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CAPÍTULO 1 – CRIME ORGANIZADO

1.6. Tipificação dada pela lei brasileira

1.6.3. A Lei n 10.217, de 11 de abril de 2001

Em 11 de abril de 2001, foi editada a Lei n. 10.217, que alterou a Lei n. 9.034/95. Em seu artigo 1º, foi introduzida a expressão “organizações ou associações de qualquer tipo”169, perturbando ainda mais o significado de “crime organizado”.170 Assim, a nova redação do referido artigo passa a dispor:

Art. 1º. Esta lei define e regula os meios de prova e

procedimentos investigatórios que versem sobre ilícitos decorrentes de ações praticadas por quadrilha ou bando ou organizações ou associações criminosas de qualquer natureza”.

164 O processo acusatório deve ser entendido como aquele em que as funções de acusar, defender e julgar são

distintas, atribuídas a órgãos diversos, permitindo-se, assim, que todo o processo se desenvolva em contraditório pleno e de forma pública. (Ada Pellegrini Grinover, A legislação brasileira em face do crime organizado. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 5, n. 20, out.-dez./1997, p. 59).

165 Em sentido contrário, Sérgio Marcos de Moraes Pitombo: “O próprio juiz, então, realizar a diligência de busca e de apreensão não deve causar estranheza. Com efeito: ‘Quando a própria autorizade policial ou judiciária não a realizar pessoalmente, a busca domiciliar deverá ser precedida da expedição de mandado.’ (art. 241, do Cód. De Proc. Penal). Nunca se divisou inconstitucionalidade em tal norma. A evidência de o Juiz ultimar a apreensão não o torna parcial; na mesma medida em que, ao colher ou produzir prova, só por isso, jamais se fez suspeito. A inquisitividade do juiz penal, de outra sorte, nada tem a ver com a desfunção do denominado modelo acusatório. Não tem mais lugar a confusão entre processo inquisitivo e inquisitoriedade judicial”. (Sérgio Marcos de Moraes Pitombo, Crime organizado, ob. cit.)

166 Ada Pellegrini Grinover, Que juiz inqusidor..., ob. cit.

167 Ada Pellegrini Grinover, Que juiz inqusidor..., ob. cit. Neste artigo, a autora chega a defender a

inconstitucionalidade do artigo em questão, pelos motivos expostos supra.

168 Luiz Carlos Betanho, O cone do silêncio..., ob. cit.

169 Eduardo Araújo da Silva, Crime organizado..., ob. cit., p. 38.

É bastante claro que a nova lei não se mostrou suficiente para solucionar o problema conceitual do crime organizado no direito brasileiro171, vez que permanece silente quanto à definição do fenômeno.172 A nova lei tem, é verdade, o mérito de distinguir, pela maneira como redige seu artigo 1º, os delitos de quadrilha ou bando de associação ou organização criminosa – pois são estes, de fato, institutos diversos173 -; porém determinou que se aplicassem todos os dispositivos da Lei 9.034/05 também aos delitos de quadrilha ou bando, de forma que nivelou o tratamento destes crimes ao dispensado, em princípio, à organização ou associação criminosa.174 Assim, não teve a nova lei o condão de operar uma alteração significativa em relação à problemática inicial da ausência de definição do crime organizado no ordenamento jurídico brasileiro.175 Pelo contrário: verifica-se que a figura da “organização criminosa” e seus “sinônimos” aparecem no ordenamento jurídico sem qualquer critério, não existindo preocupação alguma com a coerência com o disposto na própria Lei n. 9.034/95.176 Conforme afirma Eduardo Araújo da Silva: “desperdiçou-se, em suma, a possibilidade de enfrentar uma das questões mais angustiantes do Direito Penal moderno: conceituar ou ao menos aproximar-se de um conceito de crime

171 Eduardo Araújo da Silva, Crime organizado..., ob. cit., p. 38.

172 De acordo com Rafael Pacheco, um ponto positivo da Lei n. 10.217/01 reside no fato de ter ela substituído

a palavra “crimes” da lei anterior pelo vocábulo “ilícitos”. Dessa forma, pode-se incluir as contravenções penais – como, por exemplo, o “jogo do bicho”, jogo de azar que, sabidamente, configura a primeira modalidade de crime organizado existente em nosso país - no conceito de criminalidade organizada. (Rafael Pacheco, Crime organizado..., ob. cit., p. 50).

173 Conforme assevera Antônio Sérgio Altieri de Moraes Pitombo, “ninguém mais podia negar o fato de a nova redação evidenciar se estar à frente de duas formas de associação criminosa, cada uma com dados elementares diferentes que não se confundiam no juízo de tipicidade penal”. (Antônio Sérgio Altieri de Moraes Pitombo, Organização criminosa..., ob. cit., pp. 112-113).

174 Antonio Scarance Fernandes, O equilíbrio..., ob. cit., p. 242.

175 Em sentido contrário, Luiz Flávio Gomes defende que a edição da Lei n°10.217/01 implicou grande

alteração no tratamento do crime organizado, uma vez que teria acarretado perda de eficácia de quase todo o conteúdo da Lei n° 9.034/95. Sustenta o autor que a Lei 9.034/95 possibilitava uma interpretação através da qual aceitava-se que o legislador havia dado o mínimo necessário de informação para que pudesse ser definido o conceito de “organização criminosa” sem que fosse violado o princípio da legalidade. No entanto, a Lei n° 10.217/01 – que, por ser posterior e tratar do mesmo assunto, derroga a lei n° 9.034/95, não mais permitiria tal interpretação, limitando-se a enunciar o delito, sem fornecer qualquer informação sobre seu conteúdo, – deixando, portanto, o tipo penal completamente aberto. Dessa forma, restaria violado o princípio da legalidade. Note-se, aqui, que, para o referido autor, não seria mais possível uma interpretação que entenda que as regras dos delitos de quadrilha ou bando configurem as características da organização criminosa. A esse respeito, ver: Luiz Flávio Gomes e Raúl Cervini, Crime organizado: enfoques

criminológico, jurídico (Lei 9.034/95) e político-criminal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, pp. 103- 107; e Luiz Flávio Gomes, Crime organizado: o que se entende por isso depois da Lei n° 10.217, de 11.04.2001? – Apontamentos sobre a perda de eficácia de grande parte da Lei n° 9.034/95. Revista Síntese de

Direito Penal e Processual Penal. São Paulo, ano II, n° 11, dez.–jan./2002.

organizado ou de organização criminosa, para delimitar o âmbito de aplicação da Lei n. 9.034/95”177.178 No mesmo sentido, Antônio Sérgio Altieri de Moraes Pitombo: “Outra vez, perdia-se a oportunidade de se tipificar a organização criminosa, aumentando-se, entretanto, o problema da aplicação da Lei 9.034/1995, com o novo texto legal, que disciplinava algo, inexistente no direito penal pátrio, chamado agora de ‘organizações ou associações criminosas de qualquer tipo”.179

Antonio Scarance Fernandes lembra, ainda, que, apesar de sua indefinição, faz-se referência à expressão “organização criminosa” em outros dispositivos desta mesma lei (artigos 4º, 5º e 6º180), e, ainda, em outras leis, nas quais dá azo a graves restrições de direitos individuais – como, por exemplo, na Lei de Execução Penal (Lei 7.210, de 1984), nas hipóteses de cabimento de Regime Disciplinar Diferenciado (art. 52, par. 2º, da referida lei181). Ora, não se pode usar de medidas

177

Eduardo Araújo da Silva, Crime organizado..., ob. cit., pp. 38-39.

178 Eduardo Araújo da Silva sustenta, ainda, que “ao limitar a definição de organização criminosa, o legislador equiparou o tratamento de quadrilhas que praticam pequenos ou médios crimes (furto e receptação de toca-fitas, roubo e receptação de relógios) a grandes organizações que se dedicam ao crime organizado (tráfico ilícito de substâncias entorpecentes e de armas, grandes fraudes fiscais), em frontal contradição com a tendência contemporânea de separar as diversas modalidades de crimes. Por outro lado, esse critério restringiu a aplicação do conceito de crime organizado em relação a determinados casos, nos quais os delitos praticados por pessoas desvinculadas de bandos ou quadrilhas possam configurar-se como ‘crime organizado’, comprometendo assim a punibilidade desses indivíduos”. (Eduardo Araújo da Silva, Crime organizado..., ob. cit., pp. 37 e 38). Por outro lado, Antonio Scarance Fernandes destaca que a redação da lei analisada prejudica também o direito de defesa do imputado:

“Por outro lado, a imprecisão, no tocante à reserva legal, é perigosa para regular o exercício do direito de defesa. Caso se adotasse a orientação de ser a quadrilha ou bando um mínimo, cabendo ao Juiz, em cada processo, verificar a ocorrência do ‘plus’, sem nenhum parâmetro da lei, como saberia a autoridade policial quando agir? Como faria o Ministério Público para acusar por crime organizado? Em que momento o juiz afirmaria a existência de crime organizado?” (Antonio Scarance Fernandes,

Crime organizado e legislação..., ob. cit., pp. 38-39).

179 Antônio Sérgio Altieri de Moraes Pitombo, Organizações criminosas..., ob. cit., p. 100.

180 “Art. 4º Os órgãos da polícia judiciária estruturarão setores e equipes de policiais especializados no combate à ação praticada por organizações criminosas.

Art. 5º A identificação criminal de pessoas envolvidas com a ação praticada por organizações criminosas será realizada independentemente da identificação civil.

Art. 6º Nos crimes praticados em organização criminosa, a pena será reduzida de um a dois terços, quando a colaboração espontânea do agente levar ao esclarecimento de infrações penais e sua autoria”.

181 “Art. 52. A prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave e, quando ocasione subversão da ordem ou disciplina internas, sujeita o preso provisório, ou condenado, sem prejuízo da sanção penal, ao regime disciplinar diferenciado, com as seguintes características:

(...)

§ 2o Estará igualmente sujeito ao regime disciplinar diferenciado o preso provisório ou o condenado sob o

qual recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando”.

excepcionais contra o indivíduo sem que se atenda, primeiro, ao pressuposto da legalidade182.183

Além disso, a edição da nova lei perpetuou ainda outra dúvida já anteriormente existente: ao manter no texto legal a expressão quadrilha ou bando, leva a crer que toda e qualquer ação praticada por esse tipo de associação criminosa será considerada como crime organizado – contrariando, assim, a orientação de que os meios diferenciados de busca de provas deverão ser reservados apenas àquelas condutas consideradas excepcionalmente graves184.185

A nova lei modificou, ainda, o artigo 2º da lei 9.034/95, incluindo nele os incisos IV, V e seu parágrafo único – os quais tratam, respectivamente, de dois novos meios extraordinários de investigação: da captação e interceptação ambiental e da infiltração de agentes policiais, bem como das condições para a autorização judicial para esta última -, sob a justificativa de que “entre as diversas medidas que têm sido adotadas em vários países no combate ao crime organizado, a infiltração controlada e a escuta ambiental vêm se destacando pelos resultados altamente positivos. Numerosas operações internacionais têm sido

182 Para o mesmo autor, a utilização de meios especiais de investigação de provas contra a criminalidade

organizada – bem como de meios de prova extraordinários ou atípicos em geral – apenas pode ser admitida se for expressamente permitida pela legislação, numa clara manifestação do princípio da legalidade. Assim, em tais casos, “a lei deve: a) regular e explicitar claramente a medida excepcional de obtenção ou produção de

prova, com os requisitos necessários para atuá-la; b) indicar o procedimento a ser seguido; e c) especificar os órgãos, entidades ou pessoas legitimadas a requerê-la e a efetivá-la concretamente; d) indicar a autoridade competente para autorizá-la e a motivação necessária na decisão a ser proferida. Em caso de dúvida sobre algum desses aspectos, a interpretação da norma autorizadora da medida excepcional deve ser restritiva, nunca ampliativa”. (Antonio Scarance Fernandes, O equilíbrio... ob. cit., p. 238).

183 Antonio Scarance Fernandes, O equilíbrio..., ob. cit., pp. 242-243.

184 Tal orientação baseia-se no pensamento elaborado por Hassemer, o qual entende que os meios

excepcionais de busca de provas são funcionais e efetivos apenas em relação à criminalidade organizada, não surtindo nenhum efeito em relação à criminalidade comum ou de massa (Winfried Hassemer, Segurança

pública..., ob. cit., p. 55-56). Além disso, encontra suporte no chamado princípio da proporcionalidade, que se fundamenta na busca de um equilíbrio entre valores fundamentais conflitantes (Renata Almeida da Costa,

A sociedade complexa..., ob. cit, p. 139), e de acordo com o qual, grosso modo, medidas que exigem sacrifícios de direitos – como é o caso dos meios excepcionais de busca de provas empregados no combate ao crime organizado – apenas devem ser empregados quando nenhum outro meio menos gravoso é capaz de obter aquele mesmo resultado, sendo aquele resultado absolutamente imprescindível. Além disso, não pode a restrição a direito individual ser admitida sem prévia lei, elaborada por órgão constitucional competente, imposta e interpretada de forma escrita; da mesma forma, a limitação só tem razão de ser se tiver como objetivo efetivar valores relevantes do sistema constitucional. (Antonio Scarance Fernandes, Processo penal

constitucional. São Paulo: Revista dos Tribuinais, 2005, p. 56). Para mais sobre o princípio da proporcionalidade no processo penal, ver: Nicolas Gonzalez-Cuellar Serrano, Proporcionalidad y derechos

fundamentales en el proceso penal. Madri: Colex, 1990.

realizadas com sucesso graças ao uso de informações obtidas por agentes infiltrados e mediante escutas ambientais”.186

No entanto, o que se tem, afinal, são duas leis editadas sobre a matéria “criminalidade organizada”, desprovidas de qualquer tipo de sistematização187, e sem que se tenha, até o momento, conseguido atribuir-lhe uma definição jurídica. Isso porque, segundo Rafael Pacheco, “os legisladores brasileiros, diferentemente de seus pares em outras nações, optaram por não definir seus respectivos alcances, não instituir qualquer parâmetro limitador das expressões contidas no novo texto, tampouco as ações delituosas que pudessem ser objeto dessas leis”.188