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Presunção de inocência Vedação da produção de prova contra si mesmo

CAPÍTULO 3 – INFILTRAÇÃO POLICIAL

3.5. A compatibilidade constitucional da infiltração de agentes

3.5.5. Presunção de inocência Vedação da produção de prova contra si mesmo

A presunção de inocência450 do imputado – até prova em contrário decretada pela sentença definitiva de condenação451 -, no ordenamento jurídico brasileiro, está expressamente consagrada no artigo 5º, LVII, de nossa Constituição da República452. Ela é, nos dizeres de Luigi Ferrajoli, um princípio fundamental de civilidade, o qual representa o fruto de uma opção garantista a favor da tutela da imunidade dos inocentes, ainda que ao custo da impunidade de algum

449 Maurício Zanóide de Moraes, Publicidade..., ob. cit., p. 46.

450 Também conhecida como “princípio da não-culpabilidade”. (Alberto M. Binder, Introdução ao Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 85).

451 Luigi Ferrajoli, Direito e razão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 505.

452 “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Note-se que a presunção de inocência também foi reconhecida pelas mais importantes declarações supranacionais relativas aos direitos humanos, a saber: a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (art. 9º); a Declaração Universal dos Direitos do Homem; e o Pacto de San José da Costa Rica (Convenção Americana sobre os Direitos Humanos (art. 8º). (Alberto M. Binder, Introdução..., ob. cit., pp. 85-86).

culpado.453 Isso porque, ainda segundo o autor, os direitos dos cidadãos são ameaçados não só pelos delitos, mas também pelas penas arbitrárias, configurando-se assim então a presunção de inocência uma garantia tanto de liberdade e verdade quanto de segurança e defesa social.454

O fundamento da presunção de inocência reside no fato de que – nas palavras de Cesare Beccaria - um homem não pode ser considerado culpado antes da sentença proferida pelo Juiz; assim como a sociedade apenas pode lhe retirar a proteção pública após ter sido decidido que ele violou as condições pelas quais esta proteção lhe foi concedida.455 Conforme sustenta Alberto M. Binder, “ninguém pode ser considerado culpado se uma sentença, obtida em um julgamento (com as características que mencionamos e que formam a estrutura constitucional do julgamento), que o declare como tal. Por imposição constitucional, então, toda pessoa é inocente, e assim deve ser tratada, enquanto não for declarada sua culpa em uma sentença judicial”.456

Processualmente, a presunção de inocência se manifesta mais diretamente no campo probatório, impondo à acusação a prova completa da culpabilidade do fato, e impondo-se, a contrario sensu, a absolvição do imputado se a culpabilidade não restar suficientemente demonstrada.457

Sendo a atividade probatória tarefa da acusação458, a partir do momento em que o imputado é presumidamente inocente, não lhe é incumbido provar nada.459 Pelo contrário: tem o acusado o direito de não produzir qualquer prova que possa incriminá-lo - é o chamado princípio nemo tenetur se detegere – também conhecido como nemo tenetur se ipsum accusare460 -, de acordo com o qual reconhece-

se ao acusado “un vero e proprio diritto a non collaborare com l’autorirà

453 Luigi Ferrajoli, Direito e razão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 506. 454 Luigi Ferrajoli, Direito..., ob. cit., p. 506.

455 Cesare Beccaria, Dos delitos e das penas. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 35. 456 Alberto M. Binder, Introdução..., ob. cit., p. 85.

457 Aury Lopes Jr., Introdução crítica..., ob. cit., p. 188. 458 Aury Lopes Jr., Introdução crítica..., ob. cit., p. 188. 459 Aury Lopes Jr., Introdução crítica..., ob. cit., p. 189.

guidiziaria”461, e segundo o qual “o sujeito passivo não pode sofrer nenhum prejuízo

jurídico por omitir-se de colaborar em uma atividade probatória da acusação ou por exercer seu direito de silêncio quando do interrogatório”.462 Salienta Alberto M. Binder que, se o acusado não é culpado enquanto não for provada sua culpabilidade por meio de sentença, tampouco poderá ser tratado como culpado, o que implica que “não poderá ser restringido o seu direito de defesa e que não poderá ser obrigado a depor contra si mesmo”.463

O princípio nemo tenetur se detegere é, de acordo com Aury Lopes Jr., a “primeira máxima do garantismo processual acusatório”464, e traz, como corolários, i) a proibição da tortura; ii) o direito do acusado de permanecer em silêncio e de faltar com a verdade em suas respostas; iii) a proibição da obtenção da confissão mediante violência ou manipulação (tanto física quanto psíquica); iv) a negação do papel decisivo das confissões; e v) o direito do investigado de ser assistido por defensor no interrogatório.465

Assim, como decorrência do princípio nemo tenetur se detegere, não pode o sujeito passivo ser compelido a declarar a verdade, uma vez que, conforme anota Alberto M. Binder, “caso declare a verdade ou oculte informação, não estará fazendo outra coisa que exercer seu direito à própria defesa e de nenhuma maneira descumprindo um dever como o que têm as testemunhas em relação ao depoimento. Isto significa que é o acusado que tem o domínio e o poder de decisão sobre seu próprio depoimento. Conseqüentemente, somente ele determinará o que quer

461 Vittorio Grevi, Nemo tenetur se detegere – interrogatorio dell’imputato e diritto al silenzio nel processo penale italiano. Milano: Giuffrè, 1972, p. 54.

462 Aury Lopes Jr., Introdução crítica..., ob. cit., p. 242. Também merece destaque a definição formulada por

Enrique Bacigalupo, segundo a qual o princípio do nemo tenetur se detegere (ou nemo tenetur se ipsum

accusare, nas palavras do autor) corresponde a “um derecho del inculpado o imputado que se concreta como

derecho a negar toda colaboración con la acusación, sin sufrir como consecuencia de ello ninguna consecuencia negativa, derivado del respeto a la dignidad de la persona, que constituye una parte esencial del proceso de um Estado de Derecho. (...) Más aún, el Estado es garante de que el sospechoso no se incrimine contra su voluntad, pues el Derecho vigente impone a las autoridades de persecución del delito el deber de instruir a cualquier persona que es interrogada como posible autor de un delito sobre los derechos que tiene reconocidos, especialmente sobre el derecho a guardar silencio y a no declararse culpabile”.

(Enrique Bacigalupo, El debido..., ob. cit., p. 69).

463 Alberto M. Binder, Introdução..., ob. cit., p. 90. 464 Aury Lopes Jr., Introdução crítica..., ob. cit., p. 243. 465 Aury Lopes Jr., Introdução crítica..., ob. cit., p. 243.

ou o que interessa declarar”.466 Não pode, tampouco, ser obrigado a participar de

qualquer atividade que possa incriminá-lo ou prejudicar sua defesa; ou ser interrogado sem a presença de seu defensor. E, por fim - mas não menos importante -, a obtenção da confissão do investigado – ou de qualquer informação que possa prejudicá-lo - não pode se dar por meio da manipulação ou do emprego de meios enganosos.

No entanto, sabe-se que um dos objetivos do agente infiltrado, enquanto oculto no seio da organização criminosa, é ganhar a confiança dos seus membros, a fim de que estes lhe revelem suas atuações, planos e delitos realizados, bem como confidenciem o modus operandi da organização e forneçam informações acerca dos seus demais integrantes. Essas revelações feitas pelos investigados ao agente – as quais, via de regra, mostram-se auto-incriminatórias -, no entanto, são claramente obtidas por meios enganosos, uma vez que o infiltrado mantém os investigados em erro em relação à sua identidade e qualificação.

Além disso, há que se considerar que a própria Constituição da República brasileira garante ao acusado o direito ao silêncio, previsto em seu artigo 5º, LXIII.467 Esta proteção constitucional se reflete, na lei ordinária, no artigo 186 do Código de Processo Penal468, que prevê o direito do réu de permanecer calado durante seu interrogatório. Pode-se afirmar, assim, que “o direito ao silêncio é apenas uma manifestação de uma garantia muito maior, insculpida no princípio nemo tenetur se deterge”.469Note-se que este direito é resguardado não apenas no ordenamento jurídico brasileiro, mas também nas mais importantes declarações supranacionais de direitos civis políticos e humanos: o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de

466 Alberto M. Binder, Introdução..., ob. cit., p. 135.

467 “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”.

468 “Art. 186. Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas.

Parágrafo único. O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa.”

Nova Iorque – ratificado pelo Brasil em 06 de julho de 1992 (Decreto n. 592) - expressa, em seu artigo 14,3, g, que “toda a pessoa à qual é imputada a prática de infração penal tem o direito de não ser obrigada a depois contra si mesma, nem confessar-se culpada”; e a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) – ratificado pelo Brasil em 06 de novembro de 1992 (Decreto n. 678) - prevê, no mesmo sentido, em seu artivo 8º, 2, g, que o imputado tem o “direito de não ser obrigado a depor contra si mesmo, nem a declarar-se culpado”.470

Assim sendo, vê-se que a opção do imputado de permanecer calado ao ser interrogado - tanto em sede de inquérito policial quanto em juízo – é um direito seu, reflexo do princípio nemo tenetur se detegere e expressão inafastável de sua auto-defesa, que não pode lhe ser subtraída em nenhuma hipótese. Conforme sustenta Rogério Lauria Tucci, “essa opção concedida ao preso, ou indiciado, logo no início da persecução penal, representa, outrossim, por um lado, a preambular conformação da autodefesa, com ou sem a integração da defesa técnica; e, por outro lado, o reconhecimento de que aquela resulta do exercício de um direito constitucionalmente estabelecido, encartado no de ampla defesa e particularizado no contraditório”.471

No entanto, ao “arrancar” do investigado informações confidenciais – e possivelmente auto-incriminatórias - mediante meios enganosos, fazendo parecer tratar-se de uma simples conversa entre colegas, o agente infiltrado não dá ao investigado ou ao réu a oportunidade - prevista constitucionalmente - de permanecer em silêncio, e de calar qualquer informação que possa vir a prejudicá-lo. Pelo contrário: o investigado não sabe que está conversando com um policial e que suas declarações podem ser usadas como prova contra ele em um eventual procedimento penal. Subtrai-se do imputado, assim, qualquer possibilidade de exercer sua auto- defesa.

470 Rogério Lauria Tucci, Direitos e garantias..., ob. cit., p. 366. É importante destacar, ainda, que integra

também a garantia do nemo tenetur se detegere o direito do acusado de não contribuir, de nenhum modo, para a atividade probatória levada a cabo pelos órgãos de investigação, sem que isso configure crime de desobediência (Antonio Scarance Fernandes, Processo Penal..., ob. cit., p. 292). Nesse sentido, “o acusado

não pode ser compelido a declarar nem a participar de qualquer atividade que possa porventura incriminá- lo ou prejudicar sua defesa”. (Marta Saad, O direito de defesa..., ob. cit., p. 301).

Nesse sentido, ressaltam Manuel Monteiro Guedes Valente, Manuel João Alves e Fernando Gonçalves: “o recurso à figura do agente infiltrado consubstancia, intrinsecamente e em si mesma, uma técnica de investigação de moral duvidosa, uma vez que é o próprio suspeito que, actuando em erro sobre a qualidade do funcionário de investigação criminal, produz, involuntariamente, a prova de sua própria condenação”.472

Tendo em consideração, assim, a limitação do princípio do nemo tenetur se detegere473, bem como da auto-defesa, do direito ao silêncio e da presunção de inocência do acusado nos casos em que atuam agentes infiltrados, passa- se a uma questão de difícil solução: é possível introduzir no processo penal as declarações auto-incriminadoras feitas ao agente infiltrado, sem que o declarante tivesse conhecimento de sua identidade e condição?474

Note-se, em tempo, que não se pode aceitar que se excepcione a presunção de inocência para os casos de crimes ligados às organizações criminosas apenas devido à gravidade de tais crimes, justificando-se dessa maneira a introdução das declarações auto-incriminadoras feitas pelos investigados como provas no processo penal. Conforme ressalta Adauto Suannes, por aplicação do princípio constitucional da isonomia, não podem existir pessoas que sejam “mais presumidas” inocentes e outras “menos presumidas” inocentes – todos os indivíduos são presumidos igualmente inocentes, qualquer que seja o fato a eles atribuído.475 Assim sendo: “nada justifica que alguém, simplesmente pela hediondez do fato que se lhe imputa, deixe de merecer o tratamento que sua dignidade de pessoa humana exige. Nem mesmo sua condenação definitiva o excluirá do rol dos seres humanos, ainda que em termos práticos isso nem sempre se mostre assim. Qualquer distinção, portanto, que se pretenda fazer em razão da natureza do crime imputado a alguém inecente contraria o princípio da isonomia, pois a Constituição Federal não distingue entre mais-inocente e menos-inocente. O que deve contar não é o interesse da sociedade, que tem na

472 Manuel Monteiro Guedes Valente, Manuel João Alves e Fernando Gonçalves, O novo regime jurídico do agente infiltrado. Coimbra: Almedina, 2001, p. 27.

473 Enrique Bacigalupo, El debido..., ob. cit., p. 71.

474 Claudia B. Moscato de Santamaría, El agente encubierto..., ob. cit., p. 74.

475 Adauto Suannes, Os fundamentos éticos do devido processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais,

Constituição Federal, que prioriza o ser humano, o devido tratamento, mas o respeito à dignidade do ser humano, qualquer que seja o crime que lhe é imputado”.476