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CAPÍTULO 3 – INFILTRAÇÃO POLICIAL

3.2. Conceituação e objetivos

3.2.1. As modalidades de infiltração

As infiltrações policiais podem assumir diversas modalidades, a critério do fim que procuram alcançar. Dependendo do grau de envolvimento do agente no meio criminoso e da duração da operação, podem ser divididas em light cover e deep cover.282

As primeiras, infiltrações tidas como mais “leves” e menos arriscadas, caracterizam-se por não durarem mais de seis meses e exigirem um menor grau de experiência, planejamento e supervisão por parte do agente – o qual mantém sua identidade e sua posição na estrutura policial. O objetivo desse tipo de infiltração é, em geral, preciso, resumindo-se a uma única transação ou um só encontro para a obtenção de informações, e não exigem do agente a permanência contínua no meio criminoso283.284

280 Marcelo Batlouni Mendroni, Crime organizado..., ob. cit., p. 54. 281 Rafael Pacheco, Crime organizado..., ob. cit., p. 108.

282

Isabel Oneto, O agente infiltrado..., ob. cit., p. 81.

283 Isabel Oneto, O agente infiltrado..., ob. cit., p. 81.

284 É possível subdividir as operações light cover em seis modalidades, cujas formas e aplicação variam

Já as operações denominadas deep cover revelam-se mais “profundas”, apresentando duração maior e exigindo do agente a total submersão no meio a ser investigado. É nesse tipo de infiltração que os agentes recebem identidades falsas, chegando, inclusive, a cortar os contatos com seu meio social e familiar originário. Esse é o tipo de infiltração mais arriscada para o agente, é o mais propenso a deixar-lhe seqüelas, sejam físicas, sejam psicológicas285.286

3.2.2. A prática de condutas típicas por parte do agente infiltrado e a possibilidade de sua responsabilização penal.

A prática de condutas típicas por parte do policial que se infiltra em organizações criminosas é inevitável. Embora existam entendimentos em contrário287, acreditamos ser de suma importância, para que o infiltrado possa se

papel de vítima em potencial, para que outros policiais possam efetuar a prisão no momento em que o infiltrado for atacado pelo investigado; a pseudo-achat, na qual o policial apresenta-se como comprador dos produtos ilíticos; a pseudo-vente, onde o agente demonstra ser vendedor de tais produtos; o flash-

roll, em que o infiltrado exibe quantias de dinheiro a fim de convencer os vendedores da mercadoria ilícita a “fechar o negócio”; a livraison surveillée, ou entrega vigiada, que consiste em vigiar o transporte, em determinado território, de mercadoria ilícita, retardando-se a interpelação dos investigados a fim de deter os responsáveis por ela; e livraison controlée, semelhante à livraison

surveillée, mas na qual os próprios policiais transportam a mercadoria, responsabilizando-se pela entrega. (Isabel Oneto, O agente infiltrado..., ob. cit., pp. 82-83). Note-se que, no Brasil, a livraison

surveillée, ou entrega vigiada, consiste, na realidade, não uma modalidade de infiltração policial, mas um outro meio de investigação de prova para os crimes relacionados à criminalidade organizada: á a ação controlada, regulada de maneira independente em nosso ordenamento, pelo artigo 2º, inciso II, da Lei n. 9.034/95.

285 Isabel Oneto, O agente infiltrado..., ob. cit., pp. 81-82.

286 Também ressalvando-se diferenças regionais, pode-se dividir as operações deep cover, genericamente,

em: sting operation (na qual um agente, sob falsa identidade, monta uma empresa ou um estabelecimento comercial, alardeando que compra mercadoria ilícita ou roubada, com o objetivo de atrair para ele os investigados), honey-pot operation (em que o infiltrado abre um bar ou outro comércio, com a intenção de o transformar em um centro de encontros da criminalidade organizada), buy-bust oparation (técnica de infiltração na qual o agente, aos poucos, adquire pequenas quantidades de drogas ou outros produtos ilícitos, sem que seu fornecedor seja detido, para assim efetuar sua inserção no meio criminoso; e efetua a prisão do investigado apenas no momento em que efetua a compra de uma quantidade maior de produtos ilegais), e, finalmente, a infiltration de réseaux ou de groupes (operação de infiltração mais ou menos longa de caráter genérico, em que o agente se infiltra no meio criminoso para assim recolher informações e provas sobre a preparação de crimes ou sua consumação). (Isabel Oneto, O agente infiltrado..., ob. cit., pp. 83-84).

287 Rafael Pacheco acredita que não é estritamente necessário que o agente cometa delitos para que possa

permanecer infiltrado em uma organização criminosa. “Levando-se em conta que a maioria das

organizações criminosas está em situação pré-mafiosa, empresarial, torna-se factível integrar-se em sua estrutura sem o cometimento obrigatório de crimes. O cometimento de crime como uma prova de fidelidade,

caracterizar plenamente como membro da organização investigada, que ele participe das atividades por esta desenvolvidas. Caso o policial se recuse a participar das diligências propostas pelos investigados, poderá levantar suspeitas sobre a sua identidade, o que pode vir a ser extremamente arriscado. Assim, para preservar a sua condição de infiltrado – e, conseqüentemente, a própria investigação -, o agente necessariamente precisará, mais cedo ou mais tarde, tomar parte em alguma empreitada delitiva288.289

Essa face da infiltração de agentes – a necessidade do cometimento de delitos para a obtenção de provas que não poderiam, de outro modo, ser conseguidas – tornou-se logo um problema de difícil solução. Como regulamentar a atuação dos agentes estatais que tinham a participação em uma organização criminosa como parte de seu trabalho diário?

A legislação brasileira não traz qualquer disposição relacionada à punibilidade dos crimes cometidos pelo agente policial na condição de infiltrado. A tarefa de achar uma solução para a sua impunidade ficou, então, a cargo da doutrina e da jurisprudência.

Dessa forma, parte da doutrina entende que a melhor solução para a questão está no terreno das excludentes de antijuricidade, classificando a ação dos policiais infiltrados como estrito cumprimento do dever legal.290 O estrito

em regra, são praticadas por organizações criminosas do tipo tradicional, mafiosas ou por aqueles grupos de extrema violência. Portanto, nem sempre será necessário praticar crimes, pois pode o infiltrado atuar em diversos níveis da organização, inclusive em uma de suas faces lícitas, pela qual poderá cumprir seu dever sem a necessidade imperiosa de delinqüir”. (Rafael Pacheco, Crime organizado..., ob. cit., p. 126). Embora essa seja uma posição doutrinária interessante, cremos não ser totalmente condizente com a realidade, uma vez que a necessidade da prática de delitos pelos infiltrados, na maior parte das vezes, não se dá apenas como um “ritual de iniciação” na organização, mas sim como uma rotina diária que deve ser enfrentada.

288

Afima Isabel Oneto: “o agente infiltrado, durante o seu trabalho, depara-se freqüentemente com uma

situação ambígua, uma vez que tem de inserir-se num meio criminoso sem poder adoptar o comportamento delituoso dos seus actores. Aliás, assinala que tal situação nem sempre é realizável, pois é precisamente com a prática de alguns delitos que o agente infiltrado ganha a confiança dos restantes membros do grupo”.

(Isabel Oneto, O agente infiltrado..., ob. cit., p. 81).

289 Note-se que, em alguns casos, notadamente nos Estados Unidos da América, as organizações criminosas

têm se valido exatamente da relutância – legal ou moral – dos agentes infiltrados em cometer crimes para criar “contra-medidas” à infiltração. Em geral, exige-se que o novo membro da organização passe por um “rito de inicialização”, o qual geralmente compreende a prática de um homicídio. (Isabel Oneto, O agente

infiltrado..., ob. cit., p. 96).

cumprimento do dever legal é uma causa de exclusão da ilicitude do delito291 (ou causa de justificação, segundo parte da doutrina292) que compreende os deveres de intervenção do funcionário público na esfera privada para assegurar o cumprimento da lei ou de ordens superiores da administração pública, que podem determinar a realização justificada de tipos legais, como a coação, a privação de liberdade, a violação de domicílio e a lesão corporal.293 A situação justificante de tal causa de exclusão de ilicitude é a existência de lei em sentido amplo (lei, decreto ou regulamento, por exemplo) ou de ordem de superior hierárquico, qualquer das duas hipóteses determinantes de dever vinculantes da conduta do funcionário público.294 No Código Penal Brasileiro, tal instituto encontra-se previsto no artigo 23, inciso III.295

Há forte oposição a esta idéia, no entanto, no sentido de que não se pode conceber um policial que tenha o dever de delinqüir.296 Ainda, outro grave problema da utilização desta excludente para isentar de pena o agente infiltrado é que, por sua natureza, ela se comunica aos co-autores e partícipes do crime297, ou seja, caso aplicada, alcançaria também, necessariamente, os integrantes reais da organização

291 Celso Delmanto, Roberto Delmanto, Roberto Delmanto Junior e Fabio M. de Almeida Delmanto, Código Penal Comentado. São Paulo: Renovar, 2007, p. 91; e Rogério Greco, Curso de Direito Penal – Parte geral,

volume 1. Rio de Janeiro: Impetus, 2007, p. 370; entre outros.

292 Juarez Cirino dos Santos, A moderna teoria do fato punível. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000, p. 187; e

Carlos Enrique Edwards, El arrepentido..., ob. cit., p. 87; entre outros.

293 Juarez Cirino dos Santos, A moderna teoria..., ob. cit., p. 187. 294 Juarez Cirino dos Santos, A moderna teoria..., ob. cit., pp. 187-188. 295 “Art. 23. Não há crime quando o agente pratica o fato:

(...)

III – em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito”.

296 Rafael Pacheco, Crime organizado..., ob. cit., p. 131. Nesse sentido, sustenta José Antônio Pinheiro de

Aranha Filho: “No caso do agente infiltrado, não há como afirmar que o seu ato criminoso, ainda que

necessário para o sucesso da operação, seja uma dessas excludentes de ilicitude; pois os limites fixados tanto pelo art. 2º, inciso V, da Lei 9.034/95, assim como pelo art. 33, inciso I, da Lei 10.409/02 limitam sua açao à infiltração e apuração de infrações penais, jamais em praticar tais ações penais. Não permitem sequer implicitamente que o agente pratique qualquer delito. Por outro lado, a obrigação de agir do agente policial será sempre a de impedir que o cometimento de crimes ou ainda de apurá-los, nos termos propostos pelos respectivos dispositivos de lei, até porque seria um absurdo a lei obrigar o agente policial ao cometimento de crimes”. (José Antônio Pinheiro de Aranha Filho, Implicações..., ob. cit..).

297 Celso Delmanto, Roberto Delmanto, Roberto Delmanto Junior e Fabio M. de Almeida Delmanto, Código Penal..., ob. cit., p. 92.

criminosa que participaram do delito com o infiltrado – os quais acabariam por ser isentados de qualquer responsabilidade penal relacionada àquele ato.298

Outra corrente doutrinária defende a isenção de responsabilidade criminal dos policiais infiltrados com fulcro nas causas supralegais de excludentes de culpabilidade, na modalidade da inexigibilidade de conduta diversa. Considerando-se a teoria tripartite ou tripartida do delito adotada por nosso Código Penal vigente299, se subtraída a culpabilidade dos elementos do delito, este resta descaracterizado. A culpabilidade, por sua vez, tem como pressuposto a possibilidade de exigir-se conduta diversa, conforme a teoria finalista adotada por nosso Código Penal. Logo, se, no caso concreto, não se pode exigir do agente conduta diversa da praticada, então não há que se falar em culpabilidade; o que torna a sua conduta impunível. Nesse sentido, sustenta Francisco de Assis Toledo: “A inexigibilidade de outra conduta é, pois, a primeira e mais importante causa de exclusão da culpabilidade. E constitui verdadeiro princípio de direito penal”.300

Essa idéia se justifica uma vez que, caso o infiltrado decida não participar da empreitada criminosa, pode acabar por comprometer a finalidade da infiltração ou mesmo colocar em risco a própria vida – ou seja, não haveria, para ele, outra alternativa senão a prática do delito.301

Uma terceira corrente doutrinária defende a atipicidade da ação do agente infiltrado, por total ausência de dolo – elemento constitutivo do tipo302 - , uma vez que o policial, ao agir, não tem a intenção de praticar o crime, apenas

298 Carlos Enrique Edwards, El arrepentido..., ob. cit., p. 89.

299 A doutrina atualmente majoritária no Brasil – e adotada por nosso Código Penal vigente - entende crime

como sendo um fato típico, antijurídico e culpável. É a chamada teoria tripartida ou tripartite do conceito de crime, segundo a qual, para que se entenda uma determinada conduta como crime, é necessário que se verifiquem, no caso concreto, a existência da tipicidade, da antijuridicidade e da culpabilidade. (Guilherme de Souza Nucci, Código penal comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 118).

300 Francisco de Assis Toledo, Princípios básicos de direito penal. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 328. 301 Rafael Pacheco, Crime organizado..., ob. cit., p. 132.

302 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal – Parte geral – tomoI. São Paulo: Revista dos

pretende auxiliar a investigação e a obtenção de provas a respeito para eventual persecução penal dos integrantes da organização criminosa.303

Por fim, tem-se a última – e maior - parcela da doutrina, que defende a escusa absolutória como forma de não responsabilização das condutas típicas praticadas pelos agentes infiltrados, como opção de política criminal.304 Esta é a opção preferida pela maior parte das legislações que adota a infiltração como técnica de investigação.305

A escusa absolutória é uma causa pessoal de exclusão da aplicação da pena, por questões de política criminal, tendo um caráter eminentemente individual. Reconhece-se que, embora o ato praticado pelo agente infiltrado seja típico, antijurídico e culpável, não lhe será aplicada a pena por uma questão de política criminal, a qual é a própria essência da utilização da infiltração de agentes como meio de investigação de provas. Note-se que, sendo a escusa absolutória, como visto, uma causa pessoal e individual de exclusão de pena, a mesma não se estende aos integrantes reais da organização criminosa que tenham participado do delito juntamente com o infiltrado, os quais receberão a pena correspondente à sua participação criminosa.306

No entanto, seja qual for a justificativa jurídica empregada para isentar o agente infiltrado de punição, há que se considerar que não ele não pode ser autorizado a cometer qualquer tipo de infração penal. Devem existir limites claros à sua atuação delitiva, tanto devido à moralidade do instituto – o qual, afinal, representa o Estado – quanto - e principalmente - para garantir a segurança dos bens jurídicos tutelados pela legislação penal.

303 Rafael Pacheco, Crime organizado..., ob. cit., p. 133. 304 Rafael Pacheco, Crime organizado..., ob. cit., p. 133.

305 A esse respeito, ver o Capítulo 4 deste trabalho (Direito Comparado).

306 Carlos Enrique Edwards, El arrepentido..., ob. cit., p. 88. Existem, contudo, críticas a esta solução

encontrada pela doutrina, no sentido de que “a impunidade do agente policial não pode cingir-se apenas a

uma razão de política criminal, sob pena de seu ato criminoso caracterizar-se como um ‘nada’ jurídico, dando espaço à arbitrariedade”. José Antônio Pinheiro Aranha Filho, Implicações..., ob. cit..)