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CAPÍTULO 3 – INFILTRAÇÃO POLICIAL

3.4. Agente infiltrado e agente provocador

O agente infiltrado, enquanto imerso na organização criminosa, deve limitar-se à mera observação das atividades desta, participando, quando necessário, de atividades delituosas que já se encontravam em curso quando de sua chegada; ou, ao máximo, de condutas típicas sugeridas e elaboradas inteiramente pelos reais membros da organização. A idéia das atividades delituosas deve sempre partir dos investigados, e jamais do investigador; ou, em outras palavras, “a interferência do agente não pode ser essencial nem determinar a prática do crime”.359

Caso, porventura, o agente extrapole os limites de sua função, vindo a influir decisivamente no comportamento dos investigados, e alterando- lhes a predisposição acerca do cometimento de crimes360, passa-se a encarar a conduta do policial não mais sob a perspectiva de agente infiltrado, mas, sim, de agente provocador.

358 Rodrigo Carneiro Gomes, O crime organizado..., ob. cit., p. 203. 359

Isabel Oneto, O agente infitlrado..., ob. cit., p. 27.

360 Isabel Oneto considera que “a actuação de um agente encoberto ultrapassa os limites do admissível quando alguém está de tal forma em seu poder que não pode deixar de se vergar à sua vontade”. (Isabel Oneto, O agente infitlrado..., ob. cit., p. 98).

O agente provocador é aquele que “induce a outro a cometer un delito, o contribuye a su ejecución com actos de autoria o de auxílio, lo que lleva a cabo sin intención de lesionar ni poner em peligro el bien jurídico afectado ni lograr satisfacer ningún interes personal, sino simplemente por el hecho de lograr que el provocado pueda ser sancionado por su conducta”.361Sua atuação é indesejada, pois vicia a manifestação da vontade do agente, de forma a induzi-lo à prática de um ato.362 Conforme ensina Rogério Lauria Tucci, “resta, então, desvirtuada a atuação delitiva desenvolvida pelo infrator, nos seus aspectos fundamentais, consubstanciados na espontaneidade do querer, na exclusividade da ação criminosa e na autenticidade do fato tido como típico pela legislação penal material”363. Ainda, lembram Manuel Monteiro Guedes Valente, Manuel João Alves e Fernando Gonçalves: “caso o agente infiltrado passe a provocador, actua contrariamente aos princípios e às normas próprias de um Estado de direito democrático e inerentes a um processo penal de estrutura acusatória temperado pelo princípio da investigação”.364

Carlos Enrique Edwards assim diferencia o agente infiltrado do provocador: “mientras el agente provocador es quien instiga a outro a cometer un determinado delito, el agente encubierto es quien se infiltra en uma organización para obtener información, no instigando a la comisión de ningún tipo de delito. Em el primer caso, hay uma actitud activa por parte del provocador que incita a cometer el delito; mientras que en el supuesto del agente encubierto, su postura es pasiva, recepcionando información. Aqui radica justamente el limite que separa el empleo de una técnica investigativa eficaz, como el agente encubierto, de la utilización

361 Mario Daniel Montoya, Informantes..., ob. cit., p. 41. Prossegue o autor: “La actuación del agente provocador se caracteriza por la estructura contradictoria en que se desarrolla su conducta: por uma parte quiere el castigo del delincuente a través de un hecho que com su conduta provoca, pero no desea la lesión del bién jurídico al que va dirigida la acción del provocado. Punto éste que diferencia su actuación de cualquier outro que pudiera participar en el delito a fin de producir su lógica consecuencia. Debemos admitir que em muchos casos el agente provocador solo logra que el autor de um proceder ilícito resulte condenado, lesionando el bién jurídico que la leye protege”. (Mario Daniel Montoya, Informantes..., ob. cit., p. 41).

362 Roberto Delmanto Junior, As modalidades..., ob. cit., p. 109.

363 Rogério Lauria Tucci, Persecução penal, prisão e liberdade. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 228.

364 Manuel Monteiro Guedes Valente, Manuel João Alves e Fernando Gonçalves, O novo regime jurídico..., ob. cit., p. 32.

por parte del Estado de medios delictivos, como la isntigación a cometer un delicto, para la posterior detención del instigado”.365

Note-se que a indução da prática do crime pelo policial torna impossível a efetivação de qualquer tipo de prisão referente a este delito. Isso porque, conforme o entendimento adotado por nossa doutrina e jurisprudência, a interferência do agente provocador na auto-determinação do investigado torna o crime impossível, uma vez que este não se consumaria não fosse a intervenção do agente estatal. De fato, em tais circunstâncias, “a consumação do delito é impossível, tendo-se em vista o fato de não restar ameaçado ou efetivamente ofendido qualquer bem juridicamente tutelado, sem prejuízo de se questionar também o dolo, posto que a vontade do aludido infrator, ou seja, o elemento subjetivo de sua conduta, foi desvirtuada”366.

Nelson Hungria assim qualifica o ato do investigado eivado de influências por parte do agente policial: “Um crime que, além de astuciosamente sugerido e ensejado ao agente, tem suas conseqüências frustradas por medidas tomadas de antemão, não passa de um crime imaginário. Não há lesão, nem efetiva exposição a perigo, de qualquer interesse público ou privado”367 (destaque acrescentado).

Assim, o tipo de prisão em flagrante realizada sob essas circunstâncias – quando o crime apenas se consumou devido à ingerência do agente provocador – recebe o nome de flagrante provocado, o qual é descrito por Rogério Lauria Tucci como “o estado de flagrância delitiva forjado, provocado, forçado, em que se cogita de antepor, propositadamente, um fato orientador da conduta do criminoso. Daí por que esta, ao invés de desenrolar-se espontaneamente, é dirigida à efetuação de determinada infração penal”368. Nelson Hungria, por sua vez, define o flagrante preparado como a hipótese verificada “quando alguém insidiosamente provoca outrem à prática de um crime e, simultaneamente, toma as providências

365 Carlos Enrique Edwards, El arrepentido..., ob. cit., p. 57. 366 Roberto Delmanto Junior, As modalidades..., ob. cit., p. 111.

367 Nelson Hungria, Comentários ao Código Penal, v. 1, t. 2. Rio de Janeiro: Forense, 1955, p. 105. 368 Rogério Lauria Tucci, Persecução penal..., ob. cit., p. 228.

necessárias para surpreendê-lo na flagrância da execução, que fica, assim, impossibilitada ou frustra”369

Tal entendimento foi adotado pelo Superior Tribunal de Justiça, como se vê da leitura do verbete da Súmula 145:

“Não há crime quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação”.

Dessa forma, fica claro que, nas hipóteses em que o delito apenas é cometido em decorrência da incitação do policial, não é possível a prisão do imputado pura e simplesmente porque não há crime, uma vez que a consumação do delito é impossível.370

Esta idéia encontra respaldo, também, na maior parte dos ordenamentos jurídicos estrangeiros. Na Espanha, na década de 1970, surgiu uma corrente jurisprudencial que defendia a punibilidade da provocação policial. De acordo com essa corrente – que encontrou respaldo também em Portugal e em diversos doutrinadores ao redor do mundo-, o agente policial que provocasse um delito seria punido a menos que sua interferência não se mostrasse essencial para o cometimento do delito por parte do investigado; ou seja, não determinasse sua ocorrência, apenas o desvendasse.371 Essa tese se baseia na existência de, ao menos, dolo eventual por parte do agente provocador, o qual, de mais a mais, atua como instigador do delito372.373

369 Nelson Hungria, Comentários..., ob. cit., p. 103. 370

Nesse sentido, Tales Castelo Branco: “não haverá crime a punir. A ação ardilosa, visando

surpreender alguém em flagrante e sujeitá-lo à punição, é que introduziu, desonestamente, o agente ao cometimento do crime, não se justificando a lavratura do auto de prisão em flagrante, nem muito menos a sua manutenção” (Tales Castelo Branco, Da prisão em flagrante. São Paulo: Saraiva, 2001, pp. 190-191).

371 Isabel Oneto, O agente infitlrado..., ob. cit., p. 27. 372 Isabel Oneto, O agente infitlrado..., ob. cit., p. 36.

373 Em sentido contrário a esta tese, Sebastián Soler defende que a intenção do agente provocador “no tiende a la producción de um hecho, sino el descubrimiento de um sujeto como punible”. Assim, “es posible que la

intencion del instigador no vaya más allá del comienzo de ejecución, es decir, que el instigador, em realidad, provoque la tentativa sin tener el ánimo de que el hecho se consume. Es el caso del llamado agente provocador, cuyo propósito no tiende a la produción de um hecho, sino el descubrimiento de un sujeto como punible. Es evidente que allí falta la convergência intencional, a que nos hemos referido, como característica real y no fingida de la participación. El agente provocador no responderá como instigador, si el delito no se consuma, por falta de elemento subjetivo punible: así como no hay tentativa de instigación – dice Lisz- Schimidt – así tampoco hay instigación a tentativa. Si el hecho llega a consumarse, para determinar la punibilidad del agente provocador, deverán aplicarse los princípios del dolo eventual, a fin de decidir si

Os Estados Unidos da América, por sua vez, operaram uma verdadeira revolução na problemática da provocação ao crime. O país criou, no início do século XX, a chamada entrapment defense, mecanismo de proteção ao acusado elaborado com o fim de garantir os direitos dos cidadãos face aos excessos dos agentes infiltrados374. Tal mecanismo tem a função de precisar em quais circunstâncias o provocado deve ficar isento de pena por ter atuado sob a provocação de um agente estatal375 e, em sua acepção mais comum, se configura na análise da intervenção dos agentes policiais, cujos efeitos no investigado são averiguados em função do seu impacto hipotético sobre o homem médio respeitador da lei (“normally law-abiding person”).376