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om o Descobrimento do Brasil, em 1500, o direito que passou a viger não foi resul-

tado dos choques entre populações postas em contato. Foi a mera importação de leis portuguesas que já estavam prontas, mas que não necessariamente se adequavam à realidade brasileira.

As práticas punitivas das tribos que habitavam o país, àquele tempo, em nada influíram, seja então, seja após, na legislação penal. Os conquistadores portugueses, que subjugaram os povos nativos, não receberam qualquer influência dos costumes locais na elaboração das normas penais que aqui passaram a viger.4

Pode-se dizer, então, que o Direito Penal vigente no período colonial constituiu mera transposição do conjunto de leis então vigente em Portugal.

Portugal tornou-se nação independente no século XII, época em que vigorava a chamada legislação foral, ou seja, o conjunto de “diplomas legais com forte conteúdo consuetudiário”.5

À época do rei D. João I (1384-1433), este soberano, em data provavelmente posterior a 1404, determinou a reforma e a compilação das leis num corpo único e orgânico. Até então vigiam em Portugal normas esparsas, que se baseavam nas Decretais de Gregório IX – a legislação canônica –, na obra dos glosadores de Bolonha e, a partir do reinado de D. Diniz (1279-1325), na legislação do reino de Castela – a lei das Sete Partidas.

Surgiu daí a compilação publicada em 1446, obra coordenada, primeiramente, por João Mendes e, após, por Rui Fernandes. Já, então, reinava D. Afonso V (menor à época, sendo regente seu tio, o infante D. Pedro), que a transformou em lei. Esta obra foi o primeiro código completo a aparecer na Europa. Representou verdadeiro avanço para seu tempo, acolhendo as ideias então vigentes. Tem como principal conquista a fixa- ção do magistério punitivo estatal, apesar da forte influência clerical. O legislador, no entanto, fez confusão de dispositivos do direito romano e do direito canônico, além de não se preocupar com a finalidade da pena e a sua proporcionalidade ao delito, bem como manteve a desigualdade entre ricos e pobres.

As Ordenações Afonsinas eram compostas por cinco livros, sendo o Livro V o que tratava de Direito Penal e do Direito Processual Penal, e traziam no seu bojo 121 títulos. Em 1505, D. Manuel I, o Venturoso, ordenou a revisão das Ordenações Afonsinas. Com tal escopo, nomeou Rui Boto, Rui da Grã e João Cotrim. Concluíram a obra, que foi impressa em 1512, e depois, em edição mais correta, no ano de 1514. Após, foi revista e reformada por outros juristas durante sete anos, tendo sido promulgada em definitivo

3. Japiassú, Carlos Eduardo Adriano. O contrabando..., cit., p. 25. 4. Shecaira, Sérgio Salomão; Corrêa Jr., Alceu. Op. cit., p. 38. 5. Idem, p. 36.

em 1521, e este corpo de leis ficou conhecido como Ordenações Manuelinas. Seguiu o sistema anterior, com a adição de novos provimentos surgidos neste interregno, com algumas poucas correções, tendo sido reduzido para 113 Títulos.

As Ordenações Manuelinas (1521) seguiram, em larga medida, as disposições pre- cedentes, com alguns acréscimos.

Em 1580, com a chamada União das Coroas Ibéricas e com a subida ao trono do rei Felipe lI, de Espanha, que passou a reinar em Portugal com o nome de Felipe I, o monarca ordenou que, como afirmou, emendasse a confusão das leis e, para obter a estima dos portugueses, incumbiu os desembargadores do Paço Paulo Afonso e Pedro Barbosa, com a colaboração de Damião de Aguiar e Jorge Cabedo, de reformar a legis- lação vigente.

Em 11 de janeiro de 1603, já sob o governo de Felipe II, foram promulgadas as Ordenações Filipinas, que se baseavam nas Ordenações anteriores e na Compilação de Duarte Nunes do Leão, sem lhes introduzir qualquer alteração substancial, criando, em seu livro V, 143 títulos. Esta legislação vigeu em Portugal mesmo após a sua sepa- ração da coroa espanhola, em 1640, já que foram revalidadas por lei de D. João IV, em 29/01/1643 . No Brasil, já em Lei de 20/10/1823, D. Pedro I determinou que as ditas Ordenações ficassem em inteiro vigor na parte em que não tivessem sido revogadas para, por elas, se regularem os negócios do interior do Império. Isto significa dizer que as Ordenações Filipinas acabaram por constituir o verdadeiro Código Penal do período colonial, gerando efeitos até mesmo no Brasil independente.

O Livro V das Ordenações, que era dedicado à matéria penal e processual penal, utilizava-se de penas absolutamente duras para lidar com os delitos ali previstos. Pode-se ir mais adiante, afirmando-se, mesmo, que as suas penas eram bárbaras e cruéis, pretendendo coibir a prática delitiva por meio do terror. Este Livro previa o seguinte rol de sanções: (1) pena de morte, nas suas diversas modalidades; (2) pena de degredo para galés e degredo para outros lugares, v.g., Índia, África ou Brasil; (3) penas corporais, como os açoites, a mutilação de mãos, da língua etc., queimaduras com tenazes; (4) pena de confisco; pena de multa, além de inúmeras outras que se destinavam à humilhação pública dos condenados.

Como se não bastasse a severidade das penas, havia sérias diferenças no trata- mento dispensado a nobres e a plebeus. A condição ou a qualidade da pessoa influía diretamente no tipo de tratamento dispensado pelos órgãos públicos para com os jurisdicionados.6

Mesmo quando se referia à pena aplicável, eram previstas distinções. A própria pena dura existente no sistema filipino representava este tratamento diferenciado. A pena capital apresentava três modalidades distintas de execução: morte cruel, morte atroz e morte simples. A primeira era aquela na qual a vida era tirada lentamente, por meio de suplícios. Na morte atroz, a eliminação era marcada por especiais detalhes,

como a queima do cadáver e o esquartejamento. Já a morte simples limitava-se à supres- são da vida, sem rituais diversos e executada por meio da degola e do enforcamento, modalidade, muitas vezes, em que ficava o cadáver pendente até seu apodrecimento.

As Ordenações Filipinas (1603) mantiveram a sistemática dos diplomas anteriores, “sem lhes introduzir qualquer alteração substancial”.7

As Ordenações Filipinas vigeram, entre nós, por 227 anos, ou seja, até 1830. Vê-se, assim, que o diploma jurídico-penal que por mais tempo vigorou no Brasil foi, curiosa- mente, promulgado por um rei espanhol. Mais que isso, pode-se dizer que este diploma foi o que, de fato, regeu a sociedade brasileira colonial, visto que, ao tempo das ordena- ções anteriores, praticamente não havia portugueses habitando o território brasileiro.8

As Ordenações Filipinas não previam para nenhum crime ou circunstância a pena de prisão isoladamente.9 Existiam, no entanto, nas inúmeras localidades do território

brasileiro, à exemplo de Portugal, construções destinadas à privação da liberdade dos indivíduos: as “cadeias públicas”. Porém, tais prisões não possuíam, à época, função de sanção penal. Na verdade, as cadeias na Colônia apresentavam uma dupla função: a primeira era servir de instrumento de terror ou ameaça, visto que simbolizava o poder arbitrário exercido pelo corpo administrativo nas vilas e cidades. A outra função do cárcere era garantir a custódia do acusado ou, ainda, do indígena ou escravo captu- rado, enquanto não julgada e executada a pena ou devolvido o indivíduo a quem de direito. Ressalte-se que, na hipótese de recurso, o apelo se dava, no início da Colônia, no Tribunal da Relação de Lisboa, passando, depois, para os tribunais instaurados no próprio Brasil.10

Saliente-se que a prisão fazia parte constitutiva do poder municipal no Brasil Colônia. A elevação de uma vila ou arraial à condição de município pressupunha, dentre outras exigências, a construção de uma cadeia pública. A propósito, é relevante observar que, quando da fundação da cidade do Rio de Janeiro (1565), uma das pri- meiras preocupações de Estácio de Sá foi a de construir os edifícios competentes para a Casa da Câmara. Por sua vez, a primeira prisão do Rio de Janeiro foi construída por ocasião da transferência da cidade (1567) do Morro Cara de Cão, na Urca, para o Morro do Castelo, atual centro da cidade.11

7. Idem, p. 69.

8. Souza, Artur de Brito Gueiros. Presos estrangeiros..., cit., p. 145. 9. Salla, Fernando. Op. cit., p. 34.

10. Segundo Virgílio Donnici, em 1640 “foi criada a Relação da Bahia, com três Ouvidorias Gerais, unificada em 1652, sendo que em 1751 foi criada a Relação do Rio de Janeiro, que era a Justiça dos tempos coloniais, e mais tarde a Relação do Maranhão e de Pernambuco, onde se confundiam Juiz e polícia.” (Donnici, Virgílio. A criminalidade no Brasil: meio milênio de repressão. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 15).

11. O registro da primeira prisão carioca foi documentado por Mem de Sá, tio de Estácio: “E por o sítio onde Estácio de Sá edificou não ser mais que para defender-se em tempo de guerra, com a presença de capitães e de outras pessoas que no dito Rio de Janeiro estavam, escolhi um sítio que parecia mais conveniente para edificar nele a cidade de São Sebastião, o qual sítio era de um grande mato espesso, cheio de muitas árvores grossas em que se levou assaz de trabalho em as cortar e limpar e edificar uma cidade grande. (...) E fiz a igreja dos padres de Jesus onde agora residem, telhada e bem concertada, e a Sé de três naves, também telhada e bem concertada; a cadeia pública, a casa dos armazéns e para fazenda de Sua Alteza sobradadas

Este período em que vigeu um regime muito severo foi reflexo direto de um governo absolutista, associado a ideais católicos típicos de tempos em que a Igreja de Roma perseguia aqueles que considerava hereges.

Ademais, os preceitos eram estruturados de maneira bastante rudimentar, sem grande preocupação técnica. Não havia, como ocorre nas codificações contemporâneas, uma Parte Geral e outra Especial. Os delitos eram enumerados de modo casuístico, utilizando-se de uma linguagem peculiar, sem que, efetivamente, significassem um sistema.