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o século xviii, eclodiu o movimento conhecido como Ilustração ou Iluminismo,

que teve forte influência no Direito Penal, com a formulação de severas críticas às práticas punitivas então vigentes.

Dentre os inúmeros pensadores que, sob o influxo da renovação, propugnaram por mudanças no magistério punitivo e nas péssimas condições dos cárceres, ressalta-se, em particular, os nomes de Cesare Beccaria, John Howard e Jeremy Bentham.

3.5.1. A Ilustração e Cesare Beccaria

Cesare Bonesana, o Marquês de Beccaria, tinha 27 anos de idade quando publicou, sob o anonimato, o pequeno, porém fundamental livro, Dei delitti e delle pene (1764). Em poucas palavras, pode-se dizer que o livro de Beccaria apresentou uma proposta político-criminal de abrandamento e racionalidade das leis penais e dos seus meios interpretativos, dirigindo contundente crítica às arbitrárias práticas judiciais da época.

Em pouco tempo, aquela obra provocou entusiasmo por toda a Europa e suas pro- postas influenciaram tanto juristas quanto monarcas e legisladores. À título ilustrativo, Catarina da Rússia, nas suas Instruções (1767) à Comissão para a reforma das leis penais quase que transcreve as páginas de Beccaria; Leopoldo da Toscana promulga a reforma de 1786, que dele acolhe as propostas mais radicais, a principiar pela pena capital; no Reino das Duas Sicílias, foi imposta a motivação das sentenças, conservava a tortura, mas esta depressa foi abolida pela ordenança militar de 1789; Giuseppe II de Áustria (1787) abole a pena de morte (exceto para os crimes militares); Frederico, o Grande, com as Allgemeines Landrecht extingue a tortura (1794) e a Revolução Francesa, na Declaração

dos Direitos do Homem, em vários de seus dispositivos incorpora literalmente ideias de

Beccaria.36

O pensamento de Beccaria, apesar de não ser original, se consideradas as ideias já difundidas por Hobbes, Locke, Montesquieu e Rousseau – ele próprio admitia ter seguido as ideias de Montesquieu37 –, procedeu à associação entre o contratualismo,

quanto à fonte do Poder Público, e o utilitarismo, quanto à finalidade punitiva. Da sua obra podem ser extraídos, dentre outros, os seguintes postulados: (1) a soberania provém do contrato social; (2) as penas devem ser moderadas e restritas ao mínimo necessário para a convivência humana; (3) o princípio da legalidade dos crimes e das penas deve vigorar na sociedade; (4) a pena de morte, as torturas como meio de prova e os atos judiciais inquisitoriais devem ser abolidos; (5) o magistrado deve-se limitar à fiel aplicação da lei penal; as normas penais devem ser claras e a justiça penal deve ser pública; (6) o castigo deve servir à emenda do condenado e à dissuasão de seus patrícios do caminho do crime.38

36. Ferri, Enrico. Princípios de Direito criminal. Trad. Luiz L. D’Oliveira. São Paulo: Saraiva, 1931, p. 28. 37. Beccaria, Cesare. Dos delitos e da penas. Trad. Torrieri Guimarães. São Paulo: Hemus, 1983, p. 112.

Beccaria não deixou de denunciar o horror e a crueldade dos cárceres de seu tempo39

e teve o mérito de se expressar de maneira clara e se dirigir ao grande público e não a um grupo limitado de pessoas.40

3.5.2. A influência de John Howard

Na mesma época em que as palavras de Beccaria ecoavam em muitos lugares, o sistema penal do Império Britânico vivia um agudo momento de crise, agravada, basicamente, pelo sucesso da Revolução Americana (1776), que privou o Reino do seu principal escoadouro de delinquência. Na ocasião, vários especialistas passaram a criticar as instituições inglesas, em especial as, àquele tempo, velhas, infectas e super- povoadas houses of corrections.

Imbuídos de um forte sentimento religioso, agregado a um espírito utilitarista, os reformadores ingleses acreditavam que a prisão deveria ser mantida, não como lugar de depósito ou passagem de presos, mas sim de saúde do corpo e correção da alma. A prisão era a modalidade de pena criminal que mais refletia a vontade de Deus, superando, portanto, a inutilidade da forca ou da deportação; necessitava, contudo, ser reformada. Embora existissem obras onde se discutiam os vários contornos da vida carcerária – educação religiosa, trabalho, severidade dos castigos etc. –, o livro que maior impacto causou na sociedade inglesa foi escrito em 1777, por John Howard: The State of the Prisons

in England and Wales. O autor, que sofrera os dissabores do cárcere estrangeiro, após

ter sido lançado nas prisões dos piratas, conseguiu, com sua investigação, popularizar – de forma semelhante à que foi feita no Continente por Beccaria – o debate sobre a reformulação das práticas punitivas.41

Tal se deu porque, enquanto seus conterrâneos se detinham em longos e tediosos detalhes, Howard registrava, de maneira simples e direta, mas com tintas carregadas de paixão, o resultado das suas investigações sobre as condições de vida em cada uma das prisões que visitara. É de se observar que John Howard era um senhor de meia- -idade quando foi nomeado Sheriff do condado de Bedford. Como suas atribuições compreendiam a prisão local, ele tratou logo de ir visitá-la. Desse modo, o que Howard encontrou na prisão o chocou.42

A proposta de John Howard no sentido de uma reforma prisional transformou-se num poderoso mecanismo de intervenção no debate sobre a reformulação das práticas punitivas naquele país e das possíveis alternativas. Com efeito, o livro de Howard criou

processo inquisitivo; a personalização da responsabilidade e a humanização das penas; o fim ressocializador da sanção penal, a legalidade dos delitos e das penas e a igualdade de todos os homens perante a Lei.” (Moreno Castillo, María Asunción. Estudio del pensamiento de Cesare Beccaria en la evolución del aparato punitivo. In: Historia de la prisión. García Valdés (dir.). Madrid: Edisofer, 1997, p. 91).

39. Idem, p. 21-22.

40. Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p 32. 41. Cf. Ferri, Enrico. Princípios…, cit., p. 29.

42. Cf. McGowen, Randall. The well-ordered prison: England, 1790-1865. In: The Oxford History of the prison. The Practice of Punishment in Western Society. Morris, Norval; Rothman, David J. (Org.). N. York: Oxford University Press, 1998, p. 78-79.

a impressão de que a prisão era a forma natural e inevitável de punição. Da mesma forma, ele pretendeu demonstrar que o aprisionamento na Inglaterra estava crivado de abusos e, com isso, clamava por uma reforma imediata.43

Com Howard nasce o Direito Penitenciário, que, pela primeira vez, foi separado do Direito Penal, admitindo, quanto ao segundo, a manutenção das teses retributiva e intimidativa da pena, e, quanto ao primeiro, a ideologia da transformação do infrator no curso do cumprimento da pena, dotando esta última de um fim reformador.44

3.5.3. Jeremy Bentham e o Panóptico

Outro nome de destaque da época dos reformadores foi o de Jeremy Bentham. Autor de profícua produção científica, Bentham, também nascido na Inglaterra, contribuiu para a história das práticas punitivas em duas frentes: finalidade da sanção penal e ocupação racional dos espaços da prisão. Bentham tratava ambas as questões com seu espírito utilitarista por excelência. Para ele, tudo no universo tem uma finalidade; toda coisa serve (ou desserve) a uma outra; nada vale por si; nada deve ser desperdiçado. Nesse sentido, levando sua filosofia ao extremo, Bentham legou seu cadáver à univer- sidade para dissecação, servindo-se, assim, ao progresso da ciência.45

Quanto à primeira daquelas questões, Jeremy Bentham escreveu sobre os fins da pena por meio de sua teoria da utilidade, conhecida por ser o princípio que aprova ou desaprova toda e qualquer ação, segundo a tendência que pareça ter para aumentar ou diminuir a felicidade da parte cujo interesse está em questão.

Segundo ele, por utilidade entende-se a propriedade de qualquer objeto, pela qual ele tende a produzir benefício, vantagem, prazer, bem ou felicidade ou a impedir que aconteça o dano, a dor, o mal ou a infelicidade para a parte cujo interesse está sendo considerado; se essa parte for a comunidade em geral, então a felicidade da comunidade; se um indivíduo particular, então a felicidade desse indivíduo.46

Partindo dessa premissa, o objetivo geral que todas as leis têm – ou deveriam ter – é, para Bentham, o de serem úteis, vale dizer, aumentar a felicidade total da comunidade; e, por conseguinte, em primeiro lugar, excluir, na medida do possível, todas as coisas que tendem a subtrair essa felicidade; em outras palavras, excluir o dano. A aplicação da pena constitui-se, inequivocamente, na imposição de um dano, de um mal.

Desse modo, baseando-se naquele princípio, uma lei penal só deve ser admitida na

43. Randall McGowen aduz que, em suas viagens, Howard visitou escolas, hospitais e asilos tanto quanto as prisões. Sua investigação enfatizava menos o caráter das pessoas encarceradas ou a missão da instituição e mais as características comuns a todos esses lugares. Se encontrasse uma instituição bem administrada e limpa, ele ficava cheio de admiração. Ele não tinha mais nada para perguntar aos seus responsáveis. Quando visitava uma prisão, o que ele mais criticava era a evidência de desordem e de desatenção, o descumprimento geral dos regulamentos, a indiscriminada mistura dos presos e a inexistência de limites claros entre o estabelecimento prisional e a comunidade exterior. (ibidem, p. 79).

44. Bitencourt, Cezar Roberto. Op. cit., p. 44.

45. O esqueleto dos ossos de Jeremy Bentham está conservado no Museu de Anatomia da University College de Londres (Cf. Morris, Clarence. Os grandes filósofos do direito: leituras escolhidas em direito. Morris, Clarence (org.). Trad. por Reinaldo Guarany. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 260).

medida em que objetive excluir da comunidade algum mal maior. Conclui, portanto, Jeremy Bentham – e aqui vai sua grande contribuição ao debate, sempre atual, sobre a finalidade da pena – que, nos seguintes casos, a punição não deve ser imposta: (a) quando for infundada; quando não houver qualquer dano a se impedir, não sendo o ato nocivo no todo; (b) onde ela for ineficaz, quando não puder agir para impedir o dano; (c) quando não for lucrativa, ou for cara demais; quando o dano que ela produziria for maior do que aquele que impediria; (d) quando for desnecessária; quando o dano puder ser impedido ou quando puder cessar por si mesmo, sem ela, a um custo mais barato.47

Além de teorizar sobre a finalidade da pena – e de inventar a palavra “codificação” para o conjunto harmônico e racional de leis48 –, Jeremy Bentham também tratou da

questão penitenciária. Urgia, assim, que a prisão fosse fisicamente reformada, transfor- mada num dispositivo que, de resto, serviria, com pequenas adaptações, para fábricas, hospícios, hospitais ou escolas. Ao viajar para a Rússia, onde seu irmão – o engenheiro Samuel – servia ao Príncipe Potemkim, Bentham tomou ciência do plano de construção de uma nova prisão na Inglaterra, tendo aproveitado a oportunidade para teorizar, por meio de correspondências posteriormente consolidadas num tratado, sobre um novo modelo arquitetônico que seu irmão estaria desenvolvendo para aquele Príncipe: o Panóptico ou a Casa de Inspeção.

O Panóptico, cujo plano físico é bastante conhecido,49 objetivava, por meio do isola-

mento, trabalho forçado e fiscalização ininterrupta, tornar útil o tempo do encarcerado na prisão, disciplinando não só todos os presos como, inclusive, os próprios carcereiros.50