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A modernidade e o surgimento da prisão como pena

C

om a queDa de Constantinopla, surgiu a Idade Moderna. Essa nova era caracterizou-

-se pelo surgimento dos chamados Estados Nacionais Modernos e pelos descobri- mentos, com a consequente expansão colonial.

Nessa era também houve inúmeras guerras religiosas, fome e miséria. Como resul- tado de tais catástrofes, a pobreza se generalizou, fazendo com que a delinquência se alastrasse pela Europa.

Diante disso, iniciou-se um grande movimento de criação e construção de estabe- lecimentos para abrigar os condenados por delitos menores. Surgiram, enfim, as casas de correção, edificações destinadas a recolher mendigos, vadios, prostitutas e jovens rebeldes de todas as origens, que povoavam as principais cidades do Velho Continente.

As primeiras casas de correção surgiram no século XVI, na Inglaterra e na Holanda. A mais antiga delas foi a House of correction de Bridwell, em Londres (1552), criada com o objetivo de corrigir pobres infratores que, estando aptos para o trabalho, se mostrassem recalcitrantes para tanto. O sustento desses indivíduos era feito por meio da cobrança de um imposto conforme os estatutos de sua fundação. Esta experiência foi reproduzida em outras cidades inglesas, onde eram internadas as pessoas oriundas da escala mais débil do mundo da criminalidade, submetendo-as ao tratamento de reforma.23

No início do século XVII, uma lei inglesa passou a impor multa de cinco libras ao juiz que não houvesse instalado uma casa de correção dentro de sua jurisdição, fato este que, agregado à expansão têxtil – a principal atividade desenvolvida nas Bridwells –, impulsionou seu desenvolvimento.24

Num segundo momento, uma lei de 1670 definiu outro tipo de estabelecimento, denominado workhouse, que substituiria com maior sucesso as houses of corrections. O primeiro deles surgiu em 1697. Outro se estabeleceu em 1707 em Worcester e, após, em Dublin, Plymouth, Norwich, Hull e Exeter.25

Paralelamente, na Holanda produziu-se um acontecimento singular na história das práticas punitivas. Em 1596 criaram-se as famosas casas correcionais de Amsterdã, denominadas Rasphuis, para homens, e Spinhuis, para mulheres, sendo certo que as primeiras receberam tal denominação porque a árdua atividade laborativa que lhes era imposta consistia em raspar toras de madeiras para serem empregadas na manufatura de corantes, em especial o pau-brasil, fornecido por Portugal.26

23. Idem, p. 73. 24. Idem, p. 73.

25. Bitencourt, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão. Causas e alternativas. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 17. Outrossim, conforme dados coligidos por Randall McGowen, ao final do século XVII, cerca de 170 estabelecimentos desse tipo haviam sido abertos em toda a Grã-Bretanha. McGowen, Randall. The Well-Ordered Prison: England, 1780-1865. In: The Oxford History of the prison. The Practice of Punishment in Western Society. Morris, Norval; Rothman, David J. (Org.). N. York: Oxford University Press, 1998, p. 75.

26. Cf. Zaffaroni, E. Raúl; Batista, Nilo; Alagia, Alejandro; Slokar, Alejandro. Direito Penal Brasileiro. 1. Vol. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 412.

A relevância desses estabelecimentos residiu no fato de que, pioneiramente, eles foram especificamente concebidos para o fim de reformar o condenado nacional ou forasteiro por meio do trabalho constante e ininterrupto e pela instrução religiosa.27

Entretanto, como característico em uma era de transição, o sistema de penas era caracterizado por penas pecuniárias, penas corporais e pena capital. Aliás, a pena de morte era largamente aplicada no cotidiano judicial, alternativamente, contudo, com outras sanções igualmente atrozes, como a deportação e as galés, que consistiam na obrigação de remar em navios de guerra, acorrentando o condenado aos bancos de seus porões.28

Em que pese essa complexa realidade, é certo que o intenso movimento de constru- ção ou adaptação de prédios para o funcionamento das casas de correção dos apenados revestiu-se de grande importância na trajetória do Direito Penal e do Direito de Execução Penal. Isto porque, afora aparições esporádicas em épocas passadas, somente com a criação das houses of corrections ou workhouses, na era Moderna, é que a prisão passou a desempenhar a função de emenda do delinquente e, por isso, pode-se dizer que marcou o surgimento da pena privativa de liberdade moderna.29

Apesar da busca da reforma do delinquente, para este as três principais ativida- des lá desenvolvidas eram trabalho, oração e preparação para a fuga. Com relação a esta última, tem-se que, apesar de existirem registros de revoltas, a preparação para a fuga representava, de longe, a mais elementar atividade subversiva e o núcleo de uma subcultura carcerária, ainda que as fugas bem-sucedidas raramente acontecessem.30

Nessa altura da análise sobre a evolução do Direito Penal, uma das questões mais instigantes é, sem dúvida, o porquê da paulatina retirada da pena de morte do epicentro do sistema penal e sua substituição pela prisão, não mais como custódia, mas, sim, como modalidade de sanção penal. Com efeito, a pena de morte revelou-se incapaz de reduzir a criminalidade que eclodia por conta da miséria que assolava a Europa, “além de ser, em alguns casos, completamente inoperável devido ao excessivo número de réus”.31

27. Bitencourt, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão..., cit., p. 18.

28. Shecaira, Sérgio Salomão; Corrêa Jr., Alceu. Teoria da pena..., cit., p. 32. Sobre a pena de galés, Georg Rusche e Otto Kirchheimer observam que o “trabalho compulsório nas galés persistiu mesmo após o fim do sistema econômico no qual baseava-se, a escravidão, em função da natureza vil e arriscada do trabalho, tornando difícil o recrutamento de homens livres. A necessidade de remadores mostrou-se particularmente urgente em fins do século XV, devido ao estopim de um período de guerras navais entre as potências cristãs e maometanas mediterrâneas. Estas guerras deram ímpeto para a velha prática de recrutamento de remadores entre prisioneiros. O número de homens necessários para um só navio era muito grande, de trezentos e cinquenta para as galés grandes, chamadas galéasse, e cento e oitenta para os barcos menores.” (Rusche, Gerg; Kirchheimer, Otto. Punição e estrutura social. Trad. Gizlene Neder. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999, p. 76). A pena de deportação foi, igualmente, sistematicamente utilizada pelas metrópoles europeias, que embarcavam contingentes de criminosos para colônias e destacamentos militares distantes, como verificado na Inglaterra para América do Norte (até a independência dos Estados Unidos) e, posteriormente, para a Austrália; em Portugal para o Brasil e a África; na Espanha para determinados territórios; e, ainda, na Rússia para a Sibéria (Cf. Sutherland, Edwin H.; Cressey, Donald R. Op. cit., p. 289).

29. Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p. 18.

30. Spierenburg, Pieter. The Body and the State: Early Modern Europe. In: The Oxford History of the prison. The Practice of Punishment in Western Society. Morris, Norval; Rothman, David J. (Org.). N. York: Oxford University Press, 1998, p. 65. 31. Shecaira, Sérgio Salomão; Corrêa Jr., Alceu. Teoria da pena..., cit., p. 34.

Politicamente, a pena de morte já não atendia ao propósito de reforçar o poder absoluto do monarca, sendo, ao revés, cada vez mais temerário para o establishment o espetáculo da execução pública, ante as reações violentas e descontroladas da turba que presenciava aquele ato.32 Assim, com a chegada da burguesia ao poder, uma nova

estratégia de controle social ganhou força: a disciplina. O enfoque passou, pois, da intervenção sobre a pessoa do condenado para incidir sobre o seu espírito.33

Intrinsecamente relacionado com a ascensão da burguesia ao poder, ocorreu uma mudança de atitude para com a pobreza e a ociosidade. Até a Idade Média, o poder público, os religiosos e o cidadão comum associavam a pobreza a algo sagrado, falava-se em pobres de Jesus. Entretanto, no século XVI, uma nova atitude emergiu e a pobreza passou a ser vista como uma ameaça à estabilidade social. O ocioso passou a ser visto como um suspeito, um estranho à nova ordem. O poder público passou a tolerar somente a ociosidade dos doentes, dos deficientes e dos idosos. Todos os outros passaram a ser obrigados a trabalhar, justificando-se a adoção de trabalhos forçados. Aliás, tal medida surgiu como medida disciplinar e não penal.34

Conclui-se, assim, com a observação de Shecaira e Corrêa Jr., no sentido de não vincular o surgimento da prisão-pena somente à uma circunstância isolada – como, por exemplo, o viés ideológico da classe burguesa. Segundo eles, as principais causas explicativas desse fenômeno foram:(1) a valorização da liberdade e destaque para a racionalismo a partir do século XVI; (2) a necessidade de ocultação do castigo para evitar a disseminação do mal causado pelo delito; (3) o aumento da pobreza e da men- dicância causadas pelas mudanças socioeconômicas e ineficácia da pena de morte; (4) razões econômicas da classe burguesa em ascensão, que precisava ensinar o modo de produção capitalista e, ao mesmo tempo, controlar os trabalhadores, além de garantir mão de obra barata em épocas de pleno emprego e altos salários.35

32. Foucault, Michel. Vigiar e punir. Nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 53-58. Michel Foucault ilustra o quão subversivo esse ritual poderia se tornar com os chamados discursos do cadafalso, isto é, as últimas palavras do condenado. Verbis: “Em suas formas mais elementares, essas agitações começam com os encorajamentos, as aclamações às vezes, que acompanham o condenado até a execução. Durante toda a sua longa caminhada, ele é sustentado pela ‘compaixão dos que têm coração sensível’, e os aplausos, a admiração, a inveja dos que são ‘cruéis e duros’. Se a multidão se comprime em torno do cadafalso, não é simplesmente para assistir ao sofrimento do condenado ou excitar a raiva do carrasco: é também para ouvir aquele que não tem mais nada a perder maldizer os juízes, as leis, o poder, a religião. O suplício permite ao condenado essas saturnais de um instante, em que nada mais é proibido nem punível. Ao abrigo da morte que vai chegar, o criminoso pode dizer tudo, e os assistentes aclamá-lo.” (Idem, p. 55).

33. Idem, p. 91-92.

34. Spierenburg, Pieter. The Body and the State..., cit., p. 59-60.

35. Shecaira, Sérgio Salomão; Corrêa Jr., Alceu. Teoria da pena..., cit., p. 35. Considera-se interessante ilustrar o fenômeno da valorização da liberdade como bem maior para o homem da era moderna com as palavras daquele que, talvez, tenha inaugurado a própria literatura moderna: Miguel de Cervantes – ele próprio privado da liberdade como prisioneiro de guerra: “A liberdade, Sancho, é um dos mais preciosos dons que os céus deram aos homens; com ela não se igualam os tesouros que nem a terra ou o mar encobrem; pela liberdade, assim como pela honra, se pode e se deve aventurar a vida e, ao revés, o cativeiro é o maior dos males que pode acontecer com os homens.” (Cervantes, Miguel de. Don Quijote de la Mancha. Ed. del IV Centenario. Madrid: Real Academia, 2005, p. 984-985).