentrar na divisão contígua, «por ciúme, por interesse, por vício.» (Sartre. 1993, p. 270).95 No momento em que espreito pelo

buraco da fechadura estou sozinho e sem um eu a habitar a minha consciência. Dissemos já que a consciência não é mais que a experiência do momento, não tem outra substância que não a vivência. Mas, por outro lado, ela não é nenhuma dessas coisas de que vai sendo vivência, não é uma realidade tangível, é fuga constante de si mesma. Por isso, nesse momento em que espreito pela fechadura, não há nada na minha consciência para que possa qualificar o que faço. Eu sou os meus atos, sou a consciência pura do que se manifesta. E por trás dessa porta apresenta-se uma cena para ser vista e ouvida. «A porta, a fechadura, são simultaneamente instrumentos e obstáculos: apresentam-se como “a manejar com precaução”; a fechadura dá-se como “a olhar de perto e um pouco de lado”, etc.» (Sartre. 1993, pp. 270-271).96 Assim, a minha consciência não é mais que os meus atos, que esse

espreitar e encostar o ouvido à madeira da porta. A minha atitude não contém em si nenhum “fora”, é o relacionamento entre a porta e a fechadura e a cena a apreender, ou seja: é o relacionamento entre os instrumentos que se apresentam e os fins a alcançar. Não existe uma

No documento Ação e Situação (páginas 55-64)