• Nenhum resultado encontrado

a

partir Da chamaDa Inversão Brasileira, quando, em 1808, houve a transmigração

da Família Real Portuguesa para o Rio de Janeiro, que se tornou sede do Reino de Portugal e Algarve, notáveis modificações se operaram no Brasil.

Com relação ao processo acelerado de modificações iniciado em 1808, este acabou por culminar com a proclamação da independência, em 07/09/1822, quando começa a efetiva construção do Estado brasileiro. A legislação penal portuguesa, no entanto, não teve sua revogação instantânea, tendo se prolongado durante um determinado período do Primeiro Império.

Durante o período em que D. João VI esteve no país, a legislação portuguesa foi respeitada. Com o retorno do rei a Portugal, em decorrência da Revolucão do Porto iniciou-se a Regência do Príncipe D. Pedro. Seu pai, às vésperas de embarcar para a Europa, produziu o Decreto de 22/04/1821, que continha instruções para governar o Brasil. Durante este período, houve a continuação da atividade legislativa destinada a dar uma Carta Política ao país.

Em 23/05/1821, o Príncipe Regente expediu decreto que determinava, em seu art. 4o , que, em caso nenhum, possa alguém ser lançado em segredo ou masmorra estreita, escura, ou infecta, pois que a prisão deve só servir para guardar as pessoas e nunca para adoecer e flagelar; ficando implicitamente abolido para sempre o uso de correntes, algemas, grilhões e outros e quaisquer ferros inventados para martirizar homens ainda não julgados a sofrer qualquer pena aflitiva por sentença final.

Demonstrou ser reflexo das tendências humanizadoras que caracterizaram o século XVIII e que influenciaram as legislações ocidentais do período.

Em 10/03/1821, as Cortes Extraordinárias Constituintes de Lisboa decretaram as Bases da Constituicão Portuguesa, que foram juradas por D. Pedro no Teatro São João Batista, no Rio de Janeiro, em 05/06/1821. Nos dias seguintes, em sessão continuada da Câmara e do Senado todas as autoridades civis e militares também o fizeram.

e telhadas e com varandas. Mandei vir muitos moradores e muito gado para povoar a dita cidade, o qual se dá muito bem, pois já há grande criação.”. Segundo Lemos Britto, foi essa primeira prisão do Rio de Janeiro que, “depois de transformada e construída de pedra e cal, veio a constituir a famosa Prisão do Calabouço, de tão hórrida memória.” (Britto, Lemos. Os sistemas penitenciários do Brasil. Vol. II. Rio de Janeiro: Imprensa Oficial, 1923, p. 147-148).

A adoção das Bases foi de remarcada importância para a vida jurídica nacional, já que representaram a sua recepção pelo sistema nacional, em face do que dispunha o seu item 21o. Em decorrência, as Bases tornaram-se obrigatórias para os portugueses aqui

residentes, mas não para os nacionais que não eram nem poderiam ser considerados portugueses.

As Bases dispuseram que seriam direitos individuais do cidadão, entre outros, a liberdade individual, o direito de petição, a liberdade de pensamento, igualdade de todos perante a lei e a propriedade privada, seguindo, desta maneira, o ideário liberal. Especificamente sobre matéria penal, previu-se que as penas somente poderiam ser estabelecidas nos casos de absoluta necessidade e deveriam ser proporcionais à gravidade do delito. E mais. Aboliram-se todas e quaisquer penas infamantes e cruéis, tais como a declaração de infâmia, a tortura, os açoites, o baraço e o pregão e a marca de ferro em brasa. Tais dispositivos, portanto, representaram um enorme avanço em relação ao que pretendiam as Ordenações do Reino.

Por aviso de 28/08/1822, D. Pedro declarou que os juízes criminais deveriam obe- decer às Bases, enquanto a Assembleia Geral Constituinte Legislativa não estabelecesse novas regras.

Com a Proclamação da Independência, em 1822, e, mais que isto, com a Constituição Imperial de 25/03/1824, cristalizou-se a necessidade de que se criasse legislação penal específica, mais adequada àqueles tempos.12

Sobre matéria penal, a Carta Magna dispunha, em seu art. 179, 18: “Organizar- -se-á, quanto antes, um Código Civil e Criminal, fundado nas sólidas bases da justiça e equidade”. Ademais, ampliou as conquistas das Bases portuguesas. A título ilustrativo, vale gizar o que foi disposto no item 21: “As cadeias serão seguras, limpas e bem areja- das, havendo diversas casas para separação dos réus, conforme suas circunstâncias e natureza de seus crimes”.

Os historiadores admitem que as mudanças verificadas em nosso país, neste período, representaram verdadeira revolução liberal e conduziram o Brasil à sua independência e à aquisição de sua soberania nacional.13

Em 1827, dois projetos de Código Criminal foram encaminhados a uma Comissão da Câmara. No dia 4 de maio, fê-lo o Deputado Bernardo Pereira de Vasconcellos e, 12 dias após, idêntica iniciativa foi tomada pelo Deputado Clemente Pereira.

Em 14 de agosto daquele ano, a referida Comissão apresentou parecer, no qual enaltecia os dois trabalhos apresentados, mas os reunia em um só projeto, coligindo o que de melhor escolha se achasse espalhado em ambos, adotado o método seguido por Clemente Pereira, e que supria na clareza e ordem a falta de novidade que oferecia o texto de Vasconcellos. Opinou, ainda, pela impressão de ambos os projetos, para que todos deles tomassem conhecimento, o que ajudaria na sua discussão. Por fim, afirmou

12. Fragoso, Heleno Cláudio. Op. cit., p. 71.

13. Dotti, René Ariel. Um pouco da história luso-brasileira. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 1, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 181.

que o projeto de Bernardo Pereira de Vasconcellos poderia mais facilmente levar à perfeição com o menor número de retoques.

O Código Criminal foi, afinal, aprovado em 20/10/1830 e remetido ao Senado do Império. Em 16/12/1830, o Imperador D. Pedro I sancionou-o. O Estatuto Criminal do Império constituiu-se obra verdadeiramente notável. Foi o primeiro Código autônomo de toda a América Latina, tendo recebido influência das ideias liberais do Iluminismo e do utilitarismo, e, em particular, de Jeremy Bentham. O nosso Código Criminal de 1830 serviu, inclusive, de modelo para o Código Penal espanhol de 1848, que, como se sabe, foi a codificação inspiradora de inúmeros diplomas latino-americanos.14

Dentre as suas características mais marcantes, pode-se destacar: a exclusão da pena de morte para os crimes políticos; a imprescritibilidade das penas; a reparação do dano causado pelo delito; ter considerado agravante o ajuste prévio entre duas ou mais pessoas para a prática do crime; a responsabilidade sucessiva nos crimes de imprensa, antecipando-se ao sistema belga; a previsão da circunstância atenuante da menoridade e a antecipação do sistema dos dias-multa.15

As penas cominadas no Código Criminal de 1830 eram as seguintes: morte na forca, galés (excluídos mulheres, menores de 21 anos e maiores de 60), prisão com trabalho, prisão simples, banimento, degredo, desterro, multa, suspensão e perda de emprego e açoites para os escravos. Duas leis posteriores complementaram esse leque de penas: pela Lei de 03/10/1833, a ilha de Fernando de Noronha passava a ser usada para o cumprimento de pena de galés imposta aos moedeiros falsos; e a Lei de 10/06/1835 estipulava rigorosas penas, sem os recursos do processo, para os negros escravos que atentassem contra a vida de seus senhores.16 Em contraste com o passado excessivo das

Ordenações, o Código Criminal reduziu o número de delitos aos quais se cominava a pena capital de 70 para três: a insurreição de escravos, o homicídio com agravante e o latrocínio.17

Sob outro aspecto, apesar de conter uma grande variedade de sanções, o Código de 1830 cominou, como preponderantes, para cidadãos-livres, as penas de prisão com trabalhos e de prisão simples. Estas duas espécies de penas eram cominadas para, pelo menos, dois terços dos crimes.18 Em consonância com a mudança operada no cenário

europeu, a pena de prisão subtraiu o lugar de destaque antes ocupado pela pena de morte, sinalizando a direção de sua “futura supremacia sobre as demais modalidades punitivas”.19

Para os escravos, a pena preponderantemente empregada, no Direito Penal do Império, ainda era o açoite. Com efeito, em que pese a Constituição de 1824 declarar

14. Cf. Jiménez de Asúa, Luís. El nuevo Derecho Penal. Escuelas y códigos del presente e del porvenir. Madrid: Ed. Paez, 1929, p. 213.

15. Fragoso, Heleno Cláudio. Op. cit., p. 72. 16. Salla, Fernando. Op. cit., p. 45.

17. Cf. Shecaira, Sérgio Salomão; Corrêa Jr., Alceu. Op. cit., p. 40.

18. Lyra, Roberto. Comentários ao Código Penal. Vol. II. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 62. 19. Shecaira, Sérgio Salomão; Corrêa Jr., Alceu. Op. cit., p. 41.

abolidos o açoite, a tortura, a marca e todas as penas cruéis, o art. 60, do Código Criminal, dispôs que, em se tratando de réu escravo, não sendo caso de pena de morte ou de galés, deveria ser castigado, nos termos da respectiva sentença, em até 50 chibatadas por dia. O Código não fixou o limite de dias de castigo, mas o Aviso Ministerial de 10/06/1861 determinou que, computados os dias, tal sanção não excedesse ao total de 200 vezes.20

Manoel Dias de Toledo considerava bastante lacônica a disposição dos açoites naquele dispositivo do Código Criminal, pois “tudo deixou à mercê do Juiz execu- tor, que, não querendo assistir às execuções, manda o escrivão, que às vezes não vai, ficando assim à mercê do carcereiro”. Existiam, portanto, excessos e privilégios de toda ordem, conforme o grau de amizade ou inimizade do carrasco para com o fazendeiro. Argumentava, todavia, Manoel Dias de Toledo, que, quando o escravo era posto no cárcere para fins de sofrer açoites, acontecia frequentemente de o senhor desistir do direito de propriedade sobre aquele condenado, para não ter de custear as despesas das taxas dessa sanção. Isso acarretava a comutação judicial das chibatadas em pena de prisão com trabalhos, “pelo mesmo tempo em que o livre é punido com prisão simples”.21

Outra sanção daquela época foi o banimento, previsto no art. 50, com a seguinte redação: “A pena de banimento privará para sempre os réus dos direitos de cidadão brasileiro e os inibirá perpetuamente de habitar o território do Império. Os banidos que voltarem ao território do Império serão condenados à prisão perpétua”.

Sobre a pena de prisão e adentrando no aspecto de suas instalações físicas, cumpre registrar que, apesar da Constituição de 1824 prometer cadeias não só seguras, mas, também, limpas e bem arejadas, e prescrever a separação dos réus conforme as suas circunstâncias e a natureza dos seus crimes, é forçoso admitir – segundo as palavras de Evaristo de Moraes – que,

nos primeiros tempos da nossa independência nacional, e até mesmo depois do Código, pouco adiantamos ao que nos legara o domínio português no concernente às prisões. Nas três épocas sucessivas do Brasil Colônia, Brasil Reino Unido e Brasil Império incipiente, não obedeceram as prisões a qualquer princípio de ordem, de higiene, de

moralização.22

Realmente, o estado geral dos estabelecimentos prisionais era o pior possível. Nesse sentido, Thomas Holloway deteve-se sobre os cárceres da então Capital do Império. Segundo ele, as condições sanitárias da Prisão do Calabouço eram péssimas, assim como o calor e a fedentina nos compartimentos sem ventilação e a escassa comida que os carcereiros deviam fornecer em troca das taxas cobradas dos senhores. Um problema frequente no Calabouço era o abandono dos escravos por seus senhores, quando estes julgavam que as taxas devidas pelo sustento ou pela correção aplicada ultrapassavam

20. Cf. Toledo, Manoel Dias de. Lições acadêmicas sobre Artigos do Código Criminal. Conforme foram explicadas na Faculdade de Direito de S. Paulo. 2. ed. Rio de Janeiro: Garnier, 1878, p. 635.

21. Idem, p. 640.

o valor de sua propriedade. Conforme este autor, “ao tomar conhecimento da situação do Calabouço, em maio de 1831, o novo Ministro da Justiça da Regência Provisória ordenou a venda imediata de numerosos escravos, ‘a maior parte de que há anos não apareceram os donos’”.23

Igualmente tétrica, quiçá pior, era a Prisão do Aljube. Esta prisão fora instituída no Rio, entre 1735 e 1740, para abrigar padres conturbados e cristãos novos.24 O horror da

Prisão do Aljube foi descrito por membros de uma comissão municipal encarregada de inspecionar, em 1830, as prisões civis, militares e eclesiásticas daquela Capital. O relatório dessa comissão foi resgatado do anonimato por Mello Moraes Filho (1894), legando, para a nossa história penal, um pungente relato de como eram tratados os presos no Brasil do século XIX.25 Além de registrar o absurdo tratamento prisional,

aquela comissão municipal denunciou, igualmente, a inexistência de separação dos réus conforme os preceitos constitucionais de circunstância e natureza do crime: “Nas enxovias do Aljube, os presos acham-se em comum: forçados, ladrões, vagabundos, viciosos, assassinos, reincidentes, escravos, iniciados e veteranos em todos os crimes. Acotovelando-se com estes, mas não se confundindo, encontram-se, ali, conspiradores, jornalistas políticos, revolucionários célebres, comunicáveis ou incomunicáveis na sala livre ou em outro aposento”.26

Diante da disparidade entre o que dispunham a Constituição, o Código Criminal do Império e a realidade carcerária, iniciou-se um movimento no sentido de reformar o aparato prisional herdado da era colonial, sendo tal bandeira empunhada pela Sociedade Defensora da Liberdade e Independência Nacional (1831) e, posteriormente, encampada pelos Poderes Públicos.

Como consequências desse movimento, foram construídas, no Rio de Janeiro e São Paulo, Casas de Correção, em 1850 e 1852, respectivamente, que, após delon- gas, introduziram os postulados já existentes sobre a execução penal. Ressalte-se,

23. Holloway, Thomas H. Polícia no Rio de Janeiro: Repressão e resistência numa cidade do século XIX. Trad. por Francisco de Castro Azevedo. Rio de Janeiro: Getúlio Vargas, 1997, p. 65.

24. Cf. Britto, Lemos. Op. cit., p. 151.

25. “Esta prisão, encostada ao Morro da Conceição, é subterrânea de um lado e do outro faz frente à rua do mesmo nome; é, por isto, defeituosíssima, porque a comunicação imediata com a rua a torna pouco segura e não permite que se estabeleça, no seu interior, a disciplina conveniente para reforma dos presos; pela sua situação, já se vê que ela deve ser úmida, insalubre, inabitável, sobretudo do lado da montanha. (...) Foi com grande dificuldade que a Comissão pôde vencer a repugnância que deve sentir o coração humano ao penetrar nesta sentina de todos os vícios, neste antro infernal, onde tudo se acha confundido, o maior facínora com uma simples acusada, o assassino o mais inumano com um miserável, vítima da calúnia ou da mais deplorável administração da justiça. O aspecto dos presos nos faz tremer de horror: mal cobertos de trapos imundos, eles nos cercam por todos os lados e clamam contra quem os enviou para semelhante suplício, sem os ter convencido de crime ou delito algum. Observam os comissionados que a prisão tinha capacidade para umas 20 pessoas e continha, na data da visita, nada menos que 390! Afirmam que, mesmo nas suas salas mais amplas, se sentia cheiro insuportável de cigarro, suor, latrinas e toda sorte de imundices. Por baixo das salas, descendo por um alçapão, foram ter as enxovias, nas quais viram 85 presos, entre livres e escravos, dormindo sobre pedras úmidas. Ali, segundo disseram os carcereiros, era frequente morrerem os presos, abafados durante o verão.” (Cf. Moraes, Evaristo. Op. cit., p. 08). Segundo Lemos Britto, o “saudoso cronista patrício Vieira Fazenda cha- mava o Aljube de ‘covil de suplícios e de misérias, verdadeiro inferno de Dante’, onde se passavam ‘cenas indecorosas que, para vergonha nossa, se patenteavam aos olhos de todos, em pleno século XIX!’” (Britto, Lemos. Op. cit., p. 152) (grifos do original). 26. Moraes, Evaristo. Op. cit., p. 09.

no particular, que o Código Criminal não previra qualquer sistema penitenciário. A primeira iniciativa a este respeito coube a Eusébio de Queirós, autor do regulamento da Casa de Correção do Rio de Janeiro, regulamento este que também serviu para a Casa de Correção de São Paulo.27

Por outro lado, é certo que, ao lado das Casas de Correção, permaneceram em fun- cionamento as Cadeias Públicas ou Casas de Detenção, conforme a terminologia de cada localidade, destinadas, precipuamente, à detenção provisória de infratores. No Rio de Janeiro, Lemos Brito considerava a Casa de Detenção nada além do que um simples “depósito de presos”, construída de forma improvisada, isto é, aproveitando-se o erro de cálculo do segundo raio da Casa de Correção, projetada “além do ponto que devia termi- nar, perturbando, assim, a harmonia do plano primitivo, como se percebe facilmente”.28

Saliente-se, todavia, que as edificações erguidas nas Capitais do Império e da Província de São Paulo, pouco influíram na melhora das prisões existentes nas outras localidades de nosso território, permanecendo, assim, como exceções em meio ao cená- rio dantesco das instalações em funcionamento no País. Prolongava-se, portanto, o sistema e as práticas de encarceramento da era colonial, que pouco se alteraram após a independência do Brasil.