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Princípio do contraditório O contraditório diferido no tempo

CAPÍTULO 3 – INFILTRAÇÃO POLICIAL

3.5. A compatibilidade constitucional da infiltração de agentes

3.5.2. Princípio do contraditório O contraditório diferido no tempo

Um dos corolários fundamentais do devido processo legal é o princípio do contraditório, previsto por nossa Constituição da República em seu artigo 5°, inciso LV391. Nas palavras de Aury Lopes Jr, ele pode ser “inicialmente tratado como um método de confrontação da prova e comprovação da verdade, fundando-se não mais sobre um juízo potestativo, mas sobre o conflito, disciplinado e ritualizado, entre partes contrapostas: a acusação (expressão do interesse punitivo do Estado) e a defesa (expressão do interesse do acusado [e da sociedade] em ficar livre de acusações infundadas e imune a penas arbitrárias e desproporcionadas”.392

Note-se que o contraditório não é apenas mais uma qualidade do processo, mas sim requisito essencial ao seu próprio conceito – vale dizer, o controle procedimental da decisão393 -; sendo que apenas o procedimento jurídico regulado de modo a garantir a participação daqueles que sofrerão seus efeitos ao seu final, em simétrica paridade, pode ser chamado de processo.394 Assim, pode-se dizer

389 Rogério Lauria Tucci, Direitos e garantias..., ob. cit., p. 67.

390 Pedro J. Bertolino, El debido proceso penal. La Plata: Platense, 1986, p. 21.

391 “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.”

392 Aury Lopes Jr., Introdução crítica ao Processo Penal (Fundamentos da instrumentalidade constitucional). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 229.

393 Michele Taruffo, La prova dei fatti giuridici – nozioni generali. Milano: Giuffrè, 1992, p. 428. 394 Antonio Magalhães Gomes Filho, Direito à prova..., ob. cit., p. 135.

que ele é “imprescindível para a própria existência da estrutura dialética do processo”.395

A garantia do contraditório configura-se na necessidade de informação e na possibilidade de reação, constituindo-se, nas conhecidas palavras de Joaquim Canuto Mendes de Almeida, a “(...) ciência bilateral dos atos e termos processuais e a possibilidade de contrariá-los”.396 As partes devem ser comunicadas de todos os atos processuais praticados pela parte contrária, e ter a oportunidade de respondê-los, ao longo de todo o procedimento penal – tanto na fase processual quanto na investigatória.397

É importante que se ressalte que o contraditório, no processo penal, deve ser pleno e efetivo, não podendo se limitar à mera possibilidade de reação, como aconteceria no processo civil. Conforme ensina Antonio Scarance Fernandes, deve ser “pleno porque se exige a observância do contraditório durante todo o desenrolar da causa, até seu encerramento. Efetivo porque não é suficiente dar à parte a possibilidade formal de se pronunciar sobre os atos da parte contrária, sendo imprescindível proporcionar-lhe os meios para que tenha condições reais de contrariá- los. Liga-se, aqui, o contraditório ao princípio da paridade de armas, sendo mister, para um contraditório efetivo, estarem as partes munidas de forças similares”.398 No mesmo sentido, sustenta Ada Pellegrini Grinover: “plenitude e efetividade do contraditório indicam a necessidade de se utilizarem todos os meios necessários para evitar que a disparidade de posições no processo possa incidir sobre seu êxito, condicionando-o a uma distribuição desigual de forças. A quem age e a quem se defende em Juízo devem ser asseguradas as mesmas possibilidades de obter a tutela de

395 Aury Lopes Jr., Introdução crítica..., ob. cit., p. 229.

396 Joaquim Canuto Mendes de Almeida, Princípios fundamentais do processo penal. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 1973, p. 82

397 Existe entendimento em contrário – com o qual não concordamos – no sentido de que apenas é necessária

a observância do contraditório, no processo penal, na fase processual, e não na fase investigatória (Inquérito Policial). Antonio Scarance Fernandes, integrante desta corrente doutrinária, sustenta que o artigo 5º, LV, da Constituição da República, ao mencionar o contraditório, apenas exige que ele seja observado em processos judicial ou administrativo, não estando aí abrangido o inquérito policial – o qual configuraria um conjunto de atos prativados por autoridade administrativa, não configuradores de um processo administrativo. (Antonio Scarance Fernandes, Processo Penal..., ob. cit., p. 67). No entanto, acreditamos que, ao assegurar o contraditório também aos “acusados em geral”, o mesmo artigo de lei estendeu a referida garantia aos investigados em sede de Inquérito Policial.

suas razões. Mais ainda: no processo penal, com o seu máximo de publicismo e mínimo de disponibilidade, a reação não pode ser meramente eventual, mas há de fazer-se efetiva. O contraditório, agora, não pode ser simplesmente garantido, mas deve ser estimulado. E a contradição dialógica das partes há de ser real e não apenas formal. O juiz cuidará da efetiva participação das partes no contraditório, utilizando, para tanto, seus amplos poderes, a fim de que não haja desequilíbrios entre os ofícios da acusação e da defesa. Cabe ao juiz penal, portanto, integrar e disciplinar o contraditório, sem que com isso venha a perder sua imparcialidade, que sairá fortalecida, no momento da síntese, pela apreciação do resultado de atividades justapostas e paritárias, desenvolvidas pelas partes”.399

Rogério Lauria Tucci, por fim, salienta a necessidade da existência de um contraditório efetivo, real, para que seja preservada a liberdade jurídica do acusado, lembrando, ainda, que essa contraditoriedade real é indispositiva, indisponível, bem como é indispensável à plenitude de defesa, também para preservar a liberdade jurídica do investigado ou acusado.400 Todos esses dispositivos traduzem a preocupação do legislador com a “assecuração da liberdade jurídica do indivíduo pelo instrumento, técnico e público, do exercício da jurisdição criminal, que é o processo: somente por meio deste, como frisado e repisado, pode ser imposta sanção penal ao indigitado autor de crime ou contravenção”.401

Nas palavras de Antonio Magalhães Gomes Filho: “trata- se, portanto, de garantia fundamental de imparcialidade, legitimidade e correção da prestação jurisdicional: sem que o diálogo entre as partes anteceda ao pronunciamento estatal, a decisão corre o risco de ser unilateral, ilegítima e injusta; poderá ser um ato de autoridade, jamais de verdadeira justiça”.402

399 Ada Pellegrini Grinover, O conteúdo da garantia do contraditório. In: Novas tendências do Direito Processual (de acordo com a Constituição de 1988). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990, p. 18.

400 Neste ponto, Tucci ressalta a indispensabilidade da defesa técnica, ou seja, a necessidade inafastável de

que o acusado seja defendido, no decorrer do processo penal, por advogado, e que essa defesa seja efetiva. A defesa técnica deve ser exercida em conjunto com a auto-defesa, caracterizando assim defesa plena do acusado. (Rogério Lauria Tucci, Direitos e garantias.., ob. cit., pp. 42-46).

401 Rogério Lauria Tucci, Direitos e garantias.., ob. cit., pp. 45-46. 402 Antonio Magalhães Gomes Filho, Direito à prova..., ob. cit., p. 137.

Afirma, ainda, Aury Lopes Jr.: “o contraditório é, essencialmente, o direito de ser informado e de participar no processo. É o conhecimento completo da acusação, o direito de saber o que está acontecendo no processo, de ser comunicado de todos os atos processuais. Como regra, não pode haver segredo (antítese) para a defesa, sob pena de violação ao contraditório”.403

Tão importante é a garantia do contraditório no processo penal que é possível afirmar que ele é uma condição de validade das provas404, ou seja, apenas podem ser consideradas válidas aquelas provas produzidas na presença de contraditório efetivo.

Sabe-se, no entanto, que, no caso da infiltração de agentes – assim como ocorre com diversas outras medidas sigilosas ou cautelares no processo penal -, o contraditório imediato não é possível, sob pena de frustrar os fins da medida – por sua própria natureza sigilosa, não é possível contrapor a atuação do agente infiltrado no momento em que ela se desenrola.

Neste caso, para legitimar a prova obtida por meio desta técnica investigativa sem mitigar as garantias do devido processo legal, recorre-se a um redimensionamento dessas garantias, por meio do chamado contraditório diferido, postergado ou a posteriori – nomes atribuídos ao contraditório diferido no tempo405 - a fim de que – nas palavras de Antonio Magalhães Gomes Filho - “mesmo em condições excepcionais, seja possível assegurar a ‘cognição adequada’, que também integra a noção de ‘devido processo’, através da qual o juiz analisa os pressupostos da medida cautelar [no caso, da infiltração de agentes] com imparcialidade e tendo em conta as possíveis razões dos integrantes do contraditório, ainda que este só possa vir a ser exercido plenamente a posteriori”.406

O mesmo autor traz uma lição interessante sobre a divisibilidade do contraditório, fracionando-o em dois atos (ou elementos ou

403 Aury Lopes Jr., Introdução crítica..., ob. cit., p. 233. 404 Ada Pellegrini Grinover, O conteúdo..., ob. cit., p. 21. 405 Rogério Lauria Tucci, Direitos e garantias..., ob. cit, p. 224.

406 Antonio Magalhães Gomes Filho, Presunção de inocência e prisão cautelar. São Paulo: Saraiva, 1991, p.

momentos), essenciais à sua formação e efetivação: a informação e a reação.407 O

primeiro momento, o da informação, corresponderia à ciência prévia para o exercício das atividades processuais próprias das partes; enquanto o segundo momento – da reação – seria o da possibilidade de participação ativa das mesmas, a fim de influenciar positivamente o espírito do juiz e obter, assim, a tutela preventiva.408 Para Magalhães, este segundo momento – a participação ativa das partes – pode se dar a diversos tempos, tanto preventivamente – quando o contraditório é instalado para debater a possibilidade de realização de determinado ato -, concomitantemente – quando ele se manifesta na própria prática do ato –, ou, ainda, posteriormente - quando consiste em manifestação subseqüente ao ato.409 Sustenta o autor, dessa forma, ser possível “partir” o contraditório em diversos atos, ou momentos de participação, sem quebrar a sua unidade teleológica, uma vez que tais atos estão todos voltados para um mesmo resultado final, que é a sentença.410

Vicente Greco Filho lembra, ainda, a esse respeito, que não há qualquer exigência na Constituição da República de que a efetivação do contraditório seja prévia ou simultânea ao ato realizado. Exige-se, apenas, que a manifestação contrária tenha eficácia prática.411